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Mais uma reflexão sobre atividade econômica e serviço público

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12/02/2014 às 14:35

Resumo:


  • A distinção entre atividade econômica e serviço público é relevante no ordenamento jurídico brasileiro, implicando diferentes formas de atuação do Estado e de participação do setor privado.

  • A Constituição Federal do Brasil estabelece critérios específicos para a atuação estatal na economia e para a prestação de serviços públicos, incluindo a necessidade de licitação e a possibilidade de concessão ou permissão para a iniciativa privada.

  • Há divergências no entendimento sobre a natureza de certos serviços, como o serviço postal, e sobre a validade da exclusividade de sua prestação por entidades estatais, ilustradas por decisões do Supremo Tribunal Federal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É possível o Estado agir sem prestar serviço público? Por outro lado, é possível o particular agir numa concessão sem exercer atividade econômica?

I – Introdução

A distinção entre atividade econômica e serviço público, que demanda prévia definição de ambas as expressões, possui relevância perante o ordenamento jurídico brasileiro.

Basta ver, por exemplo, que a Constituição Federal, em seu art. 173, somente permite a atuação direta do Estado na atividade econômica “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”, embora ressalve outros casos nela previstos.

Por sua vez, no art. 175,preceitua que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

Pode-se, já com esses dispositivos, questionar se um particular que assuma a prestação de um serviço público por meio de concessão faria isso por interesse outro que não o econômico. Seria para ele um ato de patriotismo e doação ao interesse público ou estaria, conquanto legitimamente, explorando atividade econômica?

Embora exista já bastante material sobre o assunto, ainda não estou satisfeito e esclarecido com o que encontrei até o presente momento.

Ainda existe controvérsia no tema, como se pode ver no acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 46-7/DF, de 5 de agosto de 2009[1], em que os ministros do Supremo Tribunal Federal divergiram quanto à natureza do serviço postal e quanto à validade da exclusividade de sua prestação pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, como estabelecido pela Lei nº 6.538, de 22 de junho 1978[2].

O Ministro Marco Aurélio citou afirmação de Marcello Caetano, segundo o qual só haveria justificativa para o Estado assumir “serviços públicos de natureza econômica” se a iniciativa privada não os prestasse de forma eficiente e atendendo o interesse público. Para esse ministro, não tendo a Constituição de 1988 assegurado monopólio em relação ao serviço postal, seria desnecessário perquirir se ele seria atividade econômica ou serviço público. Concluiu seu voto no sentido de que a exclusividade dessa empresa pública não teria sido recepcionada pela Constituição.

O Ministro Eros Grau, por sua vez, entendeu que o serviço postal seria serviço público. Esclareceu que a expressão monopólio se refere a atividade econômica, ao passo que, quando se trata de serviço público, fala-se em exclusividade, uma situação de privilégio. Para ele, seria constitucional essa exclusividade.

Eros Grausistematiza as atividades previstas nos artigos 173 e 175 da Constituição como sendo espécies de “atividade econômica em sentido amplo”. A atuação estatal na economia se daria por meio de “atividades econômicas em sentido estrito”, referidas no art. 173. Ao lado dessas atividades, estariam os serviços públicos, tratados no art. 175 da Constituição[3].

Sobre as atividades econômicas em sentido estrito, há infindáveis hipóteses que podem ser imaginadas como de relevante interesse coletivo ou mesmo de imperativos da segurança nacional, devendo a lei definir no caso concreto cada uma das situações.

Relativamente ao serviço público, mencionado no art. 175 da Constituição, sua prestação compete, segundo Eros Grau,preferencialmente ao setor público[4]. Por outro lado, as atividades econômicas em sentido estrito, por conseguinte, ficam à disposição da iniciativa privada, conforme dispõe o parágrafo único do art. 170 da Constituição[5].

Em sendo lucrativas, ambas serão objeto de desejo da iniciativa privada. Em se tratando de serviço público, a atuação privada buscará submetê-lo ao mesmo regime das atividades econômicas em sentido estrito. Esse conflito é bem retratado por Eros Grau:

Pretende o capital reservar para sua exploração, como atividade econômica em sentido estrito, todas as matérias que possam ser, imediata ou potencialmente, objeto de profícua especulação lucrativa. Já o trabalho aspira atribua-se ao Estado, para que este as desenvolva não de modo especulativo, o maior número possível de atividades econômicas (em sentido amplo). É a partir deste confronto – do estado em que tal confronto se encontrar, em determinado momento histórico – que se ampliarão ou reduzirão, correspectivamente os âmbitos das atividades econômicas em sentido estrito e dos serviços públicos. Evidentemente, a ampliação ou retração de um ou outro desses campos será função do poder de reivindicação, instrumentado por poder político, de um e outro, capital e trabalho. A definição, pois, desta ou daquela parcela da atividade econômica em sentido amplo como serviço público é – permanecemos a raciocinar em termos de modelo ideal –decorrência da captação, no universo da realidade social, de elementos que informem adequadamente o estado, em um certo momento histórico, do confronto entre interesses do capital e do trabalho[6].

