1.Família e Lei Civil – da Pré à Pós-modernidade
A ordem jurídica, sob um certo prisma, pode ser vista com um discurso em contínua construção, uma narrativa sempre fluente e nunca terminada, cuja função é imprimir uma perspectiva ordenadora, um modelo de orbis, um ideal de mundo. A semântica desta narrativa constrói eficácia nos fatos sociais (e, dialeticamente, deles tira sua legitimidade) em perene devir que não pode ser ignorado pelo teórico do Direito. Tal se deu, de modo específico, com a figura jurídica da comunhão de bens, tanto em sua forma universal quanto parcial, irmãs congêneres e descendentes diretas do discurso normativo herdado ao direito luso-espanhol colonial:
“Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se entendem serem feitos per carta de ametade: salvo quando entre as partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se guardará o que entre elles for contractado.
1- E quando o marido e mulher forem casados per palavras de presente à porta da Igreja, ou per licença de prelado fora della, havendo copula carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda. E posto que elles queiram provar e provem que foram recebidos per palavras de presente, e que tiveram copula, se não provarem que foram recebidos á porta da Igreja, ou fora della com licença do Prelado, não serão meeiros.
2- outrosi serão meeiros, provando que stiveram em casa teúda e manteúda, ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher per tanto tempo, que segundo Direito baste para se presumir Matrimônio antre elles, posto que se não provem as palavras do presente.
3- E acontecendo, que o marido, ou a mulher venham a ser condenados por crime de heresia, por que seus bens sejam confiscados, queremos que comuniquen entre sí todos os bens, que tiverem ao tempo do contracto do Matrimonio, e todos os mais, que depois adquirirem, como se ambos fossem Catholicos. O que assi havemos por bem, por se acusarem conluios e falsidades, que se poderiam commeter sobre a prova dos bens, que cada hum delles comsigo trouxe.” (Ordenações Filipinas, Título XLVI do Livro IV)
O texto que abre o presente texto vem da legislação ibérica que, por mais de trezentos anos, vigorou no Brasil Colonial, durante o Império e liminar do período Republicano, até a entrada em vigor do recentemente revogado Código Civil de 1916. Trata-se, portanto, de norma jurídica cuja influência na consciência coletiva ainda pode ser vista aqui e ali, como um espectro ou fantasma de si mesma, que teima em refletir ainda dos fatos e valores que, ao seu tempo, legitimavam sua existência e vigência.
Nele está consignada a milenar regra da repercussão patrimonial do matrimônio, pela qual o casamento, como instituição social e religiosa, tem por efeito a comunhão de bens presentes e futuros dos cônjuges. A noção de família que lastreia a norma em tela é por demais clara para permitir divergências: não há família sem matrimônio, este deve ser abençoado pela Igreja, tornando-se perpétuo e implicando num condomínio ou meação sobre os bens presentes e futuros. O destino dos bens está atrelado ao da família, fazendo parte de um pano de fundo maior, um desenho tradicionalmente ordenado de mundo.
Ocioso aqui seria pincelar a sociedade patriarcal, hierarquizada, institucionalista e claramente ordenada segundo valores exarados da cosmovisão cristã, legitimadora das estruturas de poder de uma época, contexto do qual vem, recebida como tradição de análogo contexto romano (basta lembrar o rei-sacerdote paterfamilias), a figura jurídica da comunhão de bens entre cônjuges, conforme expressa na antiga norma de direito luso-espanhol.
