SUMÁRIO: Introdução 1. Os direitos da personalidade; 2. Os direitos da personalidade e o trabalhador portador do vírus HIV: a fase pré-contratual; 3. A proteção contra a dispensa discriminatória do trabalhador portador do vírus HIV; Conclusão.
INTRODUÇÃO
Com a modernidade vem a modernização; com esta, surge a novidade; e, com ela, a inovação. Todavia, nem sempre o novo tem sentido ou valor positivo. Tal processo se verifica nas mais diversas áreas de atuação humana. O Direito do Trabalho precisou inovar para contemplar situações advindas de uma "novidade" na seara laboral: o aparecimento do vírus HIV e, consequentemente, da doença AIDS, que vitima milhares de trabalhadores brasileiros. Daí a necessidade de se tratar este tema tão moderno quanto delicado no campo de atuação do Direito do Trabalho.
1 Os direitos da personalidade
A ideia de proteção aos direitos da personalidade do ser humano representa algo próprio e inerente à sua natureza de que irradiam direitos fundamentais ao seu pleno desenvolvimento e necessários à preservação dos seus aspectos físico, psíquico, moral e intelectual. Violados quaisquer direitos da personalidade do trabalhador, estar-se-á violando a sua dignidade.
Por direitos da personalidade, ou direitos do homem, devem-se entender:
[...] aqueles que o ser humano tem em face de sua própria condição. São direitos naturais, ou inatos, impostergáveis, anteriores ao Estado e inerentes à natureza livre do homem. Referem-se à própria pessoa, tendo como objeto seus atributos e, como fundamento, a própria essencialidade do ser. (KHAMIS, 2002, p. 30).
Enquanto protetores da dignidade da pessoa humana, os direitos da personalidade têm por objeto assegurar os elementos constitutivos da personalidade do ser humano, tomada nos aspectos da integridade física, psíquica, moral e intelectual da pessoa humana. Ademais, são direitos que, em tempo algum, desaparecem e nunca se separam do seu titular.
Assim, prefere-se, nesta oportunidade, classificar os direitos da personalidade entre aqueles que visam a proteger os aspectos físico, psíquico, moral e intelectual do ser humano. O direito à integridade física é aquele, por exemplo, que pretende a tutela do direito à vida, à higidez física, ao alimento, ao próprio corpo e à destinação do cadáver. O direito à integridade psíquica, por sua vez, possui a finalidade de promover a saúde mental do ser humano. O direito à integridade intelectual abrange o direito à liberdade de pensamento e de autoria científica, artística e literária e o direito de invenção. E, por último, o direito à integridade moral almeja proteger a intimidade, a honra, a vida privada, o recato, a liberdade, o nome e o pseudônimo, o segredo profissional e doméstico, a identidade pessoal, familiar e social, a imagem, a moral de autor intelectual e a voz.
De tal modo, eles possuem uma concepção jusnaturalista, pois são pertencentes ao ser humano pela sua simples condição humana. Isso faz com que independam de previsão normativa.
Como bem assinala Khamis (2002, p. 30): “Diante da complexidade do ser humano, não há como esgotar o elenco ou enumeração dos direitos dessa natureza, pois que inesgotável é o ser humano e os seus atributos”.
Neste desiderato, destaca Jabur (2000, p. 28): "Os direitos da personalidade são [...] carentes de taxação exauriente e indefectível. São todos indispensáveis ao desenrolar saudável e pleno das virtudes psicofísicas que ornamentam a pessoa".
Opta-se, assim, na presente análise, pela concepção jusnaturalista que protege os direitos da personalidade do indivíduo, independentemente de serem reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, eis que inerentes ao ser humano. A concepção jusnaturalista está ligada à ideia de que os direitos da personalidade transcendem ao direito positivado, porquanto inerentes à condição humana. Por isso, eles não podem ser enumerados de forma taxativa, sendo, portanto, inesgotáveis e ilimitados.
