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Incorporação de rede elétrica particular por concessionária ou permissionária de energia elétrica:

Aplicação e limites do Recurso Especial 1.243.646/PR

12/03/2014 às 11:39
Leia nesta página:

Não se aplica o fundamento do REsp 1.343.646/PR quando o caso envolver rede elétrica particular, cujo direito à indenização decorre, única e exclusivamente, da incorporação da rede elétrica sem a indenização devida.

Após ter publicado um artigo neste renomado Portal Jurídico¹, fomos instados a manifestar-se sobre uma questão extremamente controvertida: o termo inicial do prazo prescricional para ajuizamento de ação judicial objetivando a restituição de valor aportado por particular para construção de rede de eletrificação rural. Em resposta às indagações, fomos honrados com a publicação de outro artigo², que buscou abordar o tema da maneira mais clara e objetiva possível.

Ocorre, no entanto, que existe outro tema em voga, que deu ensejo a inúmeros questionamentos: o recente julgamento do REsp 1.343.646/PR submetido, pelo Superior Tribunal de Justiça, ao rito dos repetitivos (CPC, art. 543-C). Eis a ementa do referido aresto:

FINANCIAMENTO DE REDE DE ELETRIFICAÇÃO RURAL. RECURSO ESPECIALREPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. CUSTEIO DE OBRADE EXTENSÃO DE REDE ELÉTRICA PELO CONSUMIDOR. ILEGALIDADE. NÃOOCORRÊNCIA. PEDIDO DE RESTITUIÇÃO. DESCABIMENTO.

Para efeitos do art. 543-C do CPC:

1. A participação financeira do consumidor no custeio de construção de rede elétrica não é, por si só, ilegal, uma vez que, na vigência do Decreto n. 41.019/57, havia previsão normativa de obras que deviam ser custeadas pela concessionária (art. 141), pelo consumidor(art. 142), ou por ambos (art.138 e art. 140).

2. Em contratos regidos pelo Decreto n. 41.019/57, o consumidor que solicitara a extensão da rede de eletrificação rural não tem direito à restituição dos valores aportados, salvo na hipótese de (i) ter adiantado parcela que cabia à concessionária - em caso de responsabilidade conjunta (arts. 138 e 140) - ou (ii) ter custeado obra cuja responsabilidade era exclusiva da concessionária (art.141).Leva-se em consideração, em ambos os casos, a normatização editada pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica -DNAEE, que definia os encargos de responsabilidade da concessionária e do consumidor, relativos a pedidos de extensão de redes de eletrificação, com base na natureza de cada obra.

3. À míngua de comprovação de que os valores cuja restituição se pleiteia eram de responsabilidade da concessionária, não sendo ocaso de inversão do ônus da prova e não existindo previsão contratual para o reembolso, o pedido de devolução deve ser julgado improcedente.

4. No caso concreto, os autores não demonstraram que os valores da obra cuja restituição se pleiteia deviam ter sido suportados pela concessionária do serviço. Os recorrentes pagaram 50% da obra de extensão de rede elétrica, sem que lhes tenha sido reconhecido direito à restituição dos valores, tudo com base no contrato, pactuação essa que, ipso factum, não é ilegal, tendo em vista a previsão normativa de obra para cujo custeio deviam se comprometer, conjuntamente, consumidor e concessionária (arts. 138 e 140 do Decreto n. 41.019/57).

5. Recurso especial não provido (STJ - REsp 1.343.646/PR – Rel. Min. Luis Felipe Salomão DJe 16.04.2013 – grifo nosso).

Como se vê, a ementa do julgado assinala que a participação financeira do consumidor na implantação de rede elétrica não é, de per si considerada, ilegal, pois o Decreto 41.019/57 previa esta possibilidade.

A ementa sub examine também assinala que, nos contratos regidos pelo Decreto 41.019/57, o particular não terá direito à restituição do valor despendido para a edificação de rede elétrica, salvo se comprovar ter adiantado parcela que cabia à concessionária - em caso de responsabilidade conjunta - ou ter custeado obra cuja responsabilidade era exclusiva da concessionária.

Depreende-se, pois, que os casos regidos pelo Decreto n. 41.019/57 estão bem delineados.

Surge, todavia, a problemática: quais os casos regidos por este Decreto?

Antes de responder a esta pergunta, faz-se mister fazer uma breve digressão sobre o Decreto em estudo. Vamos lá!

O Decreto 41.019/57, revogado, no ponto, pela Lei 10.438/2002, previa que a construção de determinadas redes elétricas deveria ser custeada exclusivamente pela concessionária (art. 141),outras exclusivamente pelo consumidor (art. 142),e outras por ambos (arts. 138 e 140).

