1 - Introdução
É sabido que o caput do art. 37 da Constituição constitui o comando constitucional principiológico que orienta o regime jurídico aplicável à Administração Pública brasileira. É nesse sentido que os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência surgem como paradigmas de conduta administrativa – o conteúdo valorativo com base no qual o Estado deve nortear suas ações voltadas à satisfação do interesse público.
Para Carlos Ayres Britto (2013, p. 822), o regime jurídico de administração pública
perpassa nada menos que cinco princípios, assim literalmente referidos: “legalidade”, “impessoalidade”, “moralidade”, publicidade” e “eficiência”. Princípios, esses, regentes de qualquer das modalidades de administração pública com que inicialmente trabalhamos: a administração pública enquanto atividade e a Administração Pública enquanto aparelho ou aparato de poder. Logo, princípios que submetem o Estado quando da criação legislativa de órgãos e entidades, assim como submetem todo e qualquer Poder estatal quando do exercício da atividade em si da administração pública.
Dos princípios regentes da Administração Pública brasileira, destaco o princípio da impessoalidade. Tal vetor impõe que o administrador haja de tal maneira a dispensar tratamento igualitário aos administrados. Significa dizer que o Poder Público não admite favorecimentos pessoais, tampouco discriminações ou perseguições de ordem política. Acima de tudo, impessoal é o Estado que visa à igualdade, à isonomia no trato dos seus cidadãos.
Maria Sylvia Zanela Di Prieto (2012, p. 68), acompanhando o ensinamento de José Afonso da Silva, vislumbra um conceito dicotômico pertinente ao princípio da impessoalidade (grifo do autor):
Exigir impessoalidade da Administração tanto que esse atributo deve ser observado em relação aos administrados como à própria Administração. No primeiro sentido, o princípio estaria relacionado com a finalidade públicaque deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento.
[...]
No segundo sentido, o princípio significa, segundo José Afonso da Silva, baseado na lição de Gordillo que “os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal.” Acrescenta o autor que, em consequência, “as realizações governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produzira (...).”
Neste estudo, interessa, sobretudo, o primeiro dos sentidos que concernem à impessoalidade na Administração Pública. Como se exporá adiante, é por meio dele que se pode galvanizar o sistema do concurso público em torno do qual a Constituição de 1988 estruturou a autorização para a presentação jurídica do Poder Executivo nos Estados e no Distrito Federal.
2 – Aplicações concretas do princípio da impessoalidade: sistema de concurso público e proibição do nepotismo
A importância do princípio da impessoalidade na vida pública do País pode verificar-se, por exemplo, no inc. II do art. 37 da Constituição:
Art. 37 omissis
[...]
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
De acordo com o dispositivo acima citado, percebe-se que o Brasil adotou a regra pela qual a investidura em cargo ou emprego público far-se-á mediante aprovação em concurso público. O intento do legislador constituinte é notório: assegurar concretamente a impessoalidade, porquanto a seleção dos candidatos é feita por meio de provas, prestigiando-se o critério meritório. Naquele que se candidata a ocupar um cargo ou emprego público, portanto, não pode haver a aspiração do favorecimento pessoal, a mesquinharia das relações privadas, para as quais um sobrenome familiar é tão importante.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 114) anota que o princípio da impessoalidade
[...] traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o princípio da isonomia.
[...]
No texto constitucional há, ainda, algumas referências a aplicações concretas deste princípio, como ocorre no art. 37, II, ao exigir que o ingresso em cargo, função ou emprego público depende de concurso público, exatamente para que todos possam disputar-lhes o acesso em plena igualdade [...].
Dessa forma, o concurso público tem o condão de, a um só tempo, afastar o compadrio da vida estatal, como também obstaculizar a prática censurável do nepotismo, a afastar pessoas cujo ingresso na Administração Pública dá-se pela influência das suas relações de parentesco – vezo infelizmente ainda muito comum no País.
Acorde com esses fundamentos, em 21/08/2008, o Supremo Tribunal Federal editou o enunciado nº 13 da sua súmula de jurisprudência vinculante. In verbis:
STF, Súmula Vinculante 13
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da união, dos estados, do distrito federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a constituição federal.
Sendo assim, ao proibir a inaceitável prática de benefício aos nepotes, o enunciado vinculante nº 13 vai ao encontro do princípio constitucional da impessoalidade quando aplicado à Administração Pública.
