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A desaposentação e o ativismo judicial

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2. A JURISDIÇÃO E O ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Até aqui se buscou tratar de conceitos elementares de Direito Previdenciário, com ênfase para a compreensão da cobertura previdenciária no contexto jurídico-institucional brasileiro, notadamente no que concerne àquele que é, por excelência, o principal benefício previsto pelo sistema previdenciário em vigor: a aposentadoria.

Todavia, a bem de melhor desenvolver a discussão que se pretende realizar no bojo do terceiro do capítulo, é mister que também se realize uma importante incursão teórica acerca de aspectos relacionados ao Direito Constitucional e ao Direito Processual Civil, com vistas a bem compreender a relevância da atividade jurisdicional no que tange à implementação de políticas públicas, o que reflete na exequibilidade do orçamento público, e a sua repercussão no âmbito previdenciário.

E é neste contexto, de discussão que vai além da seara previdenciária, que se posiciona o capítulo ora iniciado.

2.1. O pós-positivismo jurídico e o fortalecimento da jurisdição

Convém rememorar, prefacialmente, o conceito de jurisdição. Neste contexto, deve-se asseverar que, em oposição ao que ocorria nos primórdios da vida em sociedade, quando os conflitos de interesse eram resolvidos através da força, o Estado moderno assumiu o monopólio da solução das pretensões, fazendo valer o seu poder em detrimento à vontade dos particulares.

Assim, ao assumir o poder de dizer o direito aplicável ao caso concreto, impõe-se pelo Estado a proibição da autotutela, assim descrita por Luiz Guilherme Marinoni:

Antigamente, quando o Estado ainda não tinha poder suficiente para dizer normas jurídicas e fazer observá-las, aquele que tinha um interesse e queria vê-lo realizado fazia, através da força, com que aquele que ao interesse resistisse acabasse observando-o. Na verdade, realizava o seu interesse aquele que tivesse força ou poder para tanto, prevalecendo a denominada “justiça do mais forte sobre o mais fraco”.

Considerando o direito romano, sabe-se que a denominada “justiça pública” consolidou-se no período denominado de cognitio extra ordinem. Foi nessa fase que o Estado, por ter poder suficiente, passou a ditar a solução para os conflitos de interesses, não importando a vontade dos particulares, que na verdade já estavam submetidos ao poder do Estado, e deste seu poder de decidir os conflitos não podiam esquivar-se.

Impondo-se a proibição da autotutela, ou da realização das pretensões segundo o próprio poder do particular interessado, surge o poder de o Estado dizer aquele que tem razão em face do caso conflitivo concreto, ou o poder de dizer o direito conhecido como iuris dictio. (MARINONI, 2009, p. 31)

Ao poder conferido ao Estado para resolver as situações conflituosas e restabelecer a paz social dá-se o nome de jurisdição.

O conceito de jurisdição é bem desenhado por Freddie Didier Jr., nos seguintes termos:

A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível. (DIDIER JR., 2009, p. 67),

Ao assumir o controle da jurisdição, o Estado facultou aos interessados a busca ao Poder Judiciário para a realização dos seus interesses, por meio do exercício do direito de ação.

Com vistas a possibilitar o direito de ação, a Constituição Federal de 1988, no rol de direitos e garantias fundamentais constantes do seu Art. 5º, estabeleceu ser livre o acesso à Justiça, nos termos dispostos no inciso, XXXV, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O supracitado dispositivo constitucional traz em seu bojo, além do princípio do livre acesso ao Poder Judiciário, um alcance maior, que, conforme será exposto a seguir, ganhou diferentes conformações com a evolução das teorias constitucionalistas.

Com efeito, o direito de ação não pode mais ser compreendido como a mera obtenção de uma sentença. A inafastabilidade de acesso ao Poder Judiciário reclama, na visão contemporânea, uma compreensão mais alargada e uma análise mais detida.

Isso porque, com a Constituição Federal de 1988, floresceu no Brasil, em um ambiente pós-positivista[2], que já havia se desenvolvido na Europa ao longo da segunda metade do século XX, o que pode ser chamado de novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo, tendo como principais implicações, no plano teórico, o prestígio à força normativa à Constituição, a ampliação da jurisdição constitucional e a elaboração de novas formas de interpretação constitucional.

O ambiente pós-positivista, que seu ensejo ao fenômeno acima mencionado, decorreu do enfrentamento entre jusnaturalismo e o positivismo jurídico, modelos puros que guardam verdadeira antinomia enquanto correntes jusfilosóficas.