O Século XX e a mudança na relação do homem com os meios de produção (aqui vejo claramente a relação Engeliana entre família e propriedade), trouxe consigo reflexos na estrutura do fenômeno familiar, desmantelando a instituição hierarquizada, centrada numa relação de poder e desigualdade, para refletir a realidade da sociedade moderna comporta de operários e de uma classe média em ascenção, e cuja expressão familiar que melhor adequou-se aos novos tempos foi a denominada família nuclear, com gradativa desconstrução das hierarquias intrafamiliares, vale dizer, da relação entre homem e mulher, e entre pais e filhos. Tudo isso teve patentes reflexos na legislação que regula o casamento, as relações matrimoniais e em relação aos filhos, evidenciando, mais uma de tantas vezes, o fato de que a lei civil tem a notória tendência em regular fatos passados e situações consolidadas pela experiência coletiva. Se a lei, paradoxalmente, sequer consegue acompanhar o passado recente, sua eficácia como instrumento de regulação de comportamentos cedo cairá em desuso, como bem apontou Eduardo Bittar (2005, pp. 213-214) em primoroso trabalho:
Visto no tempo e no espaço, pode-se entender mesmo que um sistema jurídico válido só possui relevância se está intrisecamente ligado a seu tempo, ou seja, ao presente. Se ele é inadequado para sua época, se é mero fruto do passado, funciona como tal, ou seja, como relíquia histórica. Se está no compasso das necessidades sociais para o presente e coloca-se afinado com o futuro, é sim um ordenamento que transparece força por meio de suas normas. Ordenamento a-histórico não existe, e deve-se saber, quando se está diante de um ordenamento jurídico concreto, se se trata de um ordenamento que caminha ao fluxo de sua época, ou se deixa deteriorar pelas rápidas modificações socioculturais sem acompanhá-las, operando frustrações no alcance dos seus preceitos e regramentos.
Trata-se de um lugar-comum na literatura jurídica especializada (REIS JÚNIOR, 2013), sendo repetido amiúde por incontáveis textos dos mais diversos níveis:
“Ao observarmos a origem do nosso extinto Código Civil, percebemos que seu nascimento deu-se em uma sociedade altamente individualista, onde o patriarcalismo dominava. Doravante, a família patriarcal tinha sua constituição fundada no chefe (marido), sua mulher e seus filhos, sendo estes seus subalternos.”
Se a família pré-moderna refletia, no seu microcosmo, a ordem social hierarquizada e delineada para fins claramente institucionais e coletivistas, a família da pós-modernidade, sob a capa politicamente correta do princípio da afetividade, é líquida, essencialmente instável, servindo mais como locus de satisfação pessoal do indivíduo que a ela adere sem compromissos de qualquer perenidade ou continuidade, que propriamente o espaço romanticamente delineado por nossa tradição jurídica cujo traço ibérico manifesta-se justamente nesse romantismo.
De fato, o eixo valorativo mudou. Mas ao contrário do tom triunfalista da majoritária doutrina, não pode ser tomado como medida, a priori, sob o ponto de vista existencial, qualitativamente melhor que o paradigma anterior e que, bem ou mal, trouxe a Civilização Ocidental até o raiar do Século XX.
Assim, parece até que a evolução dos valores que moldam o fenômeno familiar, pelo menos na orbis brasileira e segundo a descrição da majoritária doutrina juscivilista (LÔBO, 2013), chegou a um clímax a-histórico :
“Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas.”
Assim, é de se questionar o pressuposto do qual partem os autores do Direito Civil nacional para afirmar que “a família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana, marca o deslocamento da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função. Essas linhas de tendências enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais.”(LÔBO, 2008, p. 11)
Quem pinta em tons de cinza a nova 'entidade' familiar (entidade aqui em destaque com finalidade de destacar o claro vício de linguagem de uma figura fenomenológica hoje dinâmica e volúvel sob os auspícios de um vocábulo que contraditoriamente denota estabilidade e mesmo perenidade), tornando-a apenas mais um elemento do completo ético construído pelo mercado (com o perdão do patente antagonismo entre ética e mercado no contexto atual da civilização ocidental), não é o autor destas poucas linhas, mas as pesquisas abalizadas em psicologia (ZORDAN, FALCKE & WAGNER, 2013), que demonstram haver uma definição contemporânea de amor (a afetividade que fundamenta o princípio jurídico) bastante próxima do que Bauman entende por “amor líquido”:
“Estudiosos do tema (Garcia & Tessara, 2001; Haddad, 2006) afirmam que, no contexto contemporâneo, para haver o casamento, é necessário o amor. Este tendo como característica principal a intensidade e não mais a eternidade, bem ao sabor da poesia de Vinícius de Morais (1992): ?Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure?. Cai por terra, portanto, o peso do ?até que a morte nos separe?, surgindo a ideia de que a relação entre os envolvidos tenha por eixo, cada vez mais, o desejo recíproco e menos a obrigação (Turkenicz, 1995). Priorizando-se a igualdade e o respeito à mútua individualidade (Costa, 2007).