2 Os direitos da personalidade e o trabalhador portador do vírus HIV: a fase pré-contratual
Na fase pré-contratual, configura hipótese de afronta à intimidade do trabalhador e, por consequência, ao princípio da igualdade, a exigência de teste de HIV para fins de comprovação da AIDS. Tal exigência representa desrespeito à dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, aos princípios da igualdade e ao da não discriminação do trabalhador.
De acordo com Lima (2006, p. 135), a discriminação ocorre nas relações de trabalho, quando um ato ou um comportamento do empregador – ocorrido antes, durante ou depois da relação de trabalho – implica distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em uma característica pessoal ou social, sem motivo razoável e justificável, que tenha por resultado a quebra do igual tratamento e a destruição, o comprometimento, o impedimento, o reconhecimento ou o usufruto de direitos e de vantagens trabalhistas asseguradas, bem como de direitos fundamentais de qualquer natureza, ainda que não vinculados ou integrantes da relação de trabalho.
Assim dispõe o art. 1º da Lei 9.029/95:
Art. 1º. Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção previstas no inc. XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.
O artigo 1º da Lei 9.029/95 veda a prática de condutas discriminatórias desde o momento da contratação até a extinção do contrato de trabalho. Toda discriminação, seja ela na fase de admissão, de cumprimento do contrato ou na ruptura do contrato de trabalho, praticada em relação ao trabalhador portador do vírus HIV, irá violar a sua integridade moral, em especial: a sua intimidade, a sua vida privada, a sua honra e a sua imagem. Portanto, é inadmissível, na fase pré-contratual, que seja exigida a apresentação do teste de HIV de sorologia negativa do candidato ao emprego ou que seja imposta ao mesmo a obrigação de informar sua situação em relação ao HIV à empresa que eventualmente o contratar.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, X, dispõe que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.
No âmbito do direito internacional do trabalho, a Convenção Fundamental nº 111 da OIT trata da discriminação no emprego e na profissão. Ela fomenta promover a igualdade de oportunidades e de tratamento e formular uma política nacional que elimine toda e qualquer discriminação no emprego por motivos vários que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou de profissão.
A Convenção Fundamental nº 111 da OIT foi adotada pela Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho na sua 42ª sessão, em 25 de junho de 1958, e entrou em vigor em âmbito internacional em 15 de junho de 1960, sendo adotada pelo Brasil em 26 de novembro de 1965, e assim estipula:
Art. 1º.
§ 1º. Para os fins da presente Convenção, o termo "discriminação" compreende:
a) Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão.
b) Qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou o tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados.
[...]
§ 3º. Para os fins da presente Convenção, as palavras "emprego" e "profissão" incluem o acesso à formação profissional, ao emprego e às diferentes profissões, bem como as condições de emprego.
Art. 2º.
Qualquer Membro para o qual a presente Convenção se encontre em vigor compromete-se a formular e a aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria.
A realização, assim, de exames médicos no ato da contratação do trabalhador possui apenas o propósito de fazer com que o empregador tome conhecimento do estado geral de saúde do seu futuro empregado, a fim de verificar se este se encontra apto a desenvolver a função para a qual será contratado.
A CLT, em seu art. 168, § 2º, impõe ao empregador a realização de exame admissional ao empregado "para apuração da capacidade ou aptidão física e mental do empregado para a função que deva exercer".
Caso a conduta adotada pelo empregador na fase pré-contratual não esteja em consonância com o princípio da boa-fé objetiva, o trabalhador fará jus à indenização por danos morais. Nesta fase, então, o empregador deve limitar-se a obter dados somente no que se refere à capacidade profissional do empregado. Quando aquele não se contenta em receber dados profissionais do candidato ao emprego e decide invadir a intimidade e a vida privada deste, por investigar as suas características pessoais ou o seu estado de saúde, sem qualquer relação com a natureza da prestação de serviços ou com a organização do trabalho, restará clara a conduta discriminatória praticada pelo empregador.
