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Sobre a desmilitarização da Polícia Militar e sua unificação com a Polícia Civil

13/03/2014 às 14:52
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Embora a desmilitarização seja uma reivindicação legítima, eis que surgem panaceias mirabolantes em momentos de instabilidade institucional, cujo ambiente é propício para ideias de questionável interesse público, mas de forte apelo ideológico.

Várias manifestações tomaram as ruas do Brasil neste ano de 2013 e os vários casos noticiados na imprensa sobre alguns abusos praticados na contenção dos protestos trouxeram à tona a discussão sobre a necessidade de mudança do modelo de policiamento militar ainda existente no Brasil.

A propósito, sobre duas das principais instituições policiais existentes, impende registrar inicialmente que a Polícia Militar, força auxiliar das Forças Armadas, é a polícia administrativa, responsável pelo policiamento ostensivo e pela preservação da ordem pública, estando subordinada diretamente ao Poder Executivo.

A Polícia Civil, também denominada Polícia Judiciária, por sua vez, é a encarregada da apuração dos crimes, fase preliminar que antecede ao Processo Penal, essencial à função jurisdicional e vinculada finalisticamente ao Poder Judiciário, embora teratologicamente permaneça subordinada ao Poder Executivo.

Feito esse registro, no mês em que a Constituição Federal completa 25 anos, fica evidente que ainda vivenciamos a experiência de uma recente da redemocratização.

Nesse contexto, a formação da Polícia Militar não se apresenta consentânea com o modelo democrático fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana, fundamentos da República Federativa do Brasil inscritos no artigo primeiro Carta Constitucional.

O reflexo disso foi visto nos embates e na forma com que alguns cidadãos foram reprimidos pela Polícia Militar em manifestações populares amparadas pelo direito à livre manifestação do pensamento (inciso IV) e pelo direito de reunião (inciso XVI), ambos previstos no art. 5º da CF/88.

Recentemente, mais dois casos emblemáticos firmaram a convicção de que algo precisa ser feito com relação a esse modelo de policiamento. O primeiro deles foi o caso Amarildo, em que dez policiais militares – inclusive um Major e um Tenente – foram indiciados pelo Delegado de Polícia do Rio de Janeiro no inquérito policial em que se apurou o desaparecimento daquele morador logo após ser preso pela Polícia Militar.

O outro caso emblemático foi a forma como professores do Rio de Janeiro foram debelados pela Polícia Militar durante movimento que pleiteava a melhoria das condições de trabalho dos educadores, profissionais responsáveis pela formação de nossos futuros cidadãos.

Esses são apenas dois exemplos dentre muitos outros noticiados na imprensa que resultaram no que hoje se mostra como um grande movimento pela desmilitarização da Polícia Militar.

Embora a desmilitarização seja uma reivindicação legítima, nesses momentos surgem especialistas prontos para divulgar panaceias mirabolantes, pré-fabricadas, aguardando o momento oportuno para deflagrá-las, geralmente momentos de forte instabilidade institucional, o ambiente propício para dispararem ideias de questionável interesse público, mas de forte apelo ideológico.

Um desses kits prontos de fábrica, do tipo pacote completo é a proposta de desmilitarização da Polícia Militar, unificação com a Polícia Civil e unificação de todas as carreiras existentes dentro das polícias – um péssima ideia que se tornou a PEC nº 51/2013 do Senado.

Essa pretensão de unificação total e irrestrita virou um verdadeiro transtorno obsessivo compulsivo (TOC) de alguns que sempre ficaram à espreita, tamanha a desfaçatez da proposta, até que qualquer qualquer coisa relacionada à segurança pública fosse aventada (desta vez é a desmilitarização da Polícia Militar), aproveitando para lançar à exaustão nas mídias sociais e nos meios publicitários seus ideais quiméricos, como se a repetição tivesse o dom de mudar a essência das coisas, salvo para aqueles que comungam dos mesmos valores de Joseph Goebbels – ministro da propaganda do Reich nazista – , o qual afirmara que “uma mentira contada mil vezes, se torna realidade”.

Certamente, hoje não se pode cair em tais contos, porquanto cabe às cabeças pensantes o dever de aclarar as coisas e analisar o que for proposto nessa área de modo bastante acurado.

Fazendo uma análise sóbria da questão, sem o atrevimento de  propor qualquer solução mágica, a primeira conclusão é a de que uma mudança se faz necessária, notadamente no que tange à formação e à forma de atuação da Polícia Militar.

Nessa área qualquer mudança efetiva e duradoura deve ser feita passo a passo, de forma responsável, pois não se muda uma cultura de várias décadas com a alteração de uma lei. Antes disso é preciso a mudança de valores, da cultura que permeia a formação dos integrantes da instituição policial, sendo esse apenas o primeiro passo de um longo processo de readequação de um modelo já consolidado.