Ocorre, contudo, que não parece claro se o simples fato de haver relevante interesse coletivo ou imperativos da segurança nacional poderia autorizar o Estado praticar qualquer “atividade econômica em sentido estrito”.

Quanto ao particular, por seu turno, sua iniciativa pode ser limitada por lei, sem que para isso a Constituição faça qualquer exigência, como faz ao restringir a atuação estatal direta no domínio econômico[7]. Haveria limites para essa restrição?

Nesse âmbito, um interessante caso é o serviço de táxi. Embora não se trate de transporte coletivo[8], os Municípios normalmente o controlam, não apenas fazendo certas exigências, mas chegando até a limitar a possibilidade de sua prestação apenas a alguns cidadãos, escolhidos por critérios variados[9].

Quanto aos serviços públicos, é necessário perquirir se seriam eles apenas aquelas atividades que a Constituição expressamente atribui ao Estado[10]. Também precisa ser esclarecido se qualquer prestação atribuída ao Poder Público seria serviço público.

Note-se, por exemplo, que, embora não haja tanta controvérsia sobre o fato de o serviço de transporte prestado pelo Estado ter natureza de serviço público, o mesmo não ocorre com o serviço prestado pelo Poder Judiciário[11].

Mas é possível o Estado agir sem prestar serviço público? Por outro lado, é possível o particular agir sem exercer atividade econômica?

Salvo melhor juízo, essas questões ainda hoje não estão solucionadas de forma pacífica.

O presente texto pretende, por isso, analisar de forma crítica os conceitos vigentes de serviço público e de atividade econômica.


II - Premissas

Tratando-se de expressões contidas no texto constitucional, é em seu âmbito que deve ser pensado o alcance semântico delas.

A Constituição é estruturada em torno de certos princípios fundamentais, dentro dos quais são eleitos objetivos a serem alcançados pela República[12].

Gilberto Bercovici aponta que, conquanto a atual Constituição ainda seja democrática e social (ou programática), ela inova em termos de modelo[13], passando a ser dirigente[14], já que traz um plano de desenvolvimento, um projeto de transformação do país para superar o subdesenvolvimento[15].

Para ele é “necessária uma política deliberada de desenvolvimento, em que se garanta tanto o desenvolvimento econômico como o desenvolvimento social, dada sua interdependência”[16].

Entre os princípios da Ordem Econômica, consta a função social da propriedade, como limitação e diretriz à livre disposição desse direito, cujo exercício deve ser dirigido ao bem coletivo.

Essa orientação tem especial configuração quando se trata de bens de produção, segundo lição de Toshio Mukai, em obra anterior à Constituição de 1988, mas que permanece válida:

Enfim, numa ordem econômica capitalista, a propriedade dá o poder de disposição privada dos meios de produção, mas tendo ela uma função social, esse poder sofre restrições por parte do Poder Público, que diz respeito aos bens econômicos, aquelas restrições que se transmudam em restrições à liberdade de empresa[17].

A mesma ideia é encontrada em Fábio Konder Comparato:

A chamada função social da propriedade representa um poder-dever positivo, exercido no interesse da coletividade, e inconfundível, como tal, com restrições tradicionais ao uso de bens próprios. A afirmação do princípio da função social da propriedade, sem maiores especificações e desdobramentos, tem-se revelado, pela experiência constitucional germânica, tecnicamente falha.

A destinação social dos bens de produção não deve estar submetida ao princípio da autonomia individual nem ao poder discricionário da Administração Pública. O abuso da não utilização dos bens produtivos, ou de sua má utilização, deveria ser sancionado mais adequadamente.[18]

Não só os bens possuem uma função social, mas o próprio mercado em que eles são transacionados. Nesse aspecto, o art. 219 da Constituição é expresso:

Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

Os objetivos da República previstos no art. 3º da Constituição, dessa forma, dependem da colaboração de seus cidadãos, bem como do Estado, que, por sua peculiar posição, acaba sendo o principal destinatário da referida norma, bem como responsável por garantir a observância dos princípios do art. 170 da Constituição[19].