3 – Estrutura jurídica das carreiras da advocacia pública: o modelo constitucional do ingresso por concurso público
É óbvio que a regra constitucional que associa investidura em cargo ou emprego público à aprovação em prévio certame público não é absoluta. O próprio texto constitucional ressalva-a já no inc. V do art. 37, quando admite o provimento e exoneração ad nutum dos cargos em comissão. Mas ressalva é, por definição, exceção. E exceção, como o próprio nome indica, deve ser algo excepcional. A regra para o ingresso de servidor público nos quadros da Administração, repiso, é a realização de concurso público.
Inspirado por esse conjunto de valores – princípio da impessoalidade e critério meritório – é que o legislador estruturou a carreira da advocacia pública derredor do concurso público. Nesse particular, duas normas são especialmente importantes. Vejamo-las (grifos meus):
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
omissis
§ 2º - O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.
Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
No tocante ao art. 131, observa-se que, ao instituir a Advocacia-Geral da União, a Constituição previu expressamente que o ingresso na carreira depende de aprovação em concurso público. Ulteriormente, a Lei Complementar 73/93, que instituiu a lei orgânica da AGU, reforçou o comando constitucional na cabeça do seu art. 21. Colaciono:
Art. 21. O ingresso nas carreiras da Advocacia-Geral da União ocorre nas categorias iniciais, mediante nomeação, em caráter efetivo, de candidatos habilitados em concursos públicos, de provas e títulos, obedecida a ordem de classificação.
Na mesma toada deve ser lido o art. 132, que versa sobre a advocacia pública exercida no âmbito dos Estados-membros e do Distrito Federal. Também aí o modelo adotado pela Constituição prestigia a impessoalidade para efeito de dar provimento aos cargos integrantes da carreira de Procurador.
Sobre o tema, José Afonso da Silva (2013, p. 637, grifo meu) leciona:
Procuradorias e consultorias estaduais. A carreira de Procurador de Estado e do Distrito Federal foi institucionalizada em nível de Constituição Federal. Isso significa a institucionalização dos órgãos estaduais de representação e de consultoria dos Estados, uma vez que os Procuradores a que se incumbe essa função, no art. 132 daquela Carta Magna, hão de ser organizados em carreira dentro de uma estrutura administrativa unitária em que sejam todos congregados, ressalvado o disposto no art. 69 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que autoriza os Estados a manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas funções (…).
Essa disposição transitória teve a vantagem de enunciar os órgãos a que, nos Estados e Distrito Federal, incumbem a respectiva representação judicial e serviços de consultoria, quais sejam: Procuradorias-Gerais (...) ou Advocacias-Gerais (...). Então, temos, combinado o disposto no art. 132 e com o art. 69 do ADCT, a institucionalização das Procuradorias-Gerais dos Estados e das Advocacias-Gerais, onde houver, sem prejuízo de que cada Estado fique com a liberdade de alterar a denominação, entre aquelas, mas não de mudar suas funções de representação e consultoria, nem a denominação de seus membros: Procurador do Estado ou do Distrito Federal, inclusive para o órgão com o nome de Advocacia-Geral do Estado.
Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, que receberão remuneração na forma de subsídio, consoante o art. 39, § 4º (EC-19/98), hão de ser organizados em carreira, na qual ingressarão por concurso público de provas e títulos (art. 132), com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, em todas as suas fases, assegurada a eles a estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias (EC-19/98). É, pois, vedada a admissão ou contratação de advogados para o exercício das funções de representação judicial (salvo, evidentemente, impedimento de todos os Procuradores) e de consultoria daquelas unidades federadas, porque não se deram essas funções aos órgãos, mas foram diretamente imputadas aos Procuradores.
Por conseguinte, não resta dúvida de que a advocacia pública é carreira cujo preenchimento dos cargos deve ser feito mediante concurso público.
4 – Controle de constitucionalidade das normas infraconstitucionais que afrontam a regra dos concursos públicos para ingresso na carreira da advocacia pública nos Estados e nos Distrito Federal: o posicionamento da jurisprudência do STF
Todavia, não obstante a argumentação acima desenvolvida, é comum encontrar maus gestores públicos a fazer tabula rasa dos concursos públicos e, pela via reflexa, do princípio constitucional da impessoalidade na Administração Pública. Com efeito, pululam na jurisprudência do STF casos nos quais a Suprema Corte é instada a manifestar-se, em abstrato, acerca da constitucionalidade de normas estaduais que visam a autorizar que ocupante de cargo em comissão possa desempenhar atividade de assessoramento jurídico, a abranger a representação judicial e a consultoria, no âmbito do Poder Executivo dos Estados.