O Decreto em tablado também previa que com o término da construção, a rede elétrica, quando construída com a participação financeira do consumidor, deveria ser imediatamente incorporada ao patrimônio da concessionária, confira-se:

Art. 143. As obras construídas com a participação financeira dos consumidores (arts. 140 e 142) serão incorporadas aos bens e instalações do concessionário quando concluídas, creditando-se a contas especiais as importâncias relativas às participações dos consumidores, conforme legislação em vigor. (Redação dada pelo Decreto nº 98.335, de 1989)

Esse dispositivo é de suma importância para a escorreita compreensão da controvérsia, porquanto da análise dele decorre a resposta à indagação formulada linhas acima, bastando atentar-se para o fato de, nos termos do dispositivo em tela, o consumidor não chegava a ser proprietário da rede elétrica, a qual passava, logo após a conclusão da obra, a integrar o patrimônio da concessionária, não ganhando, portanto, a natureza jurídica de bem particular.

Com efeito, desponta nítido que os casos regidos pelo Decreto em questão são aqueles cuja causa de pedir é única e exclusivamente a participação financeira do consumidor na construção da rede elétrica, já que a rede passava, logo após sua construção, a integrar o patrimônio da concessionária, de modo que o particular não adquiria sua propriedade, não havendo, destarte, outra causa de pedir, senão o desembolso realizado.

Dito isso, impende salientar que mesmo sob a égide do Decreto em testilha, muitas concessionária não se dignaram a aferir se era caso de participação financeira do consumidor, da concessionária, ou de ambos. Preferiram, tout court, atribuírem ao consumidor o ônus de arcar com a totalidade da construção da rede, conferindo-lhe o título de propriedade, representado pelo projeto da rede em seu nome. E ao passar a ser proprietário da rede, o consumidor adquiria outro ônus: a obrigatoriedade de arcar com a manutenção da rede, muitas vezes tendo que assinar termo de compromisso perante a concessionária.

Em razão disso, o consumidor era duplamente penalizado. A uma, porque a concessionária sequer dignava-se a aferir, à luz do Decreto n. 41.019/57, quem deveria arcar com a construção da rede. A duas, porque o consumidor era obrigado a arcar com a manutenção da rede, valendo ressaltar, nesse ponto, que a manutenção da rede elétrica por vários anos fica mais onerosa do que a própria construção.

Nesse contexto, avulta-se nítido que não era interessante para a concessionária a celebração de contrato com balbrame no Decreto 41.019/57, pois isso implicaria na incorporação imediata da rede elétrica ao seu acervo patrimonial (art. 143), resultando na obrigação de arcar com os gastos inerentes à sua manutenção, sem olvidar da possibilidade de ter que contribuir, exclusivamente (art. 141) ou parcialmente (arts. 138 e 140), para a construção da rede. Era mais cômodo, portanto, aproveitar-se somente do bônus e atribuir ao consumidor ambas as obrigações: construção e manutenção da rede.

Ante a inobservância do Decreto em comento por parte das concessionárias, ao longo dos anos passou a existir um verdadeiro conglomerado de redes elétricas particulares, o que, inclusive, passou a conflitar com o disposto no art. 21, XII, “b”, da Constituição Federal, que prevê que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, a energia elétrica, mediante serviços e instalações.

O que se percebe é que passaram a coexistir duas hipóteses diversas. Os casos regidos pelo Decreto 41.019/57, em que após sua construção a rede elétrica passou a integrar o patrimônio da concessionária, e os casos em que após a construção da rede o consumidor passou a ser seu proprietário, isto é, a rede não fora incorporada ao patrimônio da concessionária. Na primeira hipótese, aplica-se o decidido pelo STJ no bojo do REsp 1.343.646/PR, o mesmo não se podendo dizer em relação ao segundo caso, o qual é regido por normas editadas especificamente para disciplinar a matéria.

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Com efeito, objetivando transferir para o Poder Público as redes elétricas particulares existentes, a Lei 10.848, de 15 de março de 2004, veio estabelecendo o seguinte:

Art 15. Conforme disciplina a ser emitida pela ANEEL, as concessionárias de distribuição deverão incorporar a seus patrimônios as redes particulares que não dispuserem de ato autorizativo do Poder Concedente até 31 de dezembro de 2005 ou, mesmo dispondo, desde que exista interesse das partes em que sejam transferidas.

Parágrafo único. Os custos decorrentes dessa incorporação, incluindo a reforma das redes, serão considerados pela ANEEL nos processos de revisão tarifária.

Passados dois meses, fora publicado o Decreto 5.163, de 30 de julho de 2004, que, no ponto, assim dispõe:

Art1 71...

§ 5º  A partir de 1º de janeiro de 2006, as redes particulares que não dispuserem de ato autorizativo serão incorporadas ao patrimônio das concessionárias de serviços públicos de distribuição de energia elétrica, conforme as respectivas áreas de concessão, mediante processo formal a ser disciplinado pela ANEEL, observadas as seguintes condições:

I - comprovação pela concessionária do cumprimento do disposto no § 2º; e

II - avaliação prévia das instalações, para o fim de fixação do valor a ser indenizado ao titular da rede particular a ser incorporada.

Nota-se que além de repetir praticamente a mesma redação da Lei 10.848/04, o Decreto em tela também prevê, expressamente, o direito à indenização decorrente da incorporação da rede (art. 71, § 5º, inc. II).