A colaboração, imposta pelo preceito da solidariedade, é essencial para manter a coesão social, uma vez que, levada a cultura competitiva a suas últimas consequências, poderá haver, como resultado, exclusão e, por conseguinte, desagregação. E o homem está em sociedade para ter melhores condições de vida do que teria se vivesse isoladamente, mas dela deve participarcom seu trabalho, conforme sua capacidade, para usufruir de seus benefícios.

A sociedade é incompatível com a exploração, seja dos que abusam de seu poder econômico, seja dos que se valem de sua condição de necessitado para, de má-fé, parasitar o bem comum[20].

Deve-se romper ainda com a dicotomia entre Estado e sociedade. O Estado é seu povo. Quando se diz que o Estado atenta contra o povo, na prática, isso nada mais é do que um grupo de pessoas que, travestidas da autoridade estatal, abusam do poder que lhes é entregue como instrumento para consecução do interesse coletivo[21].

Parece decorrer do que foi exposto até aqui que os conceitos que sejam adotados para serviço público e para atividade econômica na Constituição não podem descurar dos objetivos nela constantes e segundo as circunstâncias atuais.

A construção desses conceitos é feita num diálogo entre intérprete e texto[22]. O intérprete, dotado de crenças sobre sua realidade, é por elas influenciado na forma como apreende o sentido do texto[23].

Como muda a realidade do intérprete, muda a influência dela na ação interpretativa e, por conseguinte, a própria interpretação[24].

Mas essa modificação é necessária para que o texto, que é estático, acompanhe até onde for possível a evolução social.

Se a interpretação leva em conta valores, julga qual a alternativa melhor para aplicação da norma e mesmo para sua elaboração, é temerário basear esse julgamento em percepções ou intuições sem uma pesquisa empírica para fundamentá-lo[25].

Com isso, embora a percepção da realidade não sirva para sustentar uma afirmação sem uma base empírica devidamente elaborada, pois corre o risco de ser parcial e equivocada, isso não significa que ela não possa ser usada para contestar posições sem essa mesma base.

Dito de outra forma, um fato isolado não serve para justificar um julgamento generalista, mas pode ser utilizado para confrontar uma afirmação de caráter geral em sentido contrário, quando ela tenha pretensão de ser exata, mas não seja dotada de comprovação.

Por isso, conquanto se possa questionar o fato de haver citações que serão feitas no decorrer do texto extraídas de autores com posições incompatíveis[26], elas não serão tomadas como uma regra geral inquestionável, mas apenas como fundamento para infirmar eventuais certezas.

Se duas afirmações contraditórias sobre o mesmo fato estão certas, isso provavelmente decorre do fato de serem parciais.

Quando pressupostossão tomados como verdades, invariavelmente se entra em um estado de insegurança. A certeza, ou pelo menos a segurança, parece estar apenas no estado de ignorância, no “só sei que nada sei”.

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Por fim, ainda em sede de estabelecimento de parâmetros para o tratamento do tema, é importante ressaltar o papel do jurista.

Invariavelmente, a forma como o jurista encara seu papel decorre de suas crenças.

Embora o presente texto tenha pretensão jurídica, a economia tem íntima relação com o assunto nele tratado, sendo que ambos, direito e economia, como conhecimento sistematizado, nascem juntos com o capitalismo[27].

No campo da economia, como se vê na obra de Adam Smith, as descobertas das ciências naturais tiveram grande influência[28].

Para o direito, não deveria ser diferente. Seria proveitoso se fosse possível uma plena compreensão do funcionamento da sociedade, das regras naturais que a regem. Esse conhecimento propiciaria melhor qualidade das normas jurídicas editadas para conduzi-la.

