A tomada de contas especial, conforme definição constante na Instrução Normativa nº 71/12, do Tribunal de Contas da União - TCU, é um processo administrativo devidamente formalizado, com rito próprio, para apurar responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública federal, com apuração de fatos, quantificação do dano, identificação dos responsáveis e obter o respectivo ressarcimento.
Trata-se de um procedimento excepcional à disposição da Administração Pública para a apuração de responsabilidade e eventual ressarcimento ao erário nos casos de redução patrimonial.
A tomada de contas especial possui como base constitucional os artigos 70, parágrafo único, e 71, inciso II:
Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
Duas são as fases das tomadas de contas: a interna e a externa. Na primeira delas, o órgão ou a entidade pública identifica a ocorrência do desfalque e instaura um procedimento para apurar quem deu causa à redução patrimonial e se há nexo entre a conduta do responsável e o possível dano.
A segunda etapa inicia-se com a rejeição das contas pela Administração e com a sua remessa ao Tribunal de Contas competente para análise e julgamento. Veja-se que não é o órgão ou a entidade pública supostamente lesados que irá julgar o mérito das contas, mas sim o órgão de controle externo. Ao final de todo o processo e ouvidas as partes, o Tribunal julgará as contas regulares, regulares com ressalvas ou irregulares, determinando, se for o caso, o ressarcimento ao erário pelos responsáveis.
Diversas são as hipóteses em que a Administração Pública deverá deflagrar a tomada de contas especial. As mais comuns são as seguintes: perda de bens públicos, omissão no dever de prestar contas e recursos recebidos não aplicados de acordo com o plano de trabalho previamente definido no convênio. Para fins deste artigos, apenas a última hipótese será analisada.
Naturalmente, quando as contas são julgadas irregulares pelos Tribunais de Contas, os gestores responsáveis (pessoas físicas) são acionados para ressarcir ao erário os valores que não foram aplicados conforme os termos do convênio.
No entanto, além da pessoa física, o TCU entende que o órgão ou a entidade convenente (seja de natureza pública ou privada) responderá solidariamente com o gestor caso haja beneficiamento com a aplicação dos recursos recebidos fora do objeto e das finalidades do convênio.
A título de exemplo, veja-se que a Segunda Câmara do TCU, no acórdão nº 3261-22/10, do qual foi relator o Ministro José Jorge, decidiu que “quando comprovado que houve benefício do ente federado, o Tribunal, ao proferir o julgamento de mérito, o condenará diretamente ou a entidade de sua administração ao pagamento do débito, podendo, ainda, condenar solidariamente o agente público responsável pela irregularidade e/ou cominar-lhe multa” (Sessão de 29/06/10).
Em que pese o entendimento do TCU quanto à responsabilização do órgão ou da entidade que recebeu (e supostamente se beneficiou) dos recursos públicos, tem-se que a questão merece ser analisada à luz de princípios e teorias oriundas de outros “ramos” do direito público.
Ora, conforme sabido, a divisão do direito em “ramos” é meramente didática e serve apenas para facilitar o seu estudo e sua compreensão. Sendo assim, não há uma segregação completa e absoluta entre as disciplinas, de modo que princípios e teorias próprias de um “ramo” podem, em algumas hipóteses, ser aproveitados em outros.
No caso, propõe-se a aplicação da doutrina do “odious debt” - própria do Direito Internacional Público - nas tomadas de contas especiais - institutos pertencentes ao Direito Administrativo.
A doutrina do “odious debt” surgiu após a Primeira Guerra Mundial e teve como expoente o jurista russo Alexander Nahun Sack. De acordo com Sack, o “odious debt” pode ser explicado da seguinte forma:
Quando um regime despótico assume um débito não para cobrir as necessidade ou os interesses do Estado, mas para fortalecer o próprio regime, para reprimir a população que se insurge contra ele, etc, esta dívida é odiosa para a população do Estado.
A dívida não constitui, portanto, obrigação da nação. É um débito do regime, uma dívida pessoal daquele que a contratou (...)[1].
Noutros termos: a dívida decorrente da aplicação irregular (com destinação privada) de recursos oriundos de empréstimos internacionais deve ser cobrada diretamente do gestor e não do ente público a que ele está vinculado.
O “odious debt”, tal como proposto pro Sack, possui aplicação restrita aos casos em que um Estado contrata operação de crédito com outro e utiliza os valores recebidos em finalidades privadas, ao invés de atender ao interesse público para o qual os recursos deveriam ser destinados.
Ao longo do tempo, essa doutrina foi aperfeiçoada e amoldada à realidade jurídico-política da sociedade contemporânea. Sobre este tema, veja-se o que diz Khalfan[2]:
Desde os estudos de Sack, Felchenfeld e O´Connel, a constelação de empréstimos internacionais mudou dramaticamente. Embora não haja referência às nações em desenvolvimento naqueles estudos, é claro que os defensores contemporâneos da doutrina do odious debt estão preocupados com a sua aplicação aos “ditadores” modernos que não aplicam os recursos recebidos no interesse da população.
Ora, analisando a doutrina proposta por Sack e revisada por Khalfan, pode-se identificar um ponto de interseção entre o “odious debt” e as tomadas de contas especiais. Em ambos os casos, o gestor que contraiu obrigações em nome da entidade que preside não aplica os recursos de acordo com o que fora previamente combinado com o concedente.
No entanto, as semelhanças param neste ponto. Se para o TCU, a pessoa jurídica a que o gestor estava vinculado responde solidariamente com ele no ressarcimento ao erário, para Sack (e para os defensores da doutrina do “odious debt”) apenas o gestor deveria ressarcir os valores aplicados incorretamente.
Trazendo a teoria do “odious debt” para o âmbito do Direito Administrativo, fica ainda mais claro que não é razoável acionar a pessoa jurídica a que o gestor estava vinculado para buscar o ressarcimento, sob pena de lesionar a população duplamente.
Isso porque, em um primeiro momento, a população foi lesada quando o gestor deu outro fim aos recursos que foram repassados ao órgão ou à entidade. Ora, ao contrário do entendimento do TCU, não se pode falar em benefício para a população se a aplicação de recursos se deu em contrariedade ao plano de trabalho, ao orçamento legitimamente aprovada pelo povo e aos demais instrumentos de planejamento financeiro e orçamentário.
Naquele momento e com os recursos daquele convênio determinado, o interesse dos partícipes e principalmente da população era a realização de uma obra ou a prestação de um serviço específico. Se houve tredestinação, o benefício esperado não foi completamente atingido, mesmo que tenha sido prestado outro serviço ou realizada outra obra.
Além disso, na maioria das vezes, o gestor não possui recursos suficientes para arcar com o débito. Nessas hipóteses, o órgão ou a entidade a que ele estava vinculado deverá arcar com despesas relativas a um serviço, obra ou compra que não estava prevista no seu planejamento, o que, além de contrariar o interesse público primário, afetará o equilíbrio das contas da pessoa jurídica.
Ou seja, por todos os lados que se analise a questão, é certo que a pessoa jurídica irá responder pelos erros e equívocos causados por aquele que a estava presidindo. No entanto, imputar a ela a responsabilidade por tais erros acabará afetando diretamente a população, o que seria juridicamente inadmissível.
Portanto, baseando-se na teoria do “odious debt”, importada do Direito Internacional Público, tem-se que somente os gestores deverão responder pela aplicação irregular de recursos públicos transferidos por meio de convênios e contratos de repasse, de modo que não se pode exigir da pessoa jurídica a que ele esteja vinculado o ressarcimento de tais valores, sob pena de evidente prejuízo à população.