Apenas em se tratando de doença infectocontagiosa, capaz de atingir outras pessoas no local de trabalho, o candidato ao emprego deve se submeter à realização do exame de identificação do vírus HIV ou congênere. Isso só irá acontecer, se a atividade a ser exercida por ele colocar em risco de contágio a coletividade. Somente em situações excepcionais é necessária a realização do exame para se constatar se o trabalhador possui capacidade para o exercício da função ou quando é necessário verificar se há ou não há risco à sua saúde ou à de outrem.
A empresa somente pode estabelecer como um dos requisitos ao exercício da função a apresentação do teste de HIV de sorologia negativa, em se tratando das seguintes funções: médicos, enfermeiros, dentistas cirurgiões, laborista que trabalha na coleta de sangue em laboratório e profissionais do sexo que atuam na realização de filmes de pornografia. São, portanto, situações em que trabalhadores poderão expor a comunidade ao risco de contágio de doenças.
Todavia, é preciso ressaltar que, independentemente do resultado do teste de HIV, o exame deve ser apresentado ao médico do trabalho encarregado da averiguação, limitando-se este ao comentário sobre a aptidão positiva ou negativa para o exercício da atividade. Logo, deve ser respeitada a privacidade e a intimidade do trabalhador, de modo que seja guardado sigilo absoluto acerca do resultado do teste de HIV, bem como dos dados pessoais do trabalhador.
O poder diretivo concedido ao empregador para que este organize a sua atividade econômica de produção não pode violar os direitos da personalidade do trabalhador. Entretanto, em alguns casos, é possível se verificar a "ofensa" em razão da especificidade do serviço prestado. Assim, se a atividade desenvolvida apresenta risco de contágio à coletividade, como é o caso, por exemplo, do trabalhador que irá laborar no banco de sangue de um hospital manuseando diretamente os instrumentos e o sangue colhido, torna-se autorizativa a exigência de exame de sangue prévio por não poder este ser portador do vírus HIV
De acordo com Simón (2000, p. 82), questões relacionadas à saúde pública funcionam como fator limitador à intimidade e à vida privada, pois a pessoa que sofre de doença grave e contagiosa tem esses direitos relativizados em decorrência do interesse coletivo de não ser alastrada tal doença.
Imperioso apontar, ainda, que não caracteriza abuso de direito a exigência emitida pelo empregador para que esta categoria de trabalhadores efetue o exame de HIV trimestralmente em mais de um laboratório no decorrer da sua prestação de serviços. Trata-se de uma medida acertada, plenamente compatível com o princípio da proporcionalidade. Contudo, não havendo o risco à coletividade, torna-se abusiva a realização do exame para a verificação de AIDS ou mesmo qualquer outro questionamento relativo a tal doença.
Segue-se, portanto, aqui, a visão de Margonar (2006, p. 196), ao defender a possibilidade de as convenções e de os acordos coletivos implementarem cláusulas que não somente proíbam a exigência de testes para o HIV, mas que também prevejam a proibição da dispensa discriminatória do empregado soropositivo. Defende-se, nesta oportunidade, ainda, tal qual a autora referenciada, a estipulação de cláusulas que assegurem a contratação de determinado percentual de portadores do vírus HIV, com o objetivo de se concretizar a igualdade material que corresponde à igualdade no plano dos fatos na realidade da vida.
3 A proteção contra a dispensa discriminatória do trabalhador portador do vírus HIV
Apesar de todas as conquistas sociais do último século, alguns direitos básicos dos cidadãos carecem de uma base mais sólida para serem incorporados pela população em geral, pelas várias esferas de governo e pela iniciativa privada. Um desses direitos é a garantia do acesso livre ao trabalho, além da sua manutenção sem discriminação.