Ocorre que os juristas, em princípio, não chegam a um acordo nem mesmo quanto ao objeto de seu estudo. É o que se extrai de Hans Kelsen, que, apesar de afirmar que o objeto da ciência jurídica seria apenas a norma jurídica[29], reconhece a existência de outras posições assinala que:

2.É esta a posição da Teoria Pura do Direito em face da chamada teoria “egológica” do Direito que afirma ser objeto da ciência jurídica constituído não pelas normas, mas pela conduta humana; e em face da teoria marxista, que considera o Direito como um agregado das relações econômicas.[30]

José Reinaldo de Lima Lopes também ressalta essa controvérsia, citando cita Lawrence Friedman:

Gosto de usar a tripartição simplificada de Lawrence Friedman: o direito pode ser visto como ordenamento, isto é, como o conjunto de regras e leis (estudar direito seria então estudar leis e princípios); pode ser visto como uma cultura, um espaço onde se produz um pensamento, um discurso e um saber; e pode ser visto como um conjunto de instituições, aquelas práticas sociais reiteradas, as organizações que produzem e aplicam o próprio direito.[31]

A concepção do que estaria dentro ou fora do aspecto jurídico varia segundo o sujeito cognoscente, segundo creio. O aplicador da lei decide no caso concreto até onde o direito deve intervir. Da mesma forma, o pesquisador decide, no caso concreto, até onde estenderá sua pesquisa.

Alysson Leandro Mascaro, por exemplo, sintetiza as concepções do direito em três vertentes. Segundo ele, a primeira vertente seria a positivista, que reduziria o direito à norma estatal. A segunda seria a não-positivista, que adotaria uma visão um tanto mais ampla, incluindo a noção do poder. A terceira estaria representada pelas correntes marxistas, que teriam um enfoque ainda mais amplo do fenômeno jurídico[32].

Num determinado tempo e lugar, as relações sociais ocorrem de determinada maneira em razão das circunstâncias aí existentes. Compreender esse contexto é indispensável para se decidir o modo de alterar seu funcionamento e direcioná-lo aos fins traçados democraticamente.

Essa compreensão é necessária ainda que, no comportamento humano, não se possa esperar uma relação de causalidade necessária como ocorre com outros eventos da natureza.

Pode-se afirmar que o homem é movido no sentido da satisfação de seus interesses, sendo o mais primário deles a própria sobrevivência[33].

Estudos apontam certos padrões de comportamento que evidenciam a busca do homem pela melhoria de sua situação, bem como o fato de ele agir por incentivos[34].

Buscar a satisfação do interesse não significa necessariamente egoísmo, no sentido de um vício, segundo os valores vigentes. Em determinado caso concreto, a satisfação do homem pode ocorrer com alguma ação considerada boa, conforme esses mesmos valores, como a ajuda a um necessitado. O homem, no caso concreto, pode considerar melhor ajudar alguém do que permanecer inerte.

Enfim, não parece correto ou útil generalizar uma visão boa ou má do homem[35].

Na busca da satisfação de seus interesses, o homem se baseia em suas crenças[36]. Com isso, quer-se evidenciar que não importa tanto a realidade, mas o que é considerado real pelo homem. Para esclarecer, basta pensar nas normas proibitivas que fixam sanção por seu descumprimento. Caso o agente acredite que não será punido, essa crença poderá levá-lo a descumprir a norma, na medida em que isso lhe propicie algum benefício[37].

A crença individual é influenciada pela crença coletiva, que interfere na ação humana, como salienta Raymond Aron, ao comentar a obra de Durkheim, “O suicídio”, de 1897:

Mesmo nas sociedades baseadas na diferenciação individual, subsiste o equivalente da consciência coletiva das sociedades em que impera a solidariedade mecânica, isto é, as crenças, os valores comuns. Se esses valores comuns se debilitam, se a esfera dessas crenças se reduz demasiadamente, a sociedade fica ameaçada de desintegração.[38]

Essas noções são importantes para uma melhor aplicação e mesmo elaboração da lei, das normas, enfim, do direito, que é o âmbito em que a presente pesquisa se desenvolve.

A propósito, Calixto Salomão Filho sustenta que o papel do jurista não pode se restringir a ser mero auxiliar na interpretação da norma, mas deve participar da própria elaboração de políticas públicas e, com isso, participar da busca do desenvolvimento determinada pelo art. 3º do texto constitucional.[39]

Com essas premissas, pode-se iniciar a tentativa de se construir os pretendidos conceitos de serviço público e de atividade econômica, bem como de dar uma resposta aos problemas colocados no início.


III – Conceito de serviço público

O conceito de serviço público no direito brasileiro, segundo Gilberto Bercovici, tem origem na França, com a Escola do Serviço Público[40].

Essa noção serviria de critério fundamental para a definição da jurisdição administrativa na França, deixando para a jurisdição comum as atividades que não fossem serviço público[41].

