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A inconstitucionalidade do artigo 26 do Decreto 70.235/72 que regulamenta o processo administrativo tributário

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17/03/2014 às 14:14
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CAPÍTULO 3 - O DECRETO 70.235/72

3.1. Da previsão constante do artigo 26, inciso I, do Decreto 70.235/72

Conforme já anteriormente dito, o Decreto 70.235/72, é a legislação vigente que rege o processo administrativo tributário federal brasileiro.

Em seu artigo 26, apresenta a seguinte disposição:

Art. 26. Compete ao Ministro da Fazenda, em instância especial:

I - julgar recursos de decisões dos Conselhos de Contribuintes, interpostos pelos Procuradores Representantes da Fazenda junto aos mesmos Conselhos;

II - decidir sobre as propostas de aplicação de equidade apresentadas pelos Conselhos de Contribuintes.

Parágrafo único.  A Câmara Superior de Recursos Fiscais poderá rever ou cancelar súmula, de ofício ou mediante proposta apresentada pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional ou pelo Secretário da Receita Federal do Brasil. (Incluído pela Medida Provisória nº 449, de 2008)       

De acordo com o referido dispositivo, além da instância superior representada pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (instituído pela Lei 83.304/79), há uma Instância Especial, na atualidade, responsável por rever decisões proferidas pelo CARF.

Ocorre que, em leitura atenta do inciso I do artigo supra descrito, não é dado aos contribuintes o direito de interpor recurso à Instância Especial, pois, segundo o Decreto 70.235/72, ao Ministro da Fazenda incumbe julgar recursos de decisões dos Conselhos de Contribuintes, interpostos pelos Procuradores Representantes da Fazenda junto aos mesmos Conselhos.

Conforme se discorrerá adiante, há explícita inconstitucionalidade no referido inciso, sendo a lei mais benevolente para com a Fazenda pública, em detrimento do contribuinte.

Jamais se buscaria defender a existência de uma única instância, haja vista o quanto se distanciaria da justiça sobmeter contribuinte e Fazenda a uma instância única. A instância superior administrativa é uma garantia fundamental especialmente para o contribuinte no que toca aos abusos do Fisco.

Hugo de Brito Machado (2008, p. 450) diz que, “em termos práticos, é induvidosa a necessidade desse segundo raude jurisdição administrativa, posto que os julgamento de primeiro grau constituem, no mais das vezes, simples homologação do auto de infração, desprovida de qualquer fundamento consistente”.

No entanto, não se busca neste estudo discorrer acerca da necessidade ou não de instância superior, até mesmo porque, do ponto de vista constitucional, ela é necessária à propria administração da justiça distributiva, mas demonstrar que o inciso I do artigo supra citado, não foi recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil, haja vista evidente afronta aos dispositivos, princípios e liames constitucionais processuais.

3.2. Da inconstitucionalidade do artigo 26, inciso I, do Decreto 70.235/72 e sua não recepção pela CR/88

O inciso I, do artigo 26, do Decreto 70.235/72, é a legítima manifestação de poder do Estado em relação aos cidadãos, quando o direito de recorrer a Instância Superior somente assiste a um dos pólos do processo administrativo tributário, qual seja, à Fazenda Pública:

Art. 26. Compete ao Ministro da Fazenda, em instância especial:

I - julgar recursos de decisões dos Conselhos de Contribuintes, interpostos pelos Procuradores Representantes da Fazenda junto aos mesmos Conselhos;

(...)

Por este inciso, tem-se o fato de se reconhecer, ao Ministro da Fazenda, o poder de anular decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais que sejam contrárias ao Fisco, o que é incompatível com a natureza da atividade de julgamento atribuída aos órgãos da Administração Tributária, retirando a utilidade destas, haja vista o fato de que, a decisão, sempre, competirá a uma única pessoa.

Apesar de já anteriormente dito, são princípios constitucionais basilares o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

O referido inciso é uma afronta á própria Constituição da República Federativa do Brasil, pelo que não foi recepcionado por esta, apesar de continuar sendo aplicado nos dias atuais.

Fato é que uma vez não recepcionada determinada norma pela nova Constituição, tem-se esta norma por inconstitucional, e portanto, inaplicável.

No que toca ao devido processo legal, não há como garantir a integridade do mesmo com a permanência “em atividade” de dispositivo que o desconsidera como princípio processual basilar.

Como garantir o contraditório, se a continuidade na aplicação de dispositivo inconstitucional agrega legitimidade ao desequilíbrio processual?

Como garantir a ampla defesa se não é dado ao contribuinte o direito de se defender em Instância Especial, de recurso contra si, em razão de a lei inconstitucional que ainda é aplicada, o tolher o acesso à referida instância?

O contribuinte está absolutamente desprotegido frente a aplicação do dispositivo supra, uma vez que tounou-se, tal qual o consumidor, a parte fraca, “hipossuficiente”, à qual não é conferida prerrogativa de tratamento desigual, na medida de sua desigualdade.

