3. IMUNIDADES
3.1. Noções gerais
Em linhas iniciais, imperioso é fazer a diferenciação entre imunidades e isenções, tendo em vista a grande confusão que o tema ainda pode gerar.
Para Regina Costa, a imunidade apresenta natureza dúplice, de modo que “de um lado exsurge como norma constitucional demarcatória de competência tributária, por continente de hipótese de intributabilidade, e, de outro, constitui direito público subjetivo das pessoas direta e indiretamente por ela favorecidas”39.
Noutra via, em curtas palavras, Ricardo Lobo aduz que as isenções “consistem na autolimitação do poder fiscal, porque objeto de concessão do legislador”40.
Observando com mais percuciência, é possível perceber que ambas as espécies acima são corolários da competência tributária atribuída aos entes federativos.
Outro ponto que se destaca na comparação entre ambas, só que desta vez em forma de distinção, se dá na incidência do tributo. Ao passo que na primeira hipótese (imunidade) não há que se falar em incidência, na segunda (isenção) esta é possível de ocorrer, só que por conta de um autorizativo legal do legislador, essa incidência é obstada antes de se tornar efetiva.
Hugo de Brito arremata as diferenças essências da seguinte forma:
O que distingue, em essência, a isenção da imunidade é a posição desta última e plano hierárquico superior. Daí decorrem consequências da maior importância, tendo-se em vista que a imunidade, exatamente porque estabelecida em norma residente na Constituição, corporifica princípio superior dentro do ordenamento jurídico, a servir de bússola para o intérprete, que ao buscar o sentido e o alcance da norma imunizante não pode ficar preso à sua literalidade.
Ainda que na Constituição esteja escrito que determinada situação é de isenção, na verdade de isenção não se cuida, mas de imunidade. E se a lei porventura referir-se a hipótese de imunidade, sem estar apenas reproduzindo, inutilmente, norma da Constituição, a hipótese não será de imunidade, mas de isenção.41
Em suma, essas são, basicamente, as diferenças existentes entre imunidades e isenções.
3.2. Fundamentação constitucional
É consabido que os princípios são os pilares de todo o direito. Eles estão presentes em todos os ramos e esferas de atuação. Não é diferente quando se fala em direito tributário, neste caso, precisamente, do constante na Constituição.
Leandro Paulsen nos faz um alerta sobre as imunidades na Constituição Federal. Para o autor,
o texto constitucional não refere expressamente o termo “imunidade”. Utiliza-se de outras expressões: veda a instituição de tributo, determina a gratuidade de determinados serviços que ensejariam a cobrança de taxa, fala de isenção, de não incidência etc. Mas, em todos esses casos, em se tratando de norma constitucional, impede a tributação, estabelecendo, pois, o que se convencionou denominar de imunidades.42
Tendo em vista que as imunidades estão atreladas às competências dos entes federativos, devem estar abrigadas na Constituição Federal.
Tanto é que são tidas pela doutrina tributarista como “numerus clausus”43.
Assim, qualquer espécie de imunidade tributária deve estar prevista no texto constitucional, sob pena ser considerado como isenção ou puramente como hipótese de não incidência, mas nunca imunidade.
Noutra banda, é importante lembrar, ainda, que um dos mais importantes, se não o mais importante deles, reside na igualdade e autonomia constitucionais que o artigo 1844 da Carta Magna vigente atribui aos entes federativos.
Aliomar Baleeiro resume os fundamentos constitucionais da imunidade recíproca da seguinte forma:
Como sabemos, a imunidade recíproca assenta-se basicamente no princípio federal. Esse princípio, consagrado desde a primeira Constituição republicana brasileira, informa o Estado, no qual tanto as descentralizações político-jurídicas regionais e locais (Estados e Municípios) como a Federação (ou União) têm natureza estatal.45
3.3. Tributos passíveis de aplicação
Tendo em vista a literalidade do artigo 150, inciso VI, o qual prevê que é vedado aos entes instituírem impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros, assim como a incompatibilidade de extensão do benefício às demais espécies de tributos, é possível afirmar, de plano, que a imunidade recíproca somente tem lugar para os impostos.
Inobstante a essa constatação rápida, vemos que a mais abalizada doutrina e jurisprudência reproduzem esse entendimento no mundo jurídico.