Celso Antônio Bandeira de Mello menciona que o caso “arrêt Blanco” de 1873, julgado pelo Tribunal de Conflitos, seria considerado pela doutrina como a principal decisão que teria introduzido a noção de serviço público na jurisprudência francesa[42].

Léon Duguit, chefe da Escola do Serviço Público, tomou como base a jurisprudência francesa, incluindo esse caso, para formular seu conceito: “é toda atividade cujo cumprimento seja assegurado, regulado e controlado pelos governantes, porque o cumprimento dessa atividade é indispensável à realização e ao desenvolvimento da interdependência social, e que é de tal natureza que pode ser realizada completamente apenas pela intervenção da força governante”[43].

Essa concepção seria sociológica na opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello, já que forneceria apenas os contornos de um fenômeno que serviria para o legislador e para o político, mas não para o jurista[44]. Seria um conceito material ou objetivo, que se focaria na atividade exercida.

Gilberto Bercovici esclarece que essa função do Estado, em Duguit, é um dever fundamental para garantir a solidariedade social e mesmo para legitimá-lo[45].

Roger Bonnard, para Celso Antônio Bandeira de Mello, embora estivesse próximo de Duguit por tentar caracterizar o serviço público de modo substancial, traria apenas uma definição orgânica, isto é, focaria na organização responsável pela prestação do serviço[46].

Por sua vez, Gaston Jèze, ainda na doutrina francesa, em vez de adotar a concepção material de Duguit, propõe uma definição jurídico-formal de serviço público, como “um procedimento técnico que se traduz em regime jurídico peculiar”. Teria sido essa última definição, a formal, a prevalente na doutrina nacional[47].

Maurice Hauriou, por fim, defenderia que o Estado se legitima a si e seu poder por servir a sociedade, mas só é capaz de servir se for dotado justamente deste poder que busca legitimar. Dessa forma, há um processo de articulação entre poder público e serviço público[48].

Calixto Salomão Filho informa que serviço público, para Hauriou é o “serviço técnico prestado ao público de maneira regular e contínua para satisfazer a ordem pública por meio de uma organização pública”[49].

Em suma, haveria três concepções de serviço público. A primeira delas objetiva ou material, correspondendo à “atividade exercida”. A segunda subjetiva ou orgânica “refletia a organização que prestava o serviço”. A última, formal, focava nas “características extrínsecas” do serviço[50].

Toshio Mukai assevera que, enquanto as concepções materiais e orgânicas se harmonizavam na época do Estado liberal, a prestação de serviços públicos pela iniciativa privada no âmbito do Estado Social de Direito acabaram por prejudicar a noção de serviço público, colocando-a em crise[51].

Para Celso Antônio, a crise do conceito de serviço público seria falsa, uma vez que decorreria da confusão entre as concepções jurídicas e metajurídicas. O que teria ocorrido seria a inadequação superveniente dos conceitos jurídicos vigentes para tratar dos fatos que evoluíram[52].

A identificação do conceito jurídico de serviço público para Celso Antônio deve utilizar como critério a vontade legislativa, como fez Jèze[53]. Será serviço público o que a lei previr como tal. Ele reconhece, contudo, que às vezes essa vontade não vem expressa na lei, hipótese em que se deveria buscar indícios dela na natureza jurídica da própria atividade do Estado, conforme “configurada no conjunto do sistema normativo vigente.”[54]

Em busca de um conceito, em sua obra “Participação do Estado na Atividade Econômica: Limites Jurídicos”[55], Toshio Mukai parte da distinção entre atividade jurídica e atividade administrativa. Aquela caracterizada pela coação legítima estatal empregada na tutela do ordenamento, por uma ação administrativa. Essa, pela prestação de serviços aos particulares, por meio de prestação administrativa, em que estariam incluídos os serviços públicos[56].

Passa então pela distinção entre serviços uti universi e uti singuli. Os primeiros prestados pelo Estado, no exercício de seu poder de império, para atender o interesse geral, de maneira indivisível. Os segundos seriam colocados à disposição de todos, podendo ser utilizados por determinadas pessoas, prestados pelo Estado, mas sem que essas prestações lhe sejam necessariamente privativas[57].

Diante da existência de serviços de natureza econômica e não econômica prestados pelo Estado, seja sob o regime de direito público, seja privado, teria havido a desvinculação entre a prestação de serviços públicos e o regime administrativo, a dissociação entre o sentido material do serviço e seu sentido orgânico[58].