Renault (2000, p. 128), ao tratar sobre a dispensa discriminatória do empregado portador do vírus HIV, assinala:
De todas as discriminações, talvez as de maior grau de dificuldade de superação sejam as que, como a AIDS, acarretam a perda do emprego: sem emprego, não há salário; sem salário, não há como enfrentar-se com dignidade a doença terminal. E o círculo vicioso não para aí. Na crise atual, obter novo emprego é tarefa praticamente impossível para quem é portador do vírus da AIDS ou aidético.
A AIDS, nos dizeres de Olmos (2008, p. 92), “é doença cruel, pois projeta consequências muito além do limite do corpo físico, já que atinge a intimidade e a vida em sociedade". Neste sentido, ainda ensina:
Negar ao portador do vírus da AIDS a manutenção do contrato de trabalho por ausência de lei que ampare tal pretensão é negar o direito à vida ao empregado, pois o soropositivo precisa desesperadamente garantir sua subsistência pela manutenção do seu contrato de trabalho. (OLMOS, 2008, p. 94).
No mesmo enleio, defende Teixeira (1998, p. 388) que, ao dispensar o empregado por motivo discriminatório, o empregador está exercendo o seu direito de despedir de forma não apenas arbitrária (ou seja, sem causa econômica, financeira, disciplinar, técnica ou outra prevista em lei como justificadora), mas também de forma verdadeiramente abusiva. Há um evidente abuso do direito por parte do empregador, que exerce de modo ilegítimo um direito (abstratamente) legítimo. A resilição contratual se efetiva de modo contrário à sua finalidade, pois não se visa apenas a por fim a uma relação de emprego, mas, sim, a prejudicar um empregado por motivo discriminatório, punindo-o com o desemprego em virtude de visão preconceituosa da entidade patronal. Embora, abstratamente, seja legítimo o direito de despedir, exercido em tais moldes, o direito se revela irregular e anormal em completo desvio de sua função social.
Logo, a dispensa discriminatória apresenta “feição excessivamente antissocial, contrária não apenas aos princípios do Direito do Trabalho, mas igualmente antagônica aos mais basilares interesses do Estado e de toda a sociedade". (TEIXEIRA, 1998, p. 388).
Ademais, a dispensa praticada de forma discriminatória do empregado portador do vírus HIV poderá lesionar não só a sua imagem-atributo, mas também a sua honra objetiva bem como a subjetiva. Destaque-se que a imagem-atributo representa a impressão que os outros têm a respeito de uma determinada pessoa.
De acordo com Romita (2009, p. 167), a imagem-atributo se relaciona com a intimidade, com a vida privada, com a honra e revela-se no trato das relações sociais mantidas pela pessoa, aproximando-se da reputação. Esta consiste, assim, em um conjunto de atos, gestos e palavras que podem manchar a imagem-atributo da pessoa.
A honra subjetiva, por sua vez, nos dizeres de Bittar (1995, p. 133), alcança o sentimento pessoal de estima ou a consciência da própria dignidade, ao passo que a honra objetiva compreende o bom nome e a fama que a pessoa desfruta no seio da coletividade, ou seja, a estima que a cerca nos seus ambientes familiar, profissional, comercial, entre outros.
Ainda segundo Bittar (1995, p. 134), no que tange ao direito à honra objetiva:
A pessoa é tomada frente à sociedade, no círculo social em que se insere, em função do valor ínsito à consideração social. Daí, a violação produz reflexos na sociedade, acarretando, para o lesado, diminuição social, com consequências pessoais (humilhação, constrangimento, vergonha) e patrimoniais (no campo econômico, como abalo de conceito profissional). Com efeito, sendo a honra, objetivamente, atributo valorativo da pessoa na sociedade (pessoa como ente social), a lesão se reflete, de imediato, na opinião pública, considerando-se perpetrável por qualquer meio possível de comunicação (escrito, verbal, sonoro).
A Constituição Federal de 1988 regula, no âmbito do direito constitucional do trabalho, dispositivos que visam a assegurar a proteção contra qualquer prática discriminatória. O art. 3º, IV, da CF/88 assinala que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação. Já o art. 5º da Carta Magna assinala que todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, sendo homens e mulheres iguais em direitos e obrigações. Há, também, que se destacarem os incisos XXX e XXXI, do art. 7º, da CF/88, ao se estabelecer a proibição quanto à diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, sendo igualmente proibida qualquer discriminação no tocante a salários e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.