Nessa linha, Mauro Luis Rocha aduz que
a imunidade recíproca alcança apenas a específica figura do imposto, não sendo extensível a taxas e contribuições. É verdade que muitos desses tributos não são cobrados de entidades públicas, mas isso se deve a favores fiscais (isenções) concedidos por leis das entidades que desempenham as atividades remuneradas por eles. A Lei nº 9.289/1996, por exemplo, ao tratar da taxa judiciária no âmbito da Justiça Federal, isenta do tributo as entidades públicas federativas, além de suas autarquias e fundações, consoante os termos de seu art. 4º, inciso I.46
Antonio Roque Carrazza vai além e assevera que a imunidade recíproca estende-se a todos os impostos. Para chegar a essa conclusão, sustenta esse entendimento com dois argumentos, quais sejam:
O primeiro: a Constituição usou, nesta passagem (como em tantas outras), de uma linguagem econômica e, portanto, não-jurídica. Lembramos que, para a Economia, todos os impostos ou são sobre a renda, ou sobre o patrimônio ou sobre serviços. Assim, por exemplo, para a Economia, são impostos sobre o patrimônio, dentre outros: a) o imposto sobre grandes fortunas; b) o imposto territorial rural; c) o imposto sobre a propriedade de veículos automotores; e d) o imposto predial e territorial urbano. Já para o Direito, eles são impostos diferentes: os dois primeiros, de competência privativa da União; o terceiro, dos Estados-membros; o último dos Municípios. Em suma, quando aludiu aos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços, ela, na verdade, fez referência a todos eles, sem exceção.
O Segundo: conforme já vimos, ainda que a Constituição tivesse silenciado a respeito, as pessoas políticas não poderiam exigir, umas das outras, impostos, exatamente para não destruí-las ou criar-lhes dificuldades de funcionamento.47
Frise-se que a extensão se dá a todos os impostos, não a todos os tributos como pode parecer a primeira vista.
Lado outro, a própria Constituição Federal de 1988 excepcionou, por meio do § 4º do artigo 150, o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário.
Por fim, é possível concluir, então, que as taxas, as contribuições de melhoria, os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais não foram abarcadas pela imunidade intragovernamental.
3.4. Destinatários expressos
Antes de apontar os beneficiários expressos da referida imunidade, importante se faz uma análise, ainda que superficial, acerca das limitações opostas ao intérprete constitucional, tendo em vista que, consequentemente, esses freios terão reflexos em todos os mecanismos utilizados para se fixar entendimentos sobre as normas constitucionais.
Gilmar Mendes e outros entendem que essa questão não reside na hermenêutica jurídica, mas nos comandos da difusão compassiva. Para eles, “a questão dos limites da interpretação não é um problema próprio da hermenêutica jurídica, nem muito menos da interpretação especificamente constitucional, antes se colocando em todos os domínios da comunicação humana.”48
Segundo doutrina autorizada, os princípios da segurança jurídica e da certeza são uns dos principais freios à interpretação constitucional, já que são cânones hermenêuticos do direito.
Basicamente, os destinatários expressos das imunidades consagradas na Carta Magna estão previstos em seu artigo 150, inciso VI, in verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[omissis].
VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
b) templos de qualquer culto;
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
[omissis].
§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
Dentre alguns deles, estão os entes que compõe a federação (alínea “a” do inciso VI) e as autarquias e as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público (§ 2º), que são os que mais nos interessam, pois guardam estreita relação na composição da Administração Pública.
É sabido e consabido que a Administração Pública é subdividida em direta e indireta. Aquela, “é o conjunto de órgãos que integram as pessoas federativas, aos quais foi atribuída a competência para o exercício, de forma centralizada, das atividades administrativas do Estado49”, ao passo que esta é a junção dos demais entes que são mantidos e organizados pelo Estado.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro,
compõem a Administração Indireta, no direito positivo brasileiro, as autarquias, as fundações instituídas pelo Poder Público, as sociedades de economia mista, as empresas públicas e os consórcios públicos. Tecnicamente falando, dever-se-iam incluir as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, constituídas ou não com participação acionária do Estado.
Dessas entidades, a autarquia é pessoa jurídica de direito público; a fundação e o consórcio público podem ser de direito público ou privado, dependendo do regime que lhes for atribuído pela lei instituidora; as demais são pessoas jurídicas de direito privado.50 (grifo no original)
Destarte, a que mais apresenta pertinência com o presente trabalho é a sociedade de economia mista, a qual não está prevista no rol de destinatários expressos da imunidade constante do inciso VI do artigo 150 da Constituição da República de 1988, nem tampouco no parágrafo que estendeu o benefício às autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público.
