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O princípio da non reformatio in pejus e sua aplicação ao direito tributário

27/01/2014 às 10:55
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No processo administrativo fiscal, apurada alguma informação ou documentação que venha a fazer prova contra o contribuinte, inexiste vedação de reforma em seu desfavor. Permanece a discussão quanto à possibilidade dessa reforma se dar em nível recursal, pois isso suprimiria a possibilidade de recurso administrativo.

Como se sabe a regra que predomina em nosso sistema recursal brasileiro é a da proibição da chamada reformatio in pejus, no que consiste dizer que é vedada a  reforma da decisão recorrida em prejuízo do recorrente.

No campo tributário, todavia, existe grande discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a aplicação do princípio da non reformatio in pejus, predominando, no entanto, o entendimento de que é possível o agravamento da situação do contribuinte, ainda que tenha sido ele próprio a recorrer.

Para que se possa ter uma melhor compreensão do assunto é necessário que se faça uma análise dos motivos que levam a tal conclusão, senão vejamos.

É inconteste que no direito administrativo tributário se visualiza um interesse uno, mas, ao mesmo tempo, coletivo, qual seja, a realização da legalidade na atividade tributária, para que o contribuinte pague somente aquilo que deve e que o Fisco cobre somente aquilo que a lei ampara. Aliás, neste sentido a Corte Judicial Máxima de nosso País já sumulou que a Administração Pública pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais – porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivos de conveniência e oportunidade, respeitados, obviamente, os direitos adquiridos, previstos constitucionalmente (Súmulas 346 e 473).

Necessário, porém, que se façam algumas observações, afim de que se afaste um errôneo conceito de reformatio in pejus.

Nas circunstâncias acima elencadas e previstas nas Súmulas do Colendo STF, em rigor não houve reformatio in pejus, mas simples ato de controle da legalidade, pois caso assim não procedesse, a Administração estaria operando contra legem.

Assim, pode-se ver que a reformatio in pejus distingue-se do controle de legalidade, pois esse corresponde a correção da inadequação de um ato à lei, enquanto no primeiro não há juízo de legalidade, mas simples reapreciação de mérito da decisão recorrida.

Observe-se, assim, que o princípio que veda a reformatio in pejus não se aplica ao direito administrativo tributário, uma vez que a decisão pode ser reformada a qualquer tempo – dentro do prazo decadencial –, uma vez que a autoridade tem o dever de fazer o lançamento correto, sob pena de responsabilidade pessoal, posto que o erro pessoal traz reflexos para toda a coletividade.

Neste sentido veja-se o que dispõe o caput do artigo 64, da Lei Federal nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal:

 Art. 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência.

Em igual sentido vem o artigo 41 do Decreto Federal 7574/2011:

Art. 41.  Quando, em exames posteriores, diligências ou perícias realizados no curso do processo, forem verificadas incorreções, omissões ou inexatidões, de que resultem agravamento da exigência inicial, inovação ou alteração da fundamentação legal da exigência, será efetuado lançamento complementar por meio da lavratura de auto de infração complementar ou de emissão de notificação de lançamento complementar, específicos em relação à matéria modificada (Decreto no 70.235, de 1972, art. 18, § 3o, com a redação dada pela Lei no 8.748, de 1993, art. 1o). 

§ 1o  O lançamento complementar será formalizado nos casos:

I - em que seja aferível, a partir da descrição dos fatos e dos demais documentos produzidos na ação fiscal, que o autuante, no momento da formalização da exigência:

a) apurou incorretamente a base de cálculo do crédito tributário; ou

b) não incluiu na determinação do crédito tributário matéria devidamente identificada; ou

II - em que forem constatados fatos novos, subtraídos ao conhecimento da autoridade lançadora quando da ação fiscal e relacionados aos fatos geradores objeto da autuação, que impliquem agravamento da exigência inicial. 

§ 2o  O auto de infração ou a notificação de lançamento de que trata o caput terá o objetivo de:

I - complementar o lançamento original; ou

II - substituir, total ou parcialmente, o lançamento original nos casos em que a apuração do quantum devido, em face da legislação tributária aplicável, não puder ser efetuada sem a inclusão da matéria anteriormente lançada. 

§ 3o  Será concedido prazo de trinta dias, contados da data da ciência da intimação da exigência complementar, para a apresentação de impugnação apenas no concernente à matéria modificada. 

§ 4o  O auto de infração ou a notificação de lançamento de que trata o caput devem ser objeto do mesmo processo em que for tratado o auto de infração ou a notificação de lançamento complementados. 