No caso da proposta de desmilitarização da Polícia Militar, será necessário o transcurso de pelo menos quinze ou vinte anos até que uma nova cultura, totalmente diferente da utilizada até hoje, esteja arraigada na consciência coletiva de todo o efetivo, tempo esse também necessário para que uma renovação ao menos parcial da tropa se realize.

Essa anotação é importante haja vista que os especialistas que aparecem em cada esquina insistem no discurso repetitivo de que a desmilitarização deve ser seguida de uma imediata unificação da Polícia Militar (desmilitarizada apenas no nome) com a Polícia Judiciária (Polícia Civil) e, se não bastasse, da unificação também todas as carreiras policiais.

Com a devida venia às opiniões dos especialistas que defendem panaceias desse jaez, mas esse discurso é frágil e perigoso, que sucumbe ao menor esforço intelectivo capaz de constatar, além do risco ao próprio estado brasileiro, o efeito inverso que uma unificação dessa natureza proporcionaria neste momento.

Devemos atentar para o fato de que as Polícias Judiciárias, de formação civil desde a sua instituição pela Constituição Federal de 1988, com formação humanística e atuação subordinada aos ditames da lei, possui hoje um quadro de servidores consideravelmente menor que o das Polícias Militares.

Por isso, a intenção de trazer para dentro das Polícias Civis todo um efetivo militar, sem um período de “amortecimento” do modelo anterior recém-desmilitarizado, fará com que a suposta solução vire um problema ainda maior, já que ao invés de desmilitarizar a Polícia Militar, promover-se-á a militarização da Polícia Civil como efeito reflexo da união das duas instituições.

Não se trata de uma crítica aos policiais militares, mas não há dúvida de que trarão consigo um modelo de policiamento com o qual conviveram por toda a vida profissional, que não desaparece de um dia para outro pelo simples ato de promulgação de uma lei, ficando evidente que a consequência dessa união funesta que é aventada será a sobreposição do modelo até hoje adotado pela Polícia Civil pela doutrina trazida pelos policiais militares.

A proposta de unificação da Polícia Militar e da Polícia Civil se torna ainda mais nefasta se notarmos que o Brasil ainda experimenta uma pequena experiência de recente redemocratização, o que desaconselha a adoção de um modelo de polícia única, que consequentemente formaria uma enorme força policial, sem referência em termos de efetivo e de concentração de poder, já que se aproximaria do ou ultrapassaria o efetivo das Forças Armadas.

Essa nova polícia, única em cada Estado da Federação, com efetivo digno de um exército, com predominante engajamento e formação militar em sua origem, ficaria sob a tutela de cada um dos governadores, o que demonstra a gravidade de tamanha concentração de força que, em última análise, é um risco ao próprio modelo federativo de nossa República.

Um exemplo claro de que a proposta de unificação não opera milagres é o fato de que nos EUA existem mais de 17 mil agências policiais, sendo aproximadamente 12.300 departamentos de polícia municipais e de condados, 3100 xerifados, além das polícias estaduais e inúmeras agencias policiais federais, das quais se destacam o Federal Bureau of Investigation (FBI), a Drug Enforcement Administration (DEA), o U.S. Marshals (USM), o Immigration and Naturalization Service (INS), o U.S. Treasury Department (Departamento do Tesouro), o Bureau of Alcohol, Tobacco, and Fire Arms (ATF), o Department of Interior (DI), o U.S. Postal Service (USPS), dentre outros, sendo que alguns destes se subdividem em outras agências policiais, cada uma com atribuições específicas, existindo casos de agências policiais encarregadas de investigar outras.

Isso mostra que a existência de mais de uma instituição policial, ao invés de ser combatida, deve ser aperfeiçoada através da especialização de suas funções, garantindo assim uma atuação mais eficaz.

Nesse sentido, a Polícia Judiciária hoje investiga até mesmo os crimes comuns praticados por policiais militares, como no caso do desaparecimento de Amarildo no Rio de Janeiro, fato amplamente noticiado na imprensa, que culminou no indiciamento pela Polícia Civil do Rio de Janeiro de dez policias militares.

A manutenção da separação das instituições é necessária e, principalmente, aconselhável, pois o Brasil ainda carece de maior amadurecimento em termos institucionais, antes que se vislumbre a unificação de forças policiais, conquanto a especialização pela separação das funções seja salutar.

Ademais, os defensores da unificação total das Polícias Militar e Civil sustentam que no restante do mundo todas as polícias são de ciclo completo. Conquanto seja questionável a assertiva de que em todo o mundo tal modelo é adotado, fato é que nas polícias que o adotam, invariavelmente existe uma divisão interna, exatamente para distinguir aqueles policiais que exercem o policiamento preventivo, fardado e ostensivo, daqueles que exercem a função velada de investigação das infrações penais.