Não obstante haver Lei específica que assegure aos empregados portadores do vírus HIV a manutenção do seu contrato de trabalho, pode-se, por meio de uma interpretação extensiva ou analógica, estabelecer-se a aplicação da Lei 9.029/1995 ao empregado que sofre discriminação por motivo de doença. A propósito, dispõe o art. 8º da CLT:
Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
Pode-se afirmar, ainda, que a própria Constituição Federal de 1988, por ser a fonte de todo o ordenamento jurídico brasileiro, constitui o fundamento da ausência de previsão legislativa relativa à manutenção do contrato de trabalho do empregado que sofre discriminação por motivo de doença. Ao lançar, em seu texto, como fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, os princípios constitucionais da dignidade humana e do valor social do trabalho, o constituinte quis estabelecê-los como condição suficiente para sanar todas as lacunas ou omissões da Lei acerca da proibição de qualquer conduta discriminatória praticada no âmbito das relações trabalhistas, seja durante a fase pré-contratual, no cumprimento do contrato de trabalho ou durante a demissão ou na fase pós-contratual.
Ademais, a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e fim da ordem econômica, foi elevada à categoria de princípio fundamental, assumindo o status de norma estruturante de todo o ordenamento jurídico brasileiro, vinculando as ações da iniciativa privada e do Estado.
Em face disso, atesta Moraes (2003, p. 127): “Os direitos das pessoas estão, assim, todos eles, garantidos pelo princípio constitucional da dignidade humana e vêm a ser concretamente protegidos pela cláusula geral de tutela da pessoa humana".
Trata-se, então, de um princípio que tem como consequência direta a valorização dos direitos da personalidade, constituindo-se em “cláusula geral de proteção da personalidade no Brasil." (SZANIAWSKI, 2005, p. 140).
A Lei 9.029/95, em seu art. 1º, estabelece a proibição de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas as hipóteses de proteção ao menor, previstas no inciso XXXIII, art. 7º, da Constituição Federal de 1988.
Apesar de a Lei 9.029/95 não fazer referência em seu art. 1º à proteção contra a prática de discriminação por motivo de doença, defende-se, aqui, o rol estabelecido em seu art. 1º como meramente exemplificativo. De tal modo, a falta de tratamento da Lei 9.029/95 quanto ao acesso ao emprego ou à estabilidade do portador do vírus HIV e do doente de AIDS não afasta a proteção jurídica e social contra a prática de qualquer conduta discriminatória que possa ser praticada contra este trabalhador, em especial, a sua dispensa discriminatória, mesmo porque esta Lei traz expresso em seu texto: “[...] fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória [...]”.
Imperioso registrar que o estudo dos direitos da personalidade tem como base primordial o princípio da dignidade da pessoa humana.
De tal modo, manifesta-se Szaniawski (2005, p. 138):
A Constituição Federal edifica o direito geral da personalidade a partir de determinados princípios fundamentais nela inseridos, provenientes de um princípio matriz, que consiste no princípio da dignidade da pessoa humana, que funciona como cláusula geral de tutela da personalidade. A pilastra central, a viga mestra sobre a qual se sustenta o direito geral da personalidade, está consagrada no inc. III, do art. 1º, da Constituição, consistindo no princípio da dignidade da pessoa humana. As outras colunas de sustentação do sistema de tutela da personalidade consistem no direito fundamental de toda pessoa possuir um patrimônio mínimo, previsto no Título II, do art. 5º, inciso XXIII, e no Título VII, Capítulos II e III; e os demais princípios, consagrados no Título VIII, garantido, no Capítulo II, a toda pessoa, o exercício do direito à saúde; no Capítulo VI, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a fim de poder exercer seu direito à vida com o máximo de qualidade de vida; e, no Capítulo VII, o direito de possuir uma família e de planejá-la, de acordo com os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Todos estes princípios, segundo podemos constatar, asseguram a tutela da personalidade humana segundo a atuação de uma cláusula geral.