Por isso, tornou-se necessário estabelecer critérios para identificar quais seriam, então, os serviços públicos bem como os limites para o Estado atuar na economia. Essa preocupação estaria no fato de, para ele, a relação de serviços prevista na Constituição[59] não ser exaustiva, o que permitiria ao legislador instituir outros serviços além daqueles.

Mas Toshio Mukai sustenta que o conceito formal, em que o conteúdo é dado por norma jurídica que o preenche, éincabível, pois daria ao legislador a possibilidade de invadir esfera privativa da livre iniciativa[60].Dessa forma, além de lei, também seria necessária a presença das demais características essenciais do serviço, como “potestade pública em benefício da coletividade”, “interesse geral ou necessidade pública, organização estatal (paraestatal ou comandada pelo Poder Público), bens e regime jurídico de direito público (parcial ou total)”[61].

Para contornar o problema dessa conceituação, ele considera que serviço público seria um conceito jurídico indeterminado, de modo que, embora passível de definição pelo legislador, estaria sujeito ao controle jurisdicional[62].Dentro da indeterminação haveria uma característica essencial, na justaposição do conceito material com o conceito formal. “Materialmente, serviço público é aquele que, dentro de certas circunstâncias de tempo e lugar, tenha transcendência, pela sua necessidade e essencialidade para a comunidade; portanto, é ele anterior ao Estado mesmo.” A característica fundamental seria, então “sua essencialidade para a comunidade”[63]. Do ponto de vista formal, completando a noção de serviço público, seria necessário o legislador concretizar essa atividade[64].

Interessante é ainda a distinção feita pelo autor entre serviços públicos econômicos e serviços públicos administrativos, bem como a diferenciação entre serviço econômico de interesse geral e serviço econômico simples.

Os serviços públicos econômicos estariam sujeitos a um regime de direito privado, mas submetidos a certas regras de direito público. Embora passíveis de serem lucrativos, seu objetivo principal seria o atendimento do interesse público, motivo pelo qual, quando deficitário, poderia ser subsidiado pelo Estado. Enquanto nos serviços públicos as discriminações entre usuários não seja admitida, isso seria possível nos serviços públicos econômicos[65].

Os serviços econômicos de interesse geral podem ser prestados pelo Estado e pelos particulares. Não são serviços públicos por não serem dotados da característica da regularidade, nem são atividades econômicas simples pelo fato de interessarem a toda coletividade, motivo pelo qual seu exercício dependeria de autorização do Estado e se sujeitaria a sua fiscalização. Seriam exemplos as atividades financeiras, as explorações minerais e florestais etc.[66].

Prossegue o autor tentando diferenciar os serviços públicos econômicos dos serviços econômicos de interesse geral. Aponta, inicialmente, que seria impossível classificar as atividades econômicas que seriam serviços públicos. As características dos serviços públicos econômicos estariam na sua essencialidade, na sua comum sujeição a monopólio natural, na exigência de grande soma de recursos para sua implementação e na necessidade, em regra, de utilização de bens públicos e de atos de autoridade[67]. Enquanto os serviços públicos econômicos teriam em sua estrutura o interesse público, os serviços econômicos de interesse geral teriam a presença do interesse público em sua finalidade[68].

Conclui, então, com o seguinte conceito de serviço público:

...aquele que o Estado, ao elegê-lo como tal, exerce-o diretamente ou por interpostas pessoas, e que, por atender a necessidade essencial ou quase essencial da coletividade apresenta um interesse público objetivo em sua gestão.[69]

Celso Antônio Bandeira de Mello, por seu turno, em obra de 1979, também prega a conciliação entre a concepção formal e a material[70]. Para ele, o serviço público pode ser conceituado como:

... toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público – portanto consagrador de prerrogativas de direito público – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo.[71]

Na sua opinião, a relação constitucional de serviços públicos não é exaustiva, embora o legislador não possa instituir outros serviços dessa natureza sem observar os limites constitucionais[72], limites esses ligados à ordem econômica e social, incluindo o respeito à livre iniciativa[73].

Ele esclarece que entre todas as atividades possíveis em uma sociedade, algumas seriam públicas e outras privadas, sendo a Constituição o guia para essa diferenciação[74].

Em primeiro lugar, as atividades econômicas seriam serviços privados, cuja prestação seria preferencialmente feita pela iniciativa privada. Mesmo quando o Estado os prestasse, tais serviços continuariam a ter natureza privada[75].