Recentemente, dois péssimos exemplos de tentativa de burla à regra do concurso público para a carreira de procuradores de Estado aportaram na pauta de julgamentos da Corte Suprema brasileira. O primeiro deles se reporta à ADI 4843, que fora ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) com vistas a impugnar a validade da Lei Estadual 8.186/07, do Estado da Paraíba, diploma que atribuiu a ocupantes de cargos em comissão a competência para exercer funções próprias dos procuradores de Estado. O segundo se refere à ADI 4144, novamente proposta pela Anape, e que tem por objetivo a fiscalização da constitucionalidade da Lei Complementar Estadual 427/08, do Estado de Rondônia, que atribuía a servidores públicos nomeados em comissão o exercício de funções próprias e exclusivas de procurador de Estado. Ambos os precedentes foram julgados pelo relator, Min. Celso de Mello, em caráter liminar no dia 19 de dezembro de 2013 e conduziram ao mesmo resultado: a imediata suspensão da eficácia das leis impugnadas.
Na decisão prolatada nos autos da ADI 4843, que ainda há de ser submetida ao referendo do Plenário, o relator foi enfático em rechaçar a tentativa de subverter o regime constitucional de ingresso na carreira de procurador de Estado, atribuindo-a a ocupantes de cargos em comissão. Colaciono excerto do voto (grifos meus):
A outorga dessas funções jurídicas à Procuradoria-Geral do Estado – mais precisamente aos Procuradores do Estado – decorre de um modelo estabelecido pela própria Constituição Federal, que, ao institucionalizar a Advocacia de Estado, delineou o seu perfil e discriminou as atividades inerentes aos órgãos e agentes que a compõem.
O conteúdo normativo do art. 132 da Constituição da Repúblicarevela os limites materiais em cujo âmbito processar-se-á a atuação funcional dos integrantes da Procuradoria-Geral do Estado e do Distrito Federal. Nele, contém-se norma de eficácia vinculante e cogente para as unidades federadas locais, que não permite conferir a terceiros – senão aos próprios Procuradores do Estado e do Distrito Federal – o exercício, intransferível e indisponível, das funções de representação judicial e de consultoria jurídica da respectiva unidade federada.
A representação institucional do Estado-membro em juízo ou em atividade de consultoria jurídica traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada, pela Carta Federal (art. 132), aos Procuradores do Estado. Operou-se, nesse referido preceito da Constituição, uma inderrogável imputação de específica atividade funcional cujos destinatários são, exclusivamente, os Procuradores do Estado.
Assim sendo, há de se ter presente, no exame do tema, a nova realidade constitucional emergente da Carta Federal de 1988, que institucionalizou, no plano da Advocacia Pública local, a Procuradoria-Geral dos Estados, órgão ao qual incumbe, “ope constitutionis”, dentre outras atribuições, a consultoria jurídica da própria unidade federada, inclusive de seu Poder Executivo.
No contexto normativo que emerge do art. 132 da Constituição, e numa análise preliminar do tema, compatível com o juízo de delibação ora exercido, parece não haver lugar para nomeações em comissão de pessoas, estranhas aos quadros da Advocacia de Estado, que venham a ser designadas, no âmbito do Poder Executivo, para o exercício de funções de assistência, de assessoramento e/ou de consultoria na área jurídica.
A exclusividade dessa função de consultoria remanesce, agora, na esfera institucional da Advocacia Pública, a ser exercida, no plano dos Estados-membros, por suas respectivas Procuradorias-Gerais e pelos membros que as compõem, uma vez regularmente investidos, por efeito de prévia aprovação em concurso público de provas e de títulos, em cargos peculiares à Advocacia de Estado, o que tornaria inadmissível a investidura, mediante livre provimento em funções ou em cargos em comissão, de pessoas para o desempenho, no âmbito do Poder Executivo do Estado-membro, de atividades de consultoria ou de assessoramento jurídicos.
Raciocínio idêntico foi esposado pelo relator na sua decisão in limine nos autos da ADI 4144.
Nesse ponto, é preciso sublinhar que, ao suspender liminarmente a eficácia dos dispositivos que iam de encontro às normas constitucionais que estruturam a carreira da advocacia pública nos Estados, o relator, Min. Celso de Mello, decidiu de conformidade com a jurisprudência sedimentada na Suprema Corte a respeito do tema. Senão vejamos (grifos meus):
Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Emenda Constitucional no 17, de 30 de junho de 1997, promulgada pela Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, que acrescentou os §§ 2º e 3º e incisos, ao artigo 118 da Constituição estadual. 3. Criação de Procuradoria da Fazenda Estadual, subordinada à Secretaria da Fazenda do Estado e desvinculada à Procuradoria-Geral. 4. Alegação de ofensa aos artigos 132 da Constituição e 32, do ADCT. 5. Descentralização. Usurpação da competência funcional exclusiva da Procuradoria-Geral do Estado. 6. Ausência de previsão constitucional expressa para a descentralização funcional da Procuradoria-Geral do Estado. 7. Inaplicabilidade da hipótese prevista no artigo 69 do ADCT. Inexistência de órgãos distintos da Procuradoria estadual à data da promulgação da Constituição. 8. Ação julgada procedente. (STF, Tribunal Pleno, ADI 1679/GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08/10/2003, p. DJ 21-11-2003).
EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ANEXO II DA LEI COMPLEMENTAR 500, DE 10 DE MARÇO DE 2009, DO ESTADO DE RONDÔNIA. ERRO MATERIAL NA FORMULAÇÃO DO PEDIDO. PRELIMINAR DE NÃO-CONHECIMENTO PARCIAL REJEITADA. MÉRITO. CRIAÇÃO DE CARGOS DE PROVIMENTO EM COMISSÃO DE ASSESSORAMENTO JURÍDICO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. Conhece-se integralmente da ação direta de inconstitucionalidade se, da leitura do inteiro teor da petição inicial, se infere que o pedido contém manifesto erro material quanto à indicação da norma impugnada. 2. A atividade de assessoramento jurídico do Poder Executivo dos Estados é de ser exercida por procuradores organizados em carreira, cujo ingresso depende de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, nos termos do art. 132 da Constituição Federal. Preceito que se destina à configuração da necessária qualificação técnica e independência funcional desses especiais agentes públicos. 3. É inconstitucional norma estadual que autoriza a ocupante de cargo em comissão o desempenho das atribuições de assessoramento jurídico, no âmbito do Poder Executivo. Precedentes. 4. Ação que se julga procedente. (STF, Tribunal Pleno, ADI 4261/RO, Rel. Min. Ayres Britto, j. 02/08/2010, p. DJe 20/08/2010).
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEIS ESTADUAIS 9.422, DE 5/11/1990, E 9.525, DE 8/1/1991. CRIAÇÃO DA CARREIRA ESPECIAL DE ADVOGADO DO ESTADO DO PARANÁ, INTEGRADA PELOS OCUPANTES DE EMPREGOS E CARGOS PÚBLICOS DE ADVOGADOS E ASSISTENTES JURÍDICOS ESTÁVEIS DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E AUTÁRQUICA DAQUELA UNIDADE FEDERADA. ATRIBUIÇÕES DE ASSESSORAMENTO JURÍDICO AO PODER EXECUTIVO E DE REPRESENTAÇÃO JUDICIAL DAS AUTARQUIAS, COORDENADAS PELO PROCURADOR-GERAL DO ESTADO. ARTS. 5º, I, 37, II E XIII, 132 E 169, DA CF, E ART. 19, § 1º, DO ADCT. ALEGAÇÕES DE OFENSA REJEITADAS. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONFERIDA AO ART. 5º DA LEI 9.422/1990. I – O Plenário desta Corte, no julgamento definitivo da ADI175/PR, Rel. Min. Octavio Gallotti, declarou a constitucionalidade do art. 56 e parágrafos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias do Estado do Paraná, de 5/10/1989, que autorizou a permanência, em carreiras especiais criadas por lei, dos que já ocupavam com estabilidade, naquele momento, cargos e empregos públicos de advogados, assessores e assistentes jurídicos, para o exercício do assessoramento jurídico nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e da representação judicial das autarquias e fundações públicas. II – Os diplomas legais ora impugnados, ao reunirem numa única carreira os então ocupantes de empregos e cargos públicos preexistentes que já exerciam as mesmas funções de assessoramento jurídico ao Poder Executivo e de representação judicial das autarquias, nada mais fizeram do que atender ao comando expresso no mencionado art. 56 do ADCT paranaense, tratando-se, por certo, de hipótese de subsistência excepcional e transitória autorizada pelo art. 69 do ADCT da Constituição Federal. III – A previsão de concurso público de provas e títulos para ingresso na nova carreira, contida no art. 5º da Lei Estadual 9.422/1990, destinou-se, exclusivamente, àqueles que já eram, no momento de edição da norma constitucional transitória, ocupantes estáveis de cargos e empregos públicos de advogados, assessores e assistentes jurídicos e que viriam a preencher, mediante aproveitamento, os 295 cargos criados pelo art. 2º do mesmo diploma. IV – Impossibilidade, na vacância, de provimento dos cargos da Carreira Especial de Advogado do Estado do Paraná por outros servidores e, por conseguinte, de realização de novos concursos públicos para esse fim. Necessidade de obediência ao art. 132 da Constituição Federal. V – Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente, com interpretação conforme, nos termos supra. (STF, Tribunal Pleno, ADI 484/PR, Rel. Min. Eros Grau, Rel. p/ Acórdão: Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/08/2010, p. DJe 20/08/2010).