Já pelo magistério de Silva Neto (2005, p. 70), o pressuposto teleológico de todo o sistema normativo brasileiro – que é a dignidade da pessoa humana – é suficiente para fazer eclodir uma rede de proteção aos direitos da personalidade no âmbito da relação de emprego, impedindo que sejam perpetradas transgressões contra os empregados destinadas a limitar os direitos à intimidade, à privacidade, à incolumidade física e à imagem, bem como as práticas discriminatórias.
Neste viés, o art. 1º, III, da CF/88, ao consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana, visa a tutelar todas as categorias de direitos da personalidade. A dignidade é inerente à pessoa humana. Sendo assim, a proteção aos direitos da personalidade é cabível com a finalidade de eliminar toda e qualquer conduta que possa afrontar a dignidade da pessoa humana do trabalhador, uma vez que não há de se admitir trabalho sem respeito à sua dignidade e ao seu valor.
De acordo com Gurgel (2012, p. 50): “O fundamento principal de todo o ordenamento jurídico ocidental é o princípio da dignidade da pessoa humana, agregado ao princípio da igualdade e não discriminação".
Assim, também conforme Gurgel (2012, p. 51), toda e qualquer forma de discriminação baseada em razões como raça, sexo, cor, estado civil, orientação sexual, idade, nacionalidade ou condição física, além de arbitrária, contrariará o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesta linha de raciocínio, se o empregado portador do vírus HIV for dispensado por ato discriminatório, ele fará jus à reintegração no emprego. Considera-se, então, a sua despedida arbitrária e sem justa causa como presumidamente discriminatória, devendo ser considerada nula e afastada pela Justiça do Trabalho, em decorrência da dificuldade que este trabalhador possui para ter acesso a um novo emprego. Logo, defende-se, nesta oportunidade, a adoção da presunção em favor do empregado, mesmo que não haja Lei específica dispondo sobre a dispensa discriminatória do trabalhador portador do vírus HIV.
Khamis (2002, p. 84-86) assinala que agrava ainda mais a situação, se o trabalhador já desenvolveu a doença com sinais exteriores evidentes. Tem este, assim, o direito de permanecer no emprego, mantendo integralmente o contrato de trabalho; e a despedida, em tal caso, será, além de arbitrária, considerada obstativa à obtenção dos benefícios previdenciários, como a concessão de auxílio doença, ou aos benefícios do convênio de saúde pelo empregador. A despedida, nessa situação, não surtirá qualquer efeito, por ser nula; e a reintegração também deverá ser aplicada. A reintegração, desse modo, nos dizeres de Khamis:
É medida que desde logo se impõe como forma de assegurar ao trabalhador a manutenção do emprego, a percepção de salários e benefícios, a utilização dos serviços médicos e previdenciários e outros à disposição, além da restauração de sua autoestima e afirmação de sua capacidade intelectual e profissional. (KHAMIS, 2002, p. 86).