Essa mudança na concepção dos relacionamentos se evidencia na emergência da superficialidade vincular (Mezan, 2003), caracterizada pela paixão intensa, porém efêmera. Segundo Bauman, essa é a concepção do que ele denomina amor líquido, um reflexo da fragilidade dos vínculos humanos na contemporaneidade, que inspira desejos conflitantes ?de apertar os laços e, ao mesmo, tempo mantê-los frouxos? (Bauman, 2004, p. 8). Dessa forma, os casamentos tornam-se mais fugazes e, frente às dificuldades da vida em conjunto, é mais comum a dissolução do vínculo do que a perseverança na busca de alternativas para a resolução.”
O sociólogo polonês assevera (BAUMAN, 2004, p. 65):
“Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento permanente a dependência incapacitante. Essa razão nega direitos aos vínculos e liames, espaciais ou temporais. Eles não tem necessidade ou uso que possam ser justificados pela líquida racionalidade moderna dos consumidores. Vínculos e liames tornam 'impuras' as relações humanas – como o fariam com qualquer ato de consumo que presuma a satisfação instantânea e, de modo semelhante, a instantânea obsolescência do objeto consumido.”
Assim, da migração temporal de um paradigma de segurança institucionalizada (tipica da modernidade pretérita) para a liberdade radical (outra vez, filha da pós-modernidade) fundada no afeto (no seu sentido propugnado por Bauman, i.e., da satisfação consumerista dos desejos imediatos dos indivíduos imersos no grande mercado mundial de produtos descartáveis em que se tornou a existência humana), a família romântica baseada no afeto parece ser apenas uma visão distorcida, enviesada do que realmente está ocorrendo nas relações humanas de fato e, a reboque, no fenômeno familiar.
A família brasileira, sob a ótica da antropologia, sofre, independentemente da classe social, de verdadeira síndrome de rotatividade, cujo efeito é a efemeridade atestada dos laços afetivos, comprovado amiúde (QUINTAS, 2005, pp. 225-227):
“Na pobreza, observa-se uma tela de parentesco esgarçada, na qual a família se distancia da noção de núcleo para assomar a ideia de rede. A figura do pai é fluida, a mulher recebe um novo companheiro sem angústias moralistas, instala-se a rotatividade de parceria, num cotidiano perverso em ligas de afetividade. A síndrome do abandono encharca os lares pobres, resultado da descontinuidade do homem que troca de casa, esquecendo a sua história, o seu passado, o seu parentesco. Com uma clara volubilidade familiar, a interação simbólica afetiva atinge níveis pouco significativos e a metáfora do útero não acontece porque o espaço privado se confunde com o coletivo, não permitindo edificações de claustro. Em decorrência da desestabilidade econômica, o processo relacional tem no seu bojo uma estreita cooperação através de uma sistemática ajuda mútua, o que provoca uma articulação extrafamiliar conveniente às necessidades imediatas. O membro agregado desponta como um elemento de suporte altamente valioso, fazendo parte da estrutura familiar, mas não se inserindo na linhagem parental, quando de fato não possui laços consanguíneos. (…)
A outra família guarda peculiaridades que a definem sob a esteira de uma economia mais estável. No seu centro a liberação da mulher indica o principal mote das circunvoluções, isto é, o movimento estrutural se ancora e se ramifica sob a ode das transformações femininas. A participação da mulher no mercado de trabalho e sua qualificação profissional 'subvertem' a feição doméstica, porque o espaço público adquire todo um atrativo anteriormente vedado aos anseios do sexo frágil. A circulação da mulher se faz entre os dois âmbitos, num alargamento de horizontes favoráveis às suas inquietações. O número de separações conjugais aumenta, os níveis de tolerância diminuem, a atomização do afeto reponta na dinamização dos núcleos emergentes. (…)
A atomização do afeto decorre das sintomáticas rupturas provenientes do sentimento de liberdade feminina que, acoplado à emancipação econômica, cria a possibilidade de alternativas, a gestar um novo modelo de comando que traz embutido referenciais de poder. Registra-se um grande número de lares sob a chefia da mulher, o que realça o sentimento de independência – agora imbricado ao poder – que se incorpora à cosmogonia feminina como uma cláusula inovadora à dinâmica cotidiana.”