Nos EUA, que costuma ser utilizado como exemplo, o policial ingressa como oficial, encarregado do policiamento ostensivo, não atuando na fase de investigação. O mesmo se diz do investigador, que não atua no policiamento fardado ou de manutenção da ordem pública.

Logo, percebe-se que no modelo de ciclo completo o policial que atua no policiamento ostensivo preventivo, fardado, não funciona na fase da investigação, até mesmo pela inviabilidade de se fazer todas as funções pelo mesmo agente. Ou seja, alguns policiais fazer a função da Polícia Militar e outros a da Polícia Judiciária Civil.

Por isso, a tese de que o modelo de ciclo completo é mais eficiente e funcional talvez não seja a mais adequada para o Brasil, já que nele a instituição policial acaba se tornando generalista, fazendo de tudo um pouco, o que gera questionamentos sobre sua efetividade e eficiência.

Enfim, o que existe no Brasil no que tange as atividades exercidas atualmente pela Polícia Militar e pela Polícia Civil é apenas a especialização de funções, dividas em duas instituições para melhor aperfeiçoamento das atividades, racionalizando e dando mais eficácia ao exercício das respectivas atribuições, pois as instituições possuem particularidades e formação específica para a respectiva atividade fim.

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Nesse diapasão, impende ainda ressaltar que a natureza das funções de cada uma das instituições no Brasil está finalisticamente ligada a Poder diversos – a Polícia Militar diretamente vinculada ao Poder Executivo, encarregada da prevenção e da manutenção da ordem pública; e a Polícia Judiciária que, como o próprio nome diz, está finalisticamente ligada ao Poder Judiciário, encarregada da fase preliminar ao processo penal, consistente na apuração das infrações penais.

Podemos concluir que ambas as instituições policiais – ainda que venham a possuir natureza civil, o que é desejável – possuem particularidades e finalidades que aconselham a manutenção da especialização de cada uma delas na respectiva área, ao menos até que uma nova cultura seja implantada e absorvida institucionalmente pelos integrantes da atual Polícia Militar que, em um tempo razoável, exigirá pelo menos vinte e cincos anos.

Enfim, essas e outras razões demonstram que a desmilitarização da Polícia Militar, caso venha a ser implantada, deve vir acompanhada de profunda reforma do modelo de formação de seus integrantes e de sua forma de atuação, mantendo-se as mesmas funções de polícia administrativa ostensiva e de preservação da ordem pública, podendo, nessa função, receber o apoio complementar das guardas municipais, porém sob um novo prisma democrático e de respeito aos direitos individuais.

Porém, qualquer mudança nessa área deve primar pela ausência de rupturas abruptas ao modelo muito bem definido pelo constituinte originário, mantendo-se a continuidade dos serviços essenciais realizados pela que porventura venha a se tornar a Polícia Administrativa Civil dos Estados (atual Polícia Militar).

Quanto à Polícia Judiciária – Polícia Federal e Polícias Civis dos Estados e do Distrito Federal – esta deve ser aperfeiçoada, dotando-a de autonomia financeira, funcional e administrativa, além de independência funcional para o membro da carreira de Delegado de Polícia, uma necessidade premente para que exerçam com eficiência sua relevante e indeclinável função de promover a investigação das infrações penais.

Tais garantias são essenciais à atividade de investigação criminal e ao fortalecimento e coesão do sistema de justiça criminal, que começa com a investigação pela Polícia Judiciária, passa pela promoção da ação penal pelo Ministério Público e se encerra com o julgamento pelo Poder Judiciário, os quais devem estar estruturados tanto financeiramente como funcionalmente para que possam atuar sem ingerências externas, condições necessárias para se reduzir o grave problema de criminalidade existente no Brasil.

Diante disso, a Proposta de Emenda Constitucional nº 51/2013 do Senado, que pretende unir a Polícia Miliar à Polícia Judiciária Civil é um equívoco que não atende ao interesse público e desconsidera a negativa experiência recente findada com a redemocratização, pois mudanças – quando necessárias – devem ser graduais, especialmente quando interferem em instituições tão sensíveis à manutenção da tranquilidade institucional de nosso juvenil estado democrático de direito.

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Sobre o autor
Thiago Costa Monteiro Zandona

Advogado em Campo Grande –MS e Pós Graduando na Especialização em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável PUCPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANDONA, Thiago Costa Monteiro. Sobre a desmilitarização da Polícia Militar e sua unificação com a Polícia Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3907, 13 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26880. Acesso em: 22 dez. 2024.

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