Maurício Godinho Delgado, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, em brilhante decisão proferida no TST, já admitiu a presunção discriminatória do empregado portador do vírus HIV na relação de emprego. Veja-se:
RECURSO DE REVISTA. REINTEGRAÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS HIV. PRESUNÇÃO DE DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Presume-se discriminatória a ruptura arbitrária, quando não comprovado um motivo justificável, em face de circunstancial debilidade física causada pela grave doença em comento (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - AIDS) e da realidade que, ainda nos tempos atuais, se (sic) observa no seio da sociedade, no que toca à discriminação e ao preconceito do portador do vírus HIV. A AIDS ainda é uma doença que apresenta repercussões estigmatizantes na sociedade e, em particular, no mundo do trabalho. Nesse contexto, a matéria deve ser analisada à luz dos princípios constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana, à não discriminação e à função social do trabalho e da propriedade (art. 1º, III, IV; 3º, IV, e 170 da CF/88). Não se olvide, outrossim, que faz parte do compromisso do Brasil, também na ordem internacional (Convenção nº 111 da OIT), o rechaçamento a toda forma de discriminação no âmbito laboral. É, portanto, papel do Judiciário Trabalhista, considerando a máxima eficiência que se deve extrair dos princípios constitucionais, a concretização dos direitos fundamentais relativamente à efetiva tutela antidiscriminatória do trabalhador portador de doença grave e estigmatizante, como a AIDS. Pesa ainda mais a presunção de discriminação, no caso concreto, o fato de a Reclamada cessar o contrato de emprego com base em teste de produtividade, no qual o Reclamante certamente seria prejudicado em virtude do debilitado estado de saúde e do tratamento a que se submetia, ainda que tivesse sido facilitado pela Reclamada. Recurso de revista conhecido e provido. (TST-RR-317800-64.2008.5.12.0054, Relator: Ministro Maurício Godinho Delgado, 6ª Turma, DEJT - 10 jun. 2011).
Portanto, a dispensa sem justa causa ou arbitrária do empregado portador do vírus HIV gera a presunção da prática de conduta discriminatória pelo empregador. A presunção, contudo, é considerada juris tantum, admitindo prova em contrário, em decorrência de o empregador poder se utilizar, durante a instrução processual, de outros meios de prova para elidir a presunção de discriminação.
Relata Villaça (2002, p. 58) que o fato de uma pessoa ser portadora do vírus HIV ou de ter contraído doença grave e transmissível não acarreta a limitação de suas liberdades públicas e de sua cidadania. A pessoa pode exercer toda e qualquer atividade para o seu desenvolvimento intelectual, profissional e para as suas realizações pessoais, assim como também defender-se de atentados à sua vida, à sua integridade física e à sua intimidade.
Sob tal prisma, na presente análise, segue-se a visão do autor ora referenciado de que, na atualidade, o portador do vírus HIV possui plenas condições de ter uma vida longa, com dignidade e com qualidade. Destaque-se, ainda, que a morte do indivíduo não está ligada apenas ao aspecto físico. Na realidade, a sua morte está relacionada ao atentado praticado contra a sua vida em razão da conduta discriminatória adotada contra este ser humano, o que consiste na sua morte social ou na sua exclusão do seio da sociedade.
Neste aspecto, atesta Reis Júnior (2005, p. 59) que, em se tratando de dispensa de empregado soropositivo, a presunção se justifica em virtude da quase impossibilidade de se comprovar, em Juízo, o ato discriminatório perpetrado. Até mesmo a prova testemunhal – que seria a mais racionalmente cogitada na hipótese – tem sua produção pouco provável, na medida em que tais atos, por tão arbitrários e socialmente repugnantes, em geral não se concretizam diante de terceiros.
É neste viés que se considera aqui a dignidade da pessoa como o pressuposto primaz ou o próprio fundamento dos direitos da personalidade, tendo-se em vista que “promover e proteger a dignidade da pessoa apresenta-se como diretriz calcada na segurança jurídica, elemento introjetado no paradigma do Estado Democrático de Direito". (DELGADO, G. N., 2012, p. 62-63).
Imperioso observar que, em setembro de 2012, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como com o pensamento já devidamente sedimentado pela doutrina e pela jurisprudência brasileira quanto à presunção discriminatória do empregado portador do vírus HIV – conforme visto no presente texto – alterou inúmeras súmulas e orientações jurisprudenciais (OJs). Dentre as principais mudanças advindas da 2ª semana de alterações e cancelamentos das novas súmulas do TST, destaca-se a Súmula 443, que garante a reintegração ao empregado portador de HIV ou de outra doença grave que tenha sido dispensado sem justa causa, nos seguintes termos:
DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO. Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego. (TST- DEJT – set. 2012).