Por outro lado, a Constituição indicaria alguns serviços como de competência do Poder Público, o que os tornaria “suscetíveis de configuração como serviço público.”[76]

Entre esses, haveria os privativos do Estado e aqueles que só seriam serviços públicos se prestados por ele, uma vez que seria possível a prestação pelos particulares[77].

Em obra mais atual, de 2011, Celso Antônio Bandeira de Mello praticamente manteve seu conceito[78]:

Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.

O regime público seria instrumento para assegurar a regular prestação do serviço público[79].

Explicando seu conceito, Celso Antônio, quanto ao substrato material, assevera que ele não abarca toda atividade pública, material e jurídica. Menciona ainda que restringiu-se aos serviços uti singuli, pois os uti universi estariam entre as “prestações administrativas da Administração aos Administrados”[80]. O regime de direito público, relativo ao aspecto formal do conceito, abrangeria os princípios da prestação estatal obrigatória, supremacia do interesse público, adaptabilidade, universalidade, impessoalidade, continuidade, transparência, motivação, modicidade das tarifas e controle[81].

No que diz respeito à figura do responsável pela prestação do serviço, houve uma pequena alteração em sua posição, pois passou a separar os serviços, de acordo com a Constituição atual, da seguinte forma: a) prestação obrigatória e exclusiva do Estado; b) prestação obrigatória do Estado com dever de outorgá-la em concessão; c) prestação obrigatória pelo Estado, sem exclusividade; d) prestação não obrigatória pelo Estado, mas com dever de promover-lhe a prestação quando não o fizer diretamente[82].

Dinorá Adelaide Musetti Grotti aponta que a prestação de serviços públicos diretamente pelo Estado deixou de ser a regra para ser exceção. E essa prestação de serviço público por particulares passou até mesmo, em certos casos, a ser regida pelo direito privado[83].

Contudo, Calixto Salomão Filho é enfático ao afirmar que nos setores não-regulamentáveis, o Estado deve prestar diretamente o serviço. Seriam setores não passíveis de regulamentação aqueles em que a atividade puder causar externalidades sociais[84].Além disso, ele demonstra que o direito administrativo brasileiro utilizaria o regime dos serviços públicos como principal forma de regulação da economia[85].

Sobre a questão de estar esgotada ou não a relação dos serviços públicos no texto constitucional, a pesquisa de Fábio Ferraz Marques revelou que a maioria da doutrina admite que a lei possa instituir outros serviços, “desde que respeitados limites constitucionais para tanto”[86].

É a mesma conclusão de Celso Antônio, quando tratou dos limites constitucionais para caracterização de um serviço como público[87]. Para ele, o legislador não poderia afrontar as garantias da livre iniciativa, nem tornar atividades econômicas serviços públicos.Embora o constituinte não a tenha conceituado, a expressão “atividade econômica”, de acordo com esse autor, deveria ser tomada em seu sentido comum, vigente em determinada sociedade. E mesmo que o Estado exerça atividades dessa natureza, elas não seriam serviço público[88].

A fluidez do conceito de serviço público também é acentuada por Dinorá Grotti:

Cada povo diz o que é serviço público em seu sistema jurídico. A qualificação de uma dada atividade como serviço público remete ao plano da concepção do Estado sobre seu papel. É o plano da escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado tempo histórico.[89]

Reunindo as ideias até aqui expostas, verifica-se que o ponto crítico dos serviços públicos está justamente nessas atividades não previstas na Constituição. Segundo o que foi visto, se vierem a ser previstas em lei e exercidas pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, poderá ser serviço público ou não.

Serão serviço público, de acordo com essa linha de raciocínio, se atenderem uma necessidade coletiva em regime de direito público. Senão, serão atividades econômicas.

Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que limitou o conceito de serviço público para que ele tivesse préstimo, de modo a não abarcar realidades distintas:

Se a expressão serviço público tivesse amplitude tão lata que abrangesse atividade material e jurídica assumida pelo Estado como pertinente a si próprio, a noção de serviço público perderia seu préstimo, pois abarcaria realidades muito distintas entre si, coincidindo, afinal, com o conjunto de atividades do Estado, sem extremá-las com base nas características de cada qual e nas particularidades dos respectivos regimes jurídicos. Em suma: haveria mera superposição da noção de serviço público à noção de atividade pública, nada agregando de particularizador dela. Por abranger objetos muito díspares, seria, então imprestável para isolar um conjunto homogêneo de princípios e normas.[90]

Mas façamos uma análise para verificar o que há de peculiar naquilo que esse autor chama de serviço público. Para tanto, comparemos o serviço judiciário, que não seria considerado serviço público, com o serviço telefônico, que seria considerado.

