Ainda repercutindo o brutal - e mais gravemente banal - assassinato da miss venezuelana Mónica Spear em uma tentativa de roubo, um dos maiores jornais em circulação no país publicou, há alguns dias, um editorial tentando, pela enésima vez, relacionar a insegurança urbana à ausência de um controle de armas. E errou de novo, feio.
Mesmo reconhecendo que a quantidade de armas em circulação numa sociedade não define seus índices de homicídio - constatação alcançada pela ONU desde 2011 -, o texto se deixa levar pelo cômodo superficialismo do discurso de que armas, legais ou ilegais, são ruins e geram violência. Pior, equipara umas e outras como causa de crimes de morte.
A esta altura do debate sobre a circulação de armas e a profundidade que o tema já assumiu, a relação que o texto tenta estabelecer beira a ingenuidade. Afirmar, como ali se fez, que o problema dos homicídios no Brasil é "o revólver na mesa da cozinha", pouco importando se ele é legalizado ou não, é retroceder no debate em pelo menos uma década.
O argumento sucumbe em segundos. Primeiro, basta que sejam invocados os dados sobre os crimes cometidos com armas legalizadas. Seu quantitativo é estatisticamente ínfimo, a ponto de ser desprezado. Tanto que, apesar de um enorme esforço bancado com generosos recursos direcionados, nem mesmo as ferrenhas entidades desarmamentistas conseguiram levantar essa bandeira.
Segundo, ao contrário do que insinua o editorial, os crimes passionais respondem por um universo inferior a 8% do total de homicídios brasileiros. Explica-se: crimes passionais são, em ciência criminal, de facílima elucidação, justamente porque são cometidos por impulso, sem a preocupação do homicida com as consequências de seu ato ou fatores relacionados à ocultação da autoria. Porém, dos 50 mil homicídios cometidos todos os anos no Brasil, apenas 4 mil são elucidados, isto é, apenas 8%. É neste total que se inserem os crimes passionais.
Um exemplo: também há poucos dias, uma mulher foi morta numa passarela de Salvador, capital baiana. O crime ocorreu no início da manhã e, ao meio-dia, a autoria já estava esclarecida. Um ex-namorado, inconformado com o fim do relacionamento, a matou. É a regra: quando há vinculação prévia entre homicida e vítima, o crime costuma ser resolvido rapidamente.
Daí o erro grosseiro em se tentar relacionar a violência homicida brasileira a crimes passionais. Está longe de ser um fato. Se fosse, os índices de resolução criminal brasileiros seriam altíssimos, não a vergonha que são.
A ideia contraria todas as estatísticas produzidas pelas próprias secretarias de segurança pública nos estados, que hoje apontam uma vinculação direta de mais de 60% dos homicídios ao tráfico de drogas. E crimes relacionados ao tráfico de drogas não podem ser rotulados de passionais, tampouco contidos por um maior controle de armas legalizadas e, menos ainda, resultam "do revólver na mesa da cozinha"
Por mais que se busque atribuir às "armas descontroladas" a responsabilidade pelos assassinatos, o problema não é o meio, mas o autor. Controladas ou não, armas não matam sozinhas, e isso vale para um fuzil ou um abridor de lata. Se é para controlar alguma coisa, por que não se fala em controlar o criminoso, punindo-o e fazendo-o temer as consequências de seus atos?
É incrível, mas a "solução do sofá" ainda parece contar uma legião de adeptos. Enquanto isso, os homicidas contumazes, munidos de potentes armas ilegais, agradecem por ficarem fora do foco. E na mira, mesmo, o cidadão, que luta com cada vez mais dificuldade para não virar estatística. Até quando?