§ 5o  O julgamento dos litígios instaurados no âmbito do processo referido no § 4o será objeto de um único acórdão. 

É de se considerar que os atos administrativos eivados de ilegalidade devam ser revistos e anulados, sob pena de afronta ao ordenamento jurídico. Assim, a autotutela abrangeria o poder de anular, convalidar e, ainda, o poder de revogar atos administrativos, estando prevista no artigo 53 da Lei 9.784/99[1], assim como na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal[2].

Tal prerrogativa decorre da aclamada autotutela da administração pública, que lhe transmite o poder-dever de controlar seus próprios atos, revendo-os e anulando-os quando houverem sido praticados com alguma ilegalidade.

Veja-se que a autotutela da administração pública como mencionado acima dá poderes para que sejam revogados e modificados os atos, podendo-se, então, dizer que o lançamento é amplamente revisível por ato de ofício da Fazenda Pública, ou provocada pelo contribuinte, dado que, a qualquer tempo antes de ocorrida a preclusão, deve ser realizada a revisão da exigência tributária.

Nesta toada perceba-se o que diz o artigo 18, do Decreto 70.235:

Art. 18. A autoridade julgadora de primeira instância determinará, de ofício ou a requerimento do impugnante, a realização de diligências ou perícias, quando entendê-las necessárias, indeferindo as que considerar prescindíveis ou impraticáveis, observando o disposto no art. 28, in fine. (Redação dada pela Lei nº 8.748, de 1993)

§ 1º Deferido o pedido de perícia, ou determinada de ofício, sua realização, a autoridade designará servidor para, como perito da União, a ela proceder e intimará o perito do sujeito passivo a realizar o exame requerido, cabendo a ambos apresentar os respectivos laudos em prazo que será fixado segundo o grau de complexidade dos trabalhos a serem executados.(Redação dada pela Lei nº 8.748, de 1993)

§ 2º Os prazos para realização de diligência ou perícia poderão ser prorrogados, a juízo da autoridade. (Redação dada pela Lei nº 8.748, de 1993)

§ 3º Quando, em exames posteriores, diligências ou perícias, realizados no curso do processo, forem verificadas incorreções, omissões ou inexatidões de que resultem agravamento da exigência inicial, inovação ou alteração da fundamentação legal da exigência, será lavrado auto de infração ou emitida notificação de lançamento complementar, devolvendo-se, ao sujeito passivo, prazo para impugnação no concernente à matéria modificada. (Incluído pela Lei nº 8.748, de 1993). (grifei)

Como já dito alhures, aqui percebe-se o poder-dever da autoridade tributária em proceder a revisão, ainda que em prejuízo do contribuinte, posto que imperativo da legalidade do ato, uma vez que não procedendo dessa forma prejudicaria toda a coletividade, trazendo, também para sim, as responsabilidades de seu agir negligente.

A bem de ilustrar o nosso entendimento, trazemos aresto oriundo do eSTJ:

ADMINISTRATIVO - FUNCIONAMENTO DOS BANCOS - EXIGÊNCIAS CONTIDAS EM LEI ESTADUAL E MUNICIPAL - LEGALIDADE.

1. A jurisprudência do STF e do STJ reconheceu como possível lei estadual e municipal fazerem exigências quanto ao funcionamento das agências bancárias, em tudo que não houver interferência com a atividade financeira do estabelecimento (precedentes).

2. Leis estadual e municipal cuja arguição de inconstitucionalidade não logrou êxito perante o Tribunal de Justiça do Estado do RJ.

3. Em processo administrativo não se observa o princípio da "non reformatio in pejus" como corolário do poder de auto tutela da administração, traduzido no princípio de que a administração pode anular os seus próprios atos. As exceções devem vir expressas em lei.

4. Recurso ordinário desprovido.

(RMS 21981/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 05/08/2010).

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De qualquer forma, superada a análise da possibilidade da reformatio in pejus, concluindo-se pela sua aceitação, é de se dizer tal não pode ocorrer indefinidamente no tempo, tendo prazo para tanto, em clara previsão do instituto da decadência, o que vem previsto no artigo 54 da Lei 9.784, conforme se vê:

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

Neste sentido, é a jurisprudência pátria:

ADMINISTRATIVO. LEI 9.784/99. PRAZO. 5 ANOS. RETROATIVIDADE. IMPOSSIBILIDADE. - Conforme o art. 54 da Lei 9.784/99, o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. (TRF4, AC 2005.72.00.004679-0, Primeira Turma Suplementar, Relatora Loraci Flores de Lima, DJ 12/04/2006).