Ambos são fruíveis individualmente; são prestados pelo Estado, embora o telefônico admita delegação; há um regime consagrador de prerrogativas de supremacia em ambos. Talvez a única diferença esteja no que ele chama de “utilidade ou comodidade material”. É certo, contudo que, se o termo “material” forutilizado num sentido de algo concreto, tangível, no serviço de comunicação ele poderá ser questionado. Se fosse fornecimento de água, ele seria mais adequado.

Mas não se nega a diferença entre utilidade que há no serviço prestado pelo Poder Judiciário e a que existe no serviço telefônico. O primeiro tem a possibilidade de interferir na esfera jurídica do sujeito ainda que contra a vontade deste. Ocorre que a tutela jurisdicional buscada, em regra, traduz-se em pecúnia ou outro bem material, por vezes mais material do que o serviço telefônico.

Se se chamar de atividade jurídica aquela que não produz diretamente efeitos concretos, como ficaria a situação dos serviços públicos de registradores e notários? Seu serviço se presta fundamentalmente para garantir segurança jurídica. Opera principalmente no mundo jurídico e não no mundo fático, em que são produzidos papéis e registros eletrônicos. Se se alegar que o papel ou registro gerado seria o bem ou utilidade material, então se poderá aduzir que a sentença judicial também o é.

Enfim, se o objetivo de restringir o conceito de serviço público era encontrar a intersecção, os elementos comuns dos diversos serviços públicos existentes e a existir, para que a respeito de tal conjunto fossem encontradas as normas que formassem um regime único peculiar, então ele parece não ter sido alcançado.

A variedade dos serviços parece não permitir essa reunião de uma única forma. Há princípios aplicáveis ao conjunto dos chamados serviços públicos “materiais” que também se aplicam às “atividades jurídicas” (supremacia, continuidade etc.).

Uma distinção que talvez possa ser feita na prática seja entre serviços em que o destinatário da ação estatal é seu beneficiário direto e serviços em que o destinatário não seria necessariamente o beneficiário. Explico-me.

No caso da prestação de serviço de fornecimento de água, o destinatário desse serviço é seu beneficiário. O mesmo não se pode dizer quando o Estado fiscaliza e multa um administrado ou quando desapropria seu imóvel.

Nesses dois últimos casos, o destinatário da ação estatal não recebe um benefício direto. Ao invés, normalmente é atingido por um ato contrário aos seus interesses. Talvez no caso da fiscalização até se possa admitir que, em alguns casos, ela vise à segurança de todos, inclusive do próprio fiscalizado. Mas na prática, é a coletividade a beneficiária da atuação estatal.

Ocorre, todavia, que se todos os atos estatais forem, ainda assim, considerados como serviço público, seria difícil vislumbrar essa natureza nos contratos administrativos. É certo que, nesses contratos, o contratado, ao prestar um serviço ou oferecer um bem à Administração, recebe uma remuneração que lhe pode proporcionar lucro e, assim, ser-lhe vantajosa. Mas o serviço é destinado à Administração e não ao contratado.

Então, para efetivamente sistematizar os atos estatais, discernindo serviços públicos daqueles que não teriam essa natureza, sugeriria excluir do âmbito dos serviços públicos os atos de intervenção na propriedade, os atos de polícia e os contratos administrativos.

Esses atos seriam instrumentais à prestação do serviço público. Nessa linha, o Estado intervém na propriedade individual, por exemplo, para garantir o bem-estar da coletividade. Ele fiscaliza e pune para, entre outras coisas, buscar segurança. Firmaria contratos administrativos como meio de prover o funcionamento de seus serviços. Enfim, os atos instrumentais servem de meio à satisfação do interesse coletivo.

Retirando, então, essas três atividades estatais, as demais seriam consideradas como serviço público, independentemente das diversas peculiaridades que cada uma possa ostentar, seja quanto à natureza econômica ou não, seja quanto à possibilidade de delegação ou não.

Essa posição, porém, demanda esclarecer, então, quais seriam os serviços passíveis de permissão ou concessão, além de delimitar o espaço que caberia à iniciativa privada.

Por não se ter chegado a algo mais firme e preciso no âmbito do serviço público até aqui, a pesquisa prosseguirá no campo da atividade econômica.

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Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAI, Leandro. Mais uma reflexão sobre atividade econômica e serviço público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3878, 12 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26688. Acesso em: 22 dez. 2024.

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