Por derradeiro, a Resolução nº 229, de 08 de agosto de 2006, da ANEEL, que estabeleceu as condições gerais para a incorporação de redes particulares, determina, de forma expressa, cogente e imperativa, que as redes particulares que não dispuserem de ato autorizativo do Poder Concedente deverão ser incorporadas ao patrimônio da respectiva concessionária, confira-se:

Art. 3º. As redes particulares que não dispuserem de ato autorizativo do Poder Concedente, na forma desta Resolução, deverão ser incorporadas ao patrimônio da respectiva concessionária ou permissionária de distribuição que, a partir da efetiva incorporação, se responsabilizará pelas despesas de operação e manutenção de tais redes.

Ainda segundo o ato normativo em referência, o particular não fará jus à indenização decorrente da incorporação acaso tenha transferido a rede para a concessionária mediante instrumento de doação, veja-se:

Art. 9º......

§6° Excluem-se da obrigação do ressarcimento, os casos de transferência da rede por meio de instrumento de doação para a concessionária ou permissionária.

Assim, em tese, o consumidor somente não terá direito à indenização caso tenha doado a rede para a concessionária.Não tendo havido doação e sendo a rede de propriedade particular, com a sua incorporação nasce para o consumidor/proprietário o direito inexpugnável à indenização.

Portanto, para disciplinar os casos envolvendo as redes elétricas particulares existentes, foram editadas normas específicas, de sorte que, em observância ao princípio do tempus regit actum - não olvidando, ainda, dos critérios cronológico e da especialidade -, tratando-se de redes elétricas particulares incorporadas durante a vigência da legislação de regência (Lei 10.848/04, Decreto 5.163/04 e Resolução 229/06 da ANEEL), não há que se falar em aplicação do Decreto 41.019/57.

Com base nisso, pode-se concluir, com inegável segurança, que nos casos regidos pelo Decreto 41.019/57, cuja causa de pedir é tão somente a participação financeira do consumidor na construção de rede elétrica, aplica-se o REsp 1.343.646/PR, o qual aponta que o consumidor somente terá direito à restituição do valor aportado para construção da rede se comprovar que adiantou parcela que cabia à concessionária - em caso de responsabilidade conjunta (arts. 138 e 140) - ou que custeou obra cuja responsabilidade era exclusiva da concessionária (art.141). Lado outro, não se pode cogitar de aplicação do predito julgado quando o caso envolver rede elétrica particular, cujo direito à indenização decorre, única e exclusivamente, da incorporação da rede elétrica sem a indenização devida, pouco importando se a rede deveria ser construída pelo consumidor, pela concessionária, ou por ambos, pois a conditio sine qua non imposta pela legislação de regência para fins de indenização é, tão e só, que a rede objeto de incorporação seja particular.


Notas

1 RODRIGUES, Lucas Mello. Direito de propriedade: incorporação de rede elétrica particular pelas concessionárias e/ou permissionárias de energia elétrica. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2598, 12 ago. 2010 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17168>.

2 RODRIGUES, Lucas Mello. Incorporação de rede elétrica particular por concessionária ou permissionária de energia elétrica: ofensa ao direito de propriedade; indenização; prazo prescricional e o termo inicial da sua contagem. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3723, 10 set. 2013 . Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/25263>.

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Sobre o autor
Lucas Mello Rodrigues

Mestre em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) com reconhecimento do título no Brasil pela Universidade de Marília (Unimar). Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Ji-Paraná (CEULJI/ULBRA). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual e Cível. Aprovado no Exame da OAB na primeira vez que o realizou, quando ainda cursava o 9º período do curso de Direito. Aprovado em 1º lugar para o cargo de Oficial de Diligências do Ministério Público do Estado de Rondônia (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado em 1º lugar para Estagiário de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, onde exerceu a função por 2 (dois) anos. Aprovado em 1º lugar para Estagiário de Direito do Ministério Público Federal - MPF (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado em 1º lugar para Estagiário de Direito do Ministério Público do Trabalho - MPT (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado para o cargo de Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado para o cargo de Agente de Sistema de Saneamento da Companhia de Águas e Esgoto de Rondônia - CAERD (nomeado, renunciou à vaga). Sócio-proprietário do escritório Lucas Mello Rodrigues Sociedade Unipessoal de Advocacia. Autor do livro "Projeção da Autonomia Privada no Processo Civil e sua contribuição para a prestação de uma tutela jurisdicional efetiva: autonomia privada e processo civil". Tem vários artigos publicados, inclusive em periódico de circulação nacional. É autor do anteprojeto da Lei 1.232, de 28 de julho de 2016, que "dispõe sobre o atendimento prioritário às pessoas idosas e demais pessoas que especifica nos estabelecimentos comerciais, de serviços e similares de Alto Paraíso [RO], e dá outras providências".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Lucas Mello. Incorporação de rede elétrica particular por concessionária ou permissionária de energia elétrica:: Aplicação e limites do Recurso Especial 1.243.646/PR. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3906, 12 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26871. Acesso em: 2 nov. 2024.

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