RECURSO ESPECIAL Nº 1.111.642 - PR (2009/0033278-3)

RELATOR : MINISTRO NILSON NAVES

Pensionista de servidor público federal ajuizou ação objetivando não só o restabelecimento da vantagem pessoal instituída pelo art. 5º do Decreto nº 95.689/88, independentemente da percepção da gratificação de atividade executiva – GAE, mas também o ressarcimento dos valores descontados a tal título, além do pagamento das diferenças devidas e dos consectários legais.

A sentença de procedência do pedido foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região em acórdão assim ementado:

"Administrativo. Servidor público. Revisão de atos administrativos. Lapso temporal. Impossibilidade. Vantagem pessoal. Decreto nº 95.689/88. Ilegitimidade passiva ad causam. Litisconsórcio passivo. Desnecessidade. 1. Transcorrido prazo decadencial do art. 54 da Lei nº 9.784/99. 2. A Administração não pode, extemporaneamente e a pretexto de exercer a autotutela, desconsiderar e fazer tabula rasa da repercussão do fenômeno da passagem do tempo sobre situações jurídicas consolidadas sob os seus próprios auspícios, in casu, há mais de cinco anos.

[...]

À vista do exposto, com fundamento no art. 557, caput, do Cód. de Pr. Civil, nego seguimento ao recurso especial.

Publique-se.

Brasília, 11 de novembro de 2009.

Ministro Nilson Naves

Relator

RMS 029079 Ministro FELIX FISCHER – 05/02/2010 Decido. O recurso merece prosperar. É que este e. Tribunal possui entendimento firmado no sentido de que o prazo decadencial de 5 (cinco) anos para a Administração rever seus atos, nos termos da Lei 9.784/99, deve ser aplicado.

ADMINISTRATIVO – ATO ADMINISTRATIVO: REVOGAÇÃO – DECADÊNCIA – LEI 9.784/99 – VANTAGEM FUNCIONAL – DIREITO ADQUIRIDO. 1. Até o advento da Lei 9.784/99, a Administração podia revogar, a qualquer tempo, os seus próprios atos, quando eivados de vícios, na dicção das Súmulas 346 e 473/STF. 2. A Lei 9.784/99, ao disciplinar o processo administrativo, estabeleceu o prazo de cinco anos para que pudesse a Administração revogar os seus atos (art. 54). (…). (MS 9.157/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, DJ 07.11.2005).Idem (MS 9.112/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, DJ de 14.11.2005).

Como visto, então, a Administração/Fisco pode rever o lançamento no prazo máximo de cinco anos.

Por fim, observe-se que este poder/dever, além de sofrer a limitação temporal, também deve obedecer aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, conforme se extrai da dicção do parágrafo único do artigo 64, da Lei 9.784/99:

   Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão.

É de se destacar, contudo, que há respeitáveis vozes que entendem em sentido diverso, ou seja, que entendem ser vedada a reformatio in pejus no processo administrativo tributário, todas com fundados argumentos, com os quais, com a devida vênia, amparados na lei, ousamos discordar.

Em suma, conclui-se que no âmbito do processo administrativo fiscal prevalece a verdade material, sendo que a autotutela prevista no artigo 64, parágrafo único, da Lei 9.784/99, se limita no tempo, cabendo a administração pública atuar com base na estrita legalidade, não podendo inovar. Nestes moldes o artigo 54 da mesma Lei cria restrição temporal ao direito de autotutela da administração federal de rever seus atos, in casu de majorar para pior, decisão outrora mais favorável ao administrado. Apesar da vexata questione quanto a possibilidade ou não da reformatio in pejus no processo administrativo, é pacífico e pleno o entendimento legal de que a mesma somente pode ser aplicável dentro do lapso decadencial de 5 anos.

Portanto, no processo administrativo fiscal, desde que respeitado o contraditório, a ampla defesa e seja observada a legalidade, apurada alguma informação ou documentação que venha a fazer prova contra o contribuinte, inexiste vedação de reforma em seu desfavor, permanecendo apenas a discussão quanto à possibilidade dessa reforma se dar em nível recursal, pois isso suprimiria a possibilidade de recurso administrativo.


Notas

[1]  Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

[2] A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

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Sobre o autor
Lourenso Presotto

Advogado em Serafina Corrêa (RS). Especialista em Direito Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRESOTTO, Lourenso. O princípio da non reformatio in pejus e sua aplicação ao direito tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3862, 27 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26516. Acesso em: 28 mar. 2024.

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