Os fatos não apontam em outra direção. Dados do IBGE de 2010 apontam que, enquanto a taxa de nupcialidade no Brasil é de 6,6 pessoas por cada 1000 habitantes, a de divórcios é de 1,8 para o mesmo grupo. Um simples cálculo aritmético evidencia o fato de que 27,7% dos matrimônios, no Brasil, acabarão em divórcio. Por óbvio, esta estatística deixa de fora as uniões estáveis (cuja estabilidade é análoga, pode se presumir, ao do matrimônio), mas expressa na parte, o todo de uma realidade empiricamente conhecida: o amor é eterno enquanto dura. Assim, “quem sabe está na hora de abandonar a expressão 'cônjuge', que tem origem na palavra 'jugum', nome dado pelos romanos à canga que prendia as bestas à carruagem. Daí o verbo conjugere designar a união de duas pessoas sob o mesmo jugo, a mesma canga. Talvez seja o caso de se resgatar a palavra 'amante', que significa tanto a pessoa que ama como quem é objeto do amor de alguém, expressão que melhor identifica a razão de as pessoas ficarem juntas: porque se amam. (…) Os amantes nenhum compromisso assumem para o futuro; a independência de ambos é sagrada. Nas páginas de sua vida nada se escreve com tinta indelével.” (DIAS, 2004, pp. 37-38.)
Dados recentes apontam que no Brasil, a cada 4 (quatro) casamentos formalizados, há 1 (um) divórcio evidencia a inconveniência econômica de se impor regra patrimonial de comunicação de bens a uma sociedade afetiva cuja probabilidade de ser inexitosa na primeira década é de significativos 25% (vinte e cinco por cento).1
2. O inconveniente regime legal da comunhão de bens e a crescente demanda estatal por sua partilha
O casamento (e a seu reboque, as uniões estáveis), de perpétuo, tornou-se efêmero, gerando crescentes volumes de litígios sobre a partilha de bens, fruto de uma imposição legal oriunda de séculos idos, tempos em que a família, oriunda exclusivamente do matrimônio, constituía-se numa comunhão de vida e bens.
O perfil da mulher sob o qual vigeu a comunhão de bens nos últimos séculos não existe mais, como aliás no restante do mundo ocidental, em que a família hierarquizada, patriarcal, praticamente desapareceu do horizonte para dar lugar à miríade de combinações que expressam a orbis de igualdade (mormente econômica) entre homens e mulheres. Mais uma vez, os dados e fatos não mentem, como é o caso da participação da mulher no mercado de trabalho (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2012), que tem se aproximado da igualdade com a masculina:
O mercado formal de trabalho contava em dezembro de 2010 com um estoque de 43,3 milhões empregos. Desses, 25,3 milhões estavam ocupados por homens e 17,9 milhões por mulheres. Em dezembro de 2006, o estoque de emprego formal era de 35,1 milhões, sendo que os homens ocupavam 20,8 milhões e as mulheres 14,2 milhões. No cotejo entre 2006 e 2010, revela-se que a participação das mulheres aumentou de 40,64% para 41,48% do total do estoque de empregos.