O princípio do julgador competente, antes citado mas sobre o qual não houve aprofundamento, vem à tona, haja vista não haver a possibilidade de o cidadão-contribuinte postular perante a Instância Especial sua pretensão fiscal, tornando o Ministro da Fazenda competente aos olhos da Fazenda Pública, e incompetente frente à postulação do contribuinte.

Celso Alves Feitosa (1998, p.40), observa que “os órgãos julgadores administrativos (...) formados, em regra, por representantes do órgão lançador e de seus segmentos na sociedade, dão a garantia da impessoalidade e imparcialidade necessária e imprescindível à aplicação da justiça fiscal.

Como se agregará valor a revisão hierárquica feita somente por um representante do órgão lançador, e que somente pode julgar recursos interpostos pelo órgão lançador?

A revisão hierárqioca manifesta sua importância como forma de disponibilizr ao contribuinte a demosntração da impessoalidade e imparcialiade das decisões proferidas por estes órgão.

É absolutamente insconstitucional, do ponto de vista mais objetivo, a sobrevivência de um dispositivo que contraria tudo o que está disposto no diploma que rege a sociedade brasileira.

Segundo Neder e Martinez (2004, p.298), acerca da existência da Instância Especial, existem duas correntes acerca do assunto:

a)  a primeira corrente apresenta a idéia de que: “a fazenda Nacional ainda tem o pensamento de que ainda caberia recurso ao Ministro do Estado da Fazenda contra decisão do Conselho de Contribuintes (...) figurando então o Ministro da Fazenda como Instância especial nos termos do artigo 26, do Decreto 70.235/72;

b) a segunda corrente, eminentemente doutrinária e contrária à anterior, “argumentam que tal função, originariamente exercida por tal autoridade, foi atribuída pelo Decreto 83.504/79 à Câmara Superior de Recursos Fiscais”, extinguindo, desde 1979, a Instância Especial.

A segunda corrente encontrou basilares na jurisprudência da Primeira Seção do Superior Tibunal de Justiça, em 2003, ratificou o entendimento esposado:

MANDADO DE SEGURANÇA Relator (a): Ministro Humberto Gomes de Barros Julgamento: 13/08/2003 Órgão Julgador: Primeira Seção Publicação: DJ 06/10/2003 Ementa: ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – CONSELHO DE CONTRIBUINTES – DECISÃO IRRECORRIDA – RECURSO HIERÁRQUICO – CONTROLE MINISTERIAL – ERRO DE HERMENÊUTICA I – A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal. II – O controle do Ministro da Fazenda (arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos do Conselho de Contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei. III – As decisões do Conselho de Contribuintes, quando não recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, “exonerar o sujeito passivo dos gravames decorrentes do litígio” (Dec. 70.235/72, art. 45). IV – Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva do Conselho de Contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco direito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida. (g.n.). (BRASIL, 2003)

Diante disso, vê-se que conceder acesso somente à Fazenda Pública a órgão recursal incide em evidente inconstitucionalidade, bem como em ilegitimidade do Ministro da Fazenda em atuar como julgador nestas circuntâncias, hja vista a não recepção, pela Constituição da República Federativa do Brasil.

Mais evidente se torna a afronta ao analisarmos especificamente o dispositivo do ponto de vista da isonomia, ocasião em que se detemina, sem maiores análises, o sucateamento do príncípio, haja vista o desrespeito à igualdade processula promovida pelo referido inciso.

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, inciso XXXVII, assim dispõe:

Art. 5º. (...)

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

O dispositivo atacado, qual seja art. 26, I, do Decreto 70.235/72, reputa na forma mais bruta de um juízo de exceção, o que agressivamente contraria o princípio da isonomia, e demonstra, ainda com maior afinco, a incostitucionalidade presente no referido artigo.

Fato é que a existência de um juízo de exceção reputa em clara insegurança jurídica para o administrado, que não pode ser punido por legislação inconstitucional, cuja aplicação se dá ilegitimamente.

Até o presente momento o Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu acerca da revogação do referido artigo, mas claro está que, para a Administração, seria mais confortável ser julgada, no âmbito federal, pelo Ministro, como prevê o artigo 26, I do Decreto 70.235/72.

Apenas por meio da análise constitucional é que se tem a garantia da coerência lógica do sistema jurídico e da supremacia da Constituição da República Federativa do Brasil.

Nenhum dos órgãos, administrativos ou judiciais, por mais que sua atuação esteja diretamente vinculada à lei, é obrigado a aplicar lei manifestamente inconstitucional. E se os órgãos julgadores administrativos visam exercer a justiça fiscal no controle de legalidade do lançamento, não há fundamento para que tal órgão despreze o que diz a Constituição da República.

3.3. Da tentativa de alteração por meio da Medida Provisória 449 com a extinção da instância especial em consonância com a CR/88, e a omissão legislatina na edição da Lei 11.941/2009

Em recente tentativa de alteração legislativa, a Medida Provisória 449/2008, depois convertida na Lei 11.941/2009 tentou, sem sucesso, “desaparecer” com a figura da Instância Especial.