Há mais de dez anos, por conseguinte, pode-se considerar pacífica a jurisprudência do STF no tocante à inconstitucionalidade de normas estaduais que busquem burlar o acesso aos cargos de procuradores de Estado e do Distrito Federal mediante concurso público.
5 - Conclusão
A tentativa recalcitrante de editar normas infraconstitucionais com o objetivo de subtrair dos procuradores de Estado e do Distrito Federal a exclusividade da função de assessoramento jurídico do Poder Executivo não deve ser vista apenas como medida atentatória ao teor do art. 132 da Constituição. Trata-se, em verdade, de demonstração canhestra da pouca importância que é dada ao texto constitucional (défice de constitucionalidade) pelos administradores brasileiros. Nas hipóteses aventadas, está-se diante de achincalhe aos princípios constitucionais regentes da Administração Pública, notadamente o princípio da impessoalidade, que resta solapado ante a contratação de advogados ocupantes de cargos em comissão para o exercício das funções de representação judicial e consultoria jurídica dos entes federados.
É evidente que leis estaduais dessa índole ferem de morte a estrutura delineada no o art. 132 da Constituição relativamente à carreira da advocacia pública. Mas não apenas isso. O problema é mais grave. Vai além. Tais diplomas apresentam-se eivados pela burla ao concurso público, a fazer tabula rasa da Administração Pública impessoal querida pelo Poder Constituinte Originário. Implicitamente, busca-se retomar a gerência privatista da res publica, reavivando as censuráveis e inaceitáveis relações de compadrio e apadrinhamento no Poder Público. Na medida em que advogados apaniguados – muitos deles ligados ideologicamente ao partido do governo – passarem a desempenhar atribuições cometidas pelo texto constitucional com exclusividade aos procuradores do Estado e do Distrito Federal de carreira, aí o caráter republicano da Constituição de 1988, que reclama atuação impessoal das esferas de poder estatal, terá sido induvidosamente violado.
Finalmente, friso que essa exclusividade não é desimportante do ponto de vista institucional. Pelo contrário, sua adoção pelo legislador constituinte foi proposital. Justifica-se a exigência de contratação de advogados públicos, nos âmbitos federal (na AGU), estadual (nas Procuradorias dos Estados) e distrital, mediante prévia aprovação em concurso público, com o escopo de evitar que o advogado deixe de prestar assessoramento jurídico ao Estado e passe a servir de mão de obra para o governante. Por outras palavras, a carreira de Procurador de Estado, tal qual delineada pela Constituição de 1988, presta-se à assessoria jurídica do Poder Executivo, a abranger a representação judicial e a consultoria normativa, mas também a função relevante de controle da legalidade dos atos administrativos. E esse controle é múnus só realizável por aquele agente público que detém um mínimo de segurança institucional que lhe permita, antes de zelar pelo interesse do governo, optar pela defesa do interesse público. Como sabemos, nem sempre o interesse político-partidário do governo é coincidente com o interesse público da coletividade.
Portanto, à luz da jurisprudência do STF nessa matéria, conclui-se que Procurador não é advogado de governo, mas sim advogado do Estado. Logo, a atribuição de assessoramento jurídico é reservada aos ocupantes de cargos após processo seletivo impessoal, materializado na via do concurso público. Em consequência disso, toda e qualquer norma que venha a cometer essas atribuições a terceiros estranhos aos quadros da advocacia pública será iniludivelmente inconstitucional.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRASIL. Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União. Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1679/GO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08/10/2003, p. DJ 21/11/2003. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4261/RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 02/08/2010, p. DJe 20/08/2010. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 484/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, Rel. p/ Acórdão: Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/08/2010, p. DJe 20/08/2010. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4843/PB, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19/12/2013, p. DJe 31/01/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4144/RO, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19/12/2013 (decisão pendente de publicação). Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Enunciado nº 13 da súmula de jurisprudência vinculante. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 de fev. 2014.
BRITTO, Carlos Ayres. Comentários ao capítulo VII da Constituição. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Coimbra: Almedina, 2013. 2384 p. (Série IDP).
DI PRIETO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25º ed. São Paulo: Atlas, 2012. 932 p.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administratrivo. 26º ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 1102 p.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36º ed. São Paulo: Malheiros, 2013. 928 p.