O percentual de mulheres chefes de família igualmente fere de morte o antigo paradigma patriarcal de que o homem chefia o lar e detém todo o poder sobre o núcleo familiar (CYMBALUK, 2012):
O número de mulheres que são chefes de família aumenta ao longo dos anos no Brasil. Em 1996, 20,81% dos lares tinha como chefe uma mulher, segundo pesquisa do IBGE na época. No Censo realizado em 2000, a porcentagem subiu para 26,55%. Já a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), que teve como ano base 2011, levantamento mais recente do IBGE, divulgada nesta sexta-feira (21), aponta que 37,4% das famílias têm como pessoa de referência uma mulher.
Parafraseando Maria Berenice Dias, para quem “o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo”, tem-se que igualmente a família na pós-modernidade funda-se, por natureza, nas suas intrísecas relatividade temporal e seu descolamento do âmbito patrimonial, sendo necessário que tais novas características sejam levadas em conta na reavaliação da intervenção estatal no que concerne a tais relações, bem assim seus efeitos de natureza patrimonial.
Qual a razão, então, para que se mantenha a interferência estatal sobre o regime de bens de cônjuges presentes, baseado em um desenho de sociedade pretérita?
No Brasil, desde o período colonial, o matrimônio se submetia à comunhão universal de bens, conforme se referiam as Ordenações Afonsina, Manuelina e Filipina. Desde então já facultava-se aos noivos a disposição diversa do seu regime de bens, ficando o da comunhão total como subsidiário ao silêncio destes.
O Código Civil de 1916 previu quatro regimes de bens, a comunhão universal, a comunhão parcial, a separação total de bens e o regime dotal. Já o Código em vigor suprimiu o regime dotal, repetindo os outros três , trazendo ainda o da participação final nos aquestos.
A comunhão universal de bens, oriunda do direito colonial, foi o regime legal que continuou em vigor no Código Civil de 1916, sendo alterado apenas com a Lei do Divórcio, em 1977, passando a ser o da comunhão parcial de bens, mantido pelo Código de 2002.
O reflexo deste vetusto paradigma patrimonial concebido sob a noção de uma família perpétua é a proliferação de litígios ocasionados pela sua incidência em caso de ruptura, onerando o Estado e estimulando a cultura do conflito.
Embora os dados sejam escassos, um levantamento exemplificativo no Foro João Mendes Jr. (ZARIAS, 2008, pp. 239-240), em São Paulo-SP, demonstra que as lides envolvendo divórcio e dissolução de união estável somente são superadas por pedidos de alimentos e sua execução, sendo portanto significativo o impacto do regime legal em vigor na litigiosidade nas varas de família.
Não é demais enfático lembrar que, com o recente reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, a demanda por partilha de bens legalmente presumidos de ambos os companheiros irá incorporar mais estar parcela de litigiosidade ainda não mensurável.
A evolução do regime legal de bens no matrimônio tem caminhado no sentido de sua extinção, ante a patente desinstitucionalização da família, transmutada em locus de realização do indivíduo, cuja manutenção é justificada apenas enquanto realiza esta dimensão existencial.
Maria Berenice Dias corrobora (DIAS, 2004, p. 46):
A exaustiva regulamentação da união estável a faz objeto de um dirigismo estatal não querido pelos conviventes. Como são relações de caráter privado, cabe questionar a legitimidade de sua publicização. Passou o Estado a regular não só os vínculos que buscam o respaldo legal para se constituir, mas também os relacionamentos que escolhem seus próprios caminhos e que não desejam qualquer interferência. (…) No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem razões, morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais, que justifiquem essa excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas. A esfera privada das relações conjugais tende cada vez mais a repudiar a interferência do público, não se podendo deixar de concluir que está ocorrendo uma verdadeira estatização do afeto.