A preocupação com a constitucionalidade do dispositivo que imputa somente à Fazenda o acesso à Instância Especial, por disposição expressa de lei é pertinente, haja vista que a Medida Provisória 449 (MPV 449), de 2008, em uma tentativa que restou infrutífera, apresentou nova redação ao artigo 26 do Decreto 70.235/72, conforme se lê:

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Art. 26.  A Câmara Superior de Recursos Fiscais poderá, nos termos do regimento interno, após reiteradas decisões sobre determinada matéria e com a prévia manifestação da Secretaria da Receita Federal do Brasil e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, editar enunciado de súmula que, mediante aprovação de dois terços dos seus membros e do Ministro de Estado da Fazenda, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos da administração tributária federal, a partir de sua publicação na imprensa oficial. Parágrafo único.  A Câmara Superior de Recursos Fiscais poderá rever ou cancelar súmula, de ofício ou mediante proposta apresentada pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional ou pelo Secretário da Receita Federal do Brasil.

Na redação sugerida pela MPV 449, a figura do julgamento pelo Ministro da Fazenda, em Instância Especial havia sido extirpada do ordenamento jurídico, e tornava o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, a última instância administrativa, preservando o direito ao contraditório e à ampla defesa, bem como a isonomia processual, pois não haveria mais juízo de exceção.

O ordenamento jurídico brasileiro assistiu ao progresso, e em momento imediatamente posterior, assistiu ao retrocesso da legislação, passandro-se por, respeitada a coloquialidade terminológica: “cego, surdo e mudo”.

Ressalte-se o fato de que o Decreto 70.235/72 se trata de legislação infraconstitucional, imediatamente sujeita ao controle de constitucionalidade, conforme leciona Carlos Roberto Siqueira Castro:

Ante o fato de a lei ser norma hierarquicamente inferior à Constituição e por possuir nesta os fundamentos de validade e sustentação, não será permitida a sua coexistência no ordenamento jurídico se seu conteúdo dispuser de modo a contrariar a Constituição, uma vez que somente com fundamento na Lei Maior é que ela poderia ser validada. (CASTRO, 2002, p.48)

Alguns doutrinadores entendem que a lei inconstitucional, ou seja, não recepcionada pela nova constituição, é nula de pleno direito. A MPV 449/2008 adequaria a legislação de forma a torna-lá recepcionável e coerente com o sistema processual constitucional, mas em sua conversão na Lei 11.941/2009, o legislador quedou-se inerte no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade da redação que vige desde 1972.

A nova redação foi simplesmente ignorada, resumindo-se a referida lei não se manifestar sobre o assunto, quedando-se inerte em relação a dispositivo expressamente inconstitucional, e cuja inconstitucionalidade foi expressamente questionada, quando da inserção de dispositivo que alteraria sua redação e suprimiria a Instância Especial.

Evidentemente, surge o seguinte questionamento: tendo em vista a existência de lei expressamente inconstitucional, é cabível ao agente administrativo promover o controle da constitucionalidade, deixando de aplicar lei inconstitucional, frente ao princípio da presunção da constitucionalidade das leis, em caso de omissão legislativa expressa, como na questão em estudo?

Dever-se-ía entende que sim, é cabível, haja vista a inexistência de dispositivo constitucional que coiba tal prática. Especialmente no caso do Poder Executivo (no presente caso, representado pelo Ministro da Fazenda), bem como o Poder Judiciário, tem obrigação de zelar pela aplicação das leis segundo a Constituição Federal. Assim também o Legislativo, mas todos observando os limites impostos pela lei, de acordo com as suas respectivas competências.

Fazê-lo diferente sim, implica em séria afronta ao regime constitucional legitimamente instituído por meio dos representantes dos cidadãos no Estado.

Fato é que ninguém além da Administração Pública foi beneficiada com a omissão legislativa que ignorou a alteração da redação do artigo 26, inciso I, do Decreto 70.235/72 pela MPV 449/2008, haja vista o referido tribunal de exceção servir, a qualquer tempo, apenas para analisar os pedidos formulados pela Administração, sem a oitiva do contribuinte, além de, sequer, dar o direito ao acesso à Instância Especial a este, bem como banir do ordenamento jurídico, decisões contrárias ao “interesse público”.

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Sobre a autora
Michelle Soares Menezes Maia

Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas (2008). É pós-graduada em Direito Tributário pelo Centro de Estudos da Área Jurídica Federal - CEAJUFE (2010). É advogada atuante em Direito Empresarial e Tributário. Proprietária do escritório Menezes Maia Advocacia Empresarial e Tributária em Santa Luzia - Minas Gerais. Tem experiência com atuação efetiva nas áreas de Direito Tributário, Empresarial e Cível. Possui foco de estudos na seara do Direito Constitucional e Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Michelle Soares Menezes. A inconstitucionalidade do artigo 26 do Decreto 70.235/72 que regulamenta o processo administrativo tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3911, 17 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26984. Acesso em: 16 abr. 2024.

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