Para Luís Roberto Barroso,

O pós-positivismo se apresenta, em certo sentido, como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política. Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer a impossibilidade de tratá-los como espaços totalmente segmentados, que não se o novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo é, em parte, produto desse reencontro entre a ciência jurídica e a filosofia do Direito. Para poderem se beneficiar do amplo instrumental do Direito, migrando do plano ético para o mundo jurídico, os valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução constante de seus significados.

Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a democracia, a República e a separação de Poderes. Houve, ainda, princípios cujas potencialidades só foram desenvolvidas mais recentemente, como o da dignidade da pessoa humana, o da razoabilidade/proporcionalidade e o da solidariedade. (BARROSO, 2011)

Com efeito, Luís Roberto Barroso é certamente um dos autores que melhor tratam deste tema no Direito Constitucional brasileiro, sintetizando o fenômeno da neoconstitucionalização nos seguintes termos:

Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito. (BARROSO, 2005)

Como consequência do neoconstitucionalismo e da emergência do pós-positivismo jurídico (marco jusfilosófico), modificou-se a forma de visão dos princípios constitucionais, que já não podiam ser vistos como meros valores, mas sim com toda a sua força normativa, a ser garantida por todos os poderes da República, em especial, pelo Poder Judiciário, a quem compete a interpretação constitucional. Essa necessária modificação é muito bem sintetizada nos ensinamentos de Zagrebelsky:

Las separaciones ley-derechos-justycia y princípios-reglas encunentran su unidad en la aplicación judicial del derecho, uma actio duplex de la que las concepciones positivistas de la jurisdicción han ocultado durante mucho tempo uma de las partes. En tales concepciones, la realidade a la que el derecho se aplica aparece siempre como ensombrecida y privada de todo valor, ya sen razone en términos de silogismo judicial, donde el hecho que se cualifica juridicamente constituye la premissa menor y la regla jurídica la premissa mayor, o en términos de subsunción del supuesto de hecho concreto en el supuesto de hecho abstracto, o en otros términos similares.

[...]

Según la concepción positivista tradicional, en la aplicación del derecho la regla jurídica se obtiene teninendo en cuenta exclusivamente las exigências del derecho. Exactamente eso significaban la interpretación y los criterios para la misma elaborados por el positivismo. Como, además, uma vez determinada la regla, su aplicación concreta se reducía a um mecanismo lógico sin discrecionalidad – y en caso de que hubiese discrecionalidad se afirmaba la ausência de derecho – se compreende que los problemas de la aplicación del derecho viniesen integramente absorbidos en los de la interpretacíon.

[...]

Operaba la máxima dura lex sed lex, que es la quintaesencia del positivismo acrítico. Hoy, por el contrario, la impossibilidade de alcanzar aquella composición abre uma cuestión que no afecta ya a la interpretacíon da ley, sino sua validez. Las exigências de los casos cuentan más que la voluntad legislativa y pueden invalidarla. (ZAGREBELSKY, 2003, p. 131)[3].

Nota-se, assim, uma nova percepção do papel do julgador no âmbito do cenário pós-positivista. A interpretação jurídica deixa de ser um exercício de mera subsunção normativa, e a efetivação da justiça se torna um fenômeno mais complexo e estrutural, decorrente de uma atividade judicante a ser exercido conforme as exigências do caso concreto.

Ao dispor que lesão ou ameaça a direito não deixará de ser tutelada jurisdicionalmente, o art. 5º, XXXV da Constituição Federal poderia, em tempos idos, ter um significado restrito e eminentemente formal (em um viés positivista clássico, certamente). Mas hodiernamente, indica que não mais é suficiente a possibilidade de mero acesso ao Poder Judiciário. É imperativo, para além disso, o acesso à ordem jurídica justa.

Não se despreza, destaque-se, a importância da lei escrita. Mas se ressalta, de outra banda, a normatividade dos princípios e o papel do intérprete (julgador) como verdadeiro partícipe na construção da norma em si.

Nesse sentido, leciona Marinoni:

O direito de acesso à justiça, atualmente, é reconhecido como aquele que deve garantir a tutela efetiva dos demais direitos. A importância que se dá ao direito de acesso à justiça decorre do fato de que a ausência de tutela jurisdicional efetiva implica a transformação dos direitos garantidos constitucionalmente em meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores.

Por essas razões, a doutrina moderna abandonou a idéia de que o direito de acesso à justiça, ou o direito de ação, significa apenas a sentença de mérito. Esse modo de ver o processo, se um dia foi importante para a concepção de um direito de ação independente do direito material, não se coaduna com as novas preocupações que estão nos estudos dos processualistas ligