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Os disparates sócio-jurídicos da ‘lei seca’

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16/12/2013 às 06:45
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CLIMA DE INSEGURANÇA E TERROR GERADOS ENTRE A POPULAÇÃO

Sob o pretexto de se combater o morticínio no trânsito, limita-se que o cidadão ingira qualquer quantidade de álcool sem que este possa saber, ao certo, quando poderá assumir a direção de seu veículo (se 2 horas ou 6 horas depois), trazendo à sociedade um estado de insegurança, com o temor de o cidadão vir a sofrer as desproporcionais medidas administrativas e criminais que a lei carrega consigo.

Mesmo aquele cidadão que acidentalmente ingira álcool, quando sói acontecer ao se comer um bombom de licor ou pratos flambados, poderá ser flagrado no bafômetro e acabar detido pelo delito de ingerir comida à base de álcool (!)

O álcool está inserido em nossa cultura há mais de 500 anos, constituindo-se a “lei seca” numa clara afronta ao Volksgeist (espírito do povo) no campo sócio-cultural, sendo usual o hábito de beber entre os mais diversos estratos sociais.

Beber moderadamente e dirigir é um costume que não precisa de validade formal, pois sua vigência formal é resultante de uma prática habitual, socialmente eficaz, e como tal reconhecida, o que não poderia suscitar sua posterior invalidade e criminalização, como pretende a “lei seca”.

Tal hábito consiste em ato consciente do ser humano que, por atender a uma exigência social, passa a ser imitado e repetido, até transformar-se em um ato consciente no todo social, estando a “lei seca” na verdadeira contramão dos usos e costumes do brasileiro.

Tomar um ou dois chopps ou uma taça de vinho e depois pegar na direção virou crime, o que se mostra antagônico ao sentimento social de justiça:

Todo comportamento que, a despeito de ser considerado criminoso pela lei, não afrontar o sentimento social de justiça (aquilo que a sociedade tem por justo) não pode ser considerado criminoso (...) por conseguinte, as condutas aceitas socialmente e consideradas normais não podem sofrer este tipo de valoração negativa, sob pena de a lei incriminadora padecer do vício de inconstitucionalidade.” [17] [GRIFAMOS]

A criminalização do choppinho ou de uma taça de vinho é, sem duvida alguma, um furor tirânico do legislador não condizente com um Estado que se declara como Democrático de Direito.

Se o choppinho ou a taça de vinho fossem em si tão nocivos, haveria que se criminalizar o próprio congressista que trabalhasse “sob qualquer concentração de álcool”, não havendo dúvida de que o prejuízo à população brasileira é muito maior com leis iníquas do que com mortes no trânsito, pois as primeiras perpetuam seus efeitos no tempo, ao passo que as últimas são reduzidas com competentes políticas públicas, o que não é o caso da atual “lei seca”.

Há, ainda, a questão religiosa, pois embora o Estado seja laico, ele deve respeitar a jurisdição interna das religiões sobre seus rituais litúrgicos, os quais incluem o consumo de álcool.  Porém, esse direito é simplesmente desrespeitado em razão desta proibição implícita e indireta decorrente da “tolerância zero”, malferindo o artigo 12 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Agride-se também, de forma injustificável, o princípio constitucional da livre iniciativa (artigo 170).  A então pujante indústria nacional de cervejas e cachaças artesanais, por exemplo, se vê obrigada a refrear seu crescimento e cessar maior geração de empregos em razão de tais medidas repressivas que se acrescem às já conhecidas sobretaxas da legislação tributária no âmbito deste mercado.

Ora, privar um povo sofrido como o brasileiro do simplório hábito de beber sem dúvida alguma representa ato opressivo que merece ser repudiado pelo Judiciário, o que legitima inclusive a desobediência civil:

“O direito de resistência e a desobediência civil vêm tratados, por Maria Helena Diniz, como formas diversificadas de manifestação, a resistência contra o abuso de poder que exerce opressão irremediável ‘que, no sentido amplo, reconhece aos cidadãos, em certas condições, a recusa à obediência, a oposição às normas injustas, à resistência, à opressão e à revolução’.”[18]


A DESTRUIÇÃO DA GARANTIA DA NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO

Se a tolerância zero é resultado da indigência mental do legislador, é conseqüência também da sua indolência em empenhar-se no estabelecimento de critérios racionais que possam se adequar ao caso concreto sem simultaneamente esmagar a garantia fundamental da “não auto-incriminação”.

Com efeito, o Pacto de São José da Costa Rica é um Tratado de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário, sendo certo que a Emenda nº 45/2004 elevou todos os tratados de direitos humanos ao patamar de Emenda Constitucional.

O Pacto em questão estabelece como garantia individual o direito de não produzir prova contra si:

“Artigo 8º - Garantias judiciais

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(...)

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;” [GRIFAMOS]

O Supremo Tribunal já teve oportunidade de se manifestar concretamente aplicando a referida garantia:

“1. A Constituição Federal assegura aos presos o direito ao silêncio (inciso LXIII do art. 5º). Nessa mesma linha de orientação, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Pacto de São José da Costa Rica) institucionaliza o princípio da “não-auto-incriminação” (nemo tenetur se detegere). Esse direito subjetivo de não se auto-incriminar constitui uma das mais eminentes formas de densificação da garantia do devido processo penal e do direito à presunção de não-culpabilidade (inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal). A revelar, primeiro, que o processo penal é o espaço de atuação apropriada para o órgão de acusação demonstrar por modo robusto a autoria e a materialidade do delito. Órgão que não pode se esquivar da incumbência de fazer da instrução criminal a sua estratégia oportunidade de produzir material probatório substancialmente sólido em termos de comprovação da existência de fato típico e ilícito, além da culpabilidade do acusado.

2. A presunção de não-culpabilidade trata, mais do que de uma garantia, de um direito substantivo. Direito material que tem por conteúdo a presunção de não-culpabilidade. Esse o bem jurídico substantivamente tutelado pela Constituição; ou seja, a presunção de não-culpabilidade como o próprio conteúdo de um direito substantivo de matriz constitucional. Logo, o direito à presunção de não-culpabilidade é situação jurídica ativa ainda mais densa ou de mais forte carga protetiva do que a simples presunção de inocência.”[19] [GRIFAMOS]

A lei em fulcro manda o motorista soprar o bafômetro, sob pena de sofrer medidas administrativas extremamente desproporcionais (multa, apreensão do veículo, suspensão do direito de dirigir) e sem a garantia do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV).

Alterações recentes, aliás, com o escopo de desvencilhar-se da garantia da não auto-incriminação, denotam o desespero do legislador em “punir a qualquer preço”, que culminaram na redação do atabalhoado § 2º do art. 277 do CTB:

“Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado

(...)

§ 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.”

A norma em questão confere super-poderes ao agente de trânsito para atestar embriaguez sem qualquer perícia ou exame clínico.

Antes mesmo da alteração, Paulo Rangel acentuava o erro do legislador:

“Perceba que quem irá atestar a possível embriaguez ao volante é o “guarda da esquina”, ou seja, uma pessoa despreparada, sem qualificação profissional para tal mister.  Trata-se do desespero do legislador em querer diminuir a violência do trânsito, através da violência persecutória da lei.”[20]

Nesta parte, o Código de Trânsito Brasileiro padece de vício (material) de inconstitucionalidade, pois fere tanto o disposto no inciso LVII quanto no inciso LXIII do art. 5º da CRFB, o que, aliás, já foi reconhecido pela Procuradoria Geral da República nos autos da ADI nº 4.103, proposta pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel).

As garantias da não auto-incriminação e da presunção de não-culpabilidade não se limitam à seara processual penal, pois, no direito administrativo sancionador, “como se trata de processo acusatório, deve reconhecer-se a incidência, por analogia, de alguns axiomas consagrados no âmbito do Direito Penal e Processual Penal”[21]?

Celso Bandeira de Mello complementa:

“Reconhece-se a natureza administrativa de uma infração pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la.  Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais.  O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção, conforme correto e claríssimo ensinamento, que boamente sufragamos, de Heraldo Garcia Vitta.”[22] [GRIFAMOS]

Ora, os direitos e garantias individuais fundamentais são cláusula pétrea nos termos do art. 60, § 4º, inciso IV, sendo certo que assim o é a garantia da não auto-incriminação (Nemo tenetur se detegere), cujos fundamentos decorrem de vários princípios constitucionais, entre os quais o Princípio do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa e do Direito ao Silêncio.


DA FALTA DE RAZOABILIDADE DAS MEDIDAS SANCIONATÓRIAS E DE PROPORCIONALIDADE DA LEI SECA

A multa para quem toma um choppinho e depois pega na direção se tornou confiscatória, mais elevada até para aqueles infratores que dirigem sem habilitação (art. 162 do CTB), fazem racha (art. 173 do CTB), se excedem em velocidade (art. 218 do CTB), avançam o sinal vermelho (art. 208 do CTB) e inclusive para aqueles que andam na contramão (art. 186 do CTB), o que afronta a razoabilidade.

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Para o Estado, os fins não devem justificar os meios, pelo que à máxima da proporcionalidade incumbe o alcance da finalidade do sistema jurídico – legalidade com respeito à dignidade humana.

Aristóteles apregoava que “proporcional é um meio-termo, e o justo é o proporcional”[23].  Conseqüentemente, o injusto é a quebra da proporcionalidade.

A defesa da viabilidade da “lei seca” se assenta, grosso modo, na defesa dos “direitos à vida e à saúde”, sendo utilizados convenientemente para a restrição dos direitos fundamentais dos consumidores de álcool.

O Princípio da Proporcionalidade é um princípio implícito da Constituição Federal, que funciona na prática como contenção ao arbítrio do Estado, a fim de que se amolde numa tríplice dimensão de (1) adequação, (2) necessidade e (3) proporcionalidade em sentido estrito.

Averba J.J. Gomes Canotilho que o sub-princípio da conformidade ou adequação:

“Impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deva ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes.”[24]

O meio é adequado quando com seu auxílio se pode promover o resultado desejado.  Ora, a “lei seca”, apesar de sua “tolerância zero”, já se mostra inadequada em vista de sua ineficácia, mesmo após 5 anos de intensa fiscalização não conseguiu reduzir os números de acidentes, pois a sociedade insiste em não perceber a ausência de correlação linear entre o consumo de álcool e os acidentes de trânsito.

Nas lições, ainda, do eminente constitucionalista português, o sub-princípio da exigibilidade, também conhecido como o sub-princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, coloca a tônica na idéia de que o cidadão tem o direito à menor desvantagem possível:

“Assim exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão.”[25]

Era, pois, o caso da norma original, que não cuidava de incidir de forma geral e abstrata sobre enorme contingente da população, mas, ao contrário, de forma sutil e casuística.

Quanto ao sub-princípio da proporcionalidade stricto sensu, é a ponderação propriamente dita de bens, a ponto de representar na prática um mal maior do que aquele que se pretende combater.

Ora, à luz das já expostas sábias lições de Aristóteles, resta bem claro o divórcio entre o meio empregado e as exigências éticas da justiça e do bem comum (artigo 5º da LICC), sendo uma lei visceralmente anti-social.


DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS PENAS

Além disso, a “lei seca” é um verdadeiro atentado ao bom senso e à garantia fundamental da individualização das penas (artigo 5º, inciso XLVI da CRFB), pois o mesmo rigor (administrativa e penalmente) é adotado para quem toma um só choppinho e para quem bebe uma garrafa de uísque e depois assumirá a direção, o que não se concretizaria se fosse estabelecido um mínimo denominador comum pautado num padrão estatístico mediano:

“Visando a atingir o maior número possível de situações, a norma jurídica é abstrata, regulando os casos dentro do seu denominador comum, ou seja, como ocorrem via de regra.  Se o método legislativo pretendesse abandonar a abstratividade em favor da casuística, para alcançar os fatos como ocorrem singularmente, como todas as suas variações e matizes, além de se produzirem leis e códigos muito mais extensos, o legislador não lograria o seu objetivo, pois a vida social é mais rica do que a imaginação do homem e cria sempre acontecimentos novos e de formas imprevisíveis.  Benedetto Croce, ao formular a noção da lei, refere-se à sua condição abstrata: ‘lege é um atto volitivo che ha per contenuto una serie o classe di azioni.’”[26] [GRIFAMOS]

O artigo 165 do CTB tem hoje a seguinte redação:

“Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Infração - gravíssima; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

(Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.

Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)”

Logo se vê que:

“Desde a Lei 11.705/2008, não importa mais o teor ou a quantidade de álcool encontrada no sangue.  Basta a constatação de álcool ou de substância psicoativa no sangue para caracterizar a infração.  Qualquer quantidade de álcool no sangue do condutor já é capaz de produzir as punições administrativas.  Basta um bombom de licor ou algum enxaguante bucal com álcool, ou 200ml de cerveja, para evidenciar a substância alcoólica, o que importará na aplicação das penalidades administrativas.  Embora o dispositivo contenha os dizeres ‘sob influência de álcool ou substância psicoativa’, a sua simples presença no sangue tipifica a infração.  Não mais se estabelece um limite mínimo de concentração para caracterizar o estado alcoólico, como ocorria antes da Lei 11.705/2008.  Em decorrência, apurada a existência de álcool no sangue, já se verifica a influência de álcool ou substância psicoativa.”[27] [GRIFAMOS]

Assim, não faz diferença se a pessoa comeu um bombom de licor ou bebeu uma garrafa de cachaça: a pena é idêntica, o que é, sem dúvida alguma, um retumbante absurdo, e que viola, ainda por cima, o artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal pela falta de individualização de penas.

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Sobre o autor
ROBERTO FLAVIO CAVALCANTI

Advogado (UFRJ-2008), Contador (UERJ-2011). Graduado também em Administração de Empresas (UFRJ-1996).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, ROBERTO FLAVIO CAVALCANTI. Os disparates sócio-jurídicos da ‘lei seca’. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3820, 16 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26155. Acesso em: 22 nov. 2024.

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