Para Celso Antonio Bandeira de Mello, a sociedade de economia mista em nível federal, a cujo conceito pode ser considerado a qualquer dos níveis estatais, há de ser entendida como a pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei, como um instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes desta sua natureza auxiliar da atuação governamental, constituída sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de sua Administração indireta, sobre remanescente acionário de propriedade particular.51
Não obstante a isso, veremos mais adiante que, a depender do preenchimento de alguns requisitos, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser possível a extensão da referida imunidade a algumas dessas pessoas jurídicas que integram a Administração Indireta.
Aliomar Baleeiro era um dos defensores de que a imunidade recíproca não deveria ser estendida a particulares. Em uma de suas obras, asseverou o seguinte, no tocante ao tema:
A imunidade recíproca, conformada dentro dos grandes princípios que a norteiam, como o federalismo e a inexistência de capacidade econômica das pessoas estatais (art. 150, VI, a e §§ 2º e 3º), norteia-se pelos seguintes critérios na Constituição de 1988:
a) o tratamento imunitório de reciprocidade entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios torna-se necessariamente deduzido da descentralização de poder, própria do Estado federal, ainda que não tivesse sido sucessivamente expresso nas Cartas Constitucionais brasileiras;
b) a imunidade recíproca não beneficia particulares, terceiros que tenham direitos reais em bens das entidades públicas, nem créditos ou rendas de outrem contra tais entidades como queria Pontes de Miranda -, cessando os “odiosos” privilégios de funcionários públicos, magistrados, parlamentares ou militares; não se estende, pelos mesmo fundamentos, aos serviços públicos concedidos, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel (art. 150, II, §§ 2º e 3º);
c) a imunidade recíproca se deduz ainda da superioridade do interesse público sobre o privado, beneficiando os bens, o patrimônio, as rendas e os serviços de cada pessoa estatal interna, como instrumentalidades para o exercício de suas funções públicas, em relação às quais não se pode falar em capacidade econômica, voltada ao lucro ou à especulação (art. 150, §§ 2º e 3º);
d) a imunidade não beneficiará atividades, rendas ou bens estranhos às tarefas essenciais das pessoas estatais e de suas autarquias, que tenham caráter especulativo ou voltadas ao desempenho econômico lucrativo, em respeito ao princípio da livre concorrência entre as empresas públicas e privadas e à tributação segundo o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, art. 173, §§ 1º e 2º);52
Não obstante os entendimentos contrários, o STF acabou por estender, inicialmente, o alcance da cláusula imunizante a uma conhecida empresa pública, a saber, a Empresa Brasileira de Correios e Telegrafos – ECT.
Quanto à referida extensão, Kiyoshi Harada aduz que
a Corte Suprema equiparou a referida empresa pública a uma autarquia, para fins do § 2º do art. 150. da CF e afastou, ao mesmo tempo, as restrições de seu § 3º. Afastou, também, as restrições dos §§ 1º e 2º do art. 173. da Carta Política, porque a ECT, enquanto prestadora de serviço público de competência privativa da União (art. 21, X, da CF), não se identifica como empresa privada, mas integra o conceito de fazenda pública. Assim, não caberia falar em quebra do princípio da livre concorrência, motivadora das restrições impostas a empresas estatais.53
Não obstante as parecenças apresentadas entre as empresas públicas e as sociedades de economia mistas, a presença de capital privado em sua composição é a dessemelhança que mais nos interessa.
Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal passou a fazê-lo também com sociedades de economia mista, desde que o referido benefício se restrinja à propriedade, bens e serviços do ente federado utilizados na prestação de serviços públicos; não haja benefício de atividades voltadas à exploração econômica; e que inexista efeito colateral relevante à quebra dos princípios da livre concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica lícita.
É o que veremos na sequência, amiúde.
Antes, porém, imperioso é justificar também a nomenclatura utilizada pelo Supremo Tribunal, qual seja, sociedade de economia mista “anômala”.
Em linhas anteriores, foi transcrito o conceito doutrinário de sociedade de economia mista.
Além disso, o STF acrescentou ao termo o verbete “anômala”, que significa, no contexto do julgamento do RE 253472/SP, que a referida sociedade de economia mista é diferente do comum, visto que, não obstante ostente natureza de direito privado, é prestadora de um específico serviço público, tal como ocorre com a Empresa de Correios e Telégrafos – ECT.
O termo acrescentado às sociedades de economia mistas (anômala), foi utilizado, por exemplo, no julgamento do AI 558.682 AgR54 e do AI 551556 AgR55, restando transcrito em suas respectivas ementas.
Em suma, a sociedade de economia mista anômala é aquela que, não obstante seja marcada por ser uma pessoa jurídica de direito privado, foi concebida para a prestação de serviço público, isto é, caracteriza-se inequivocamente como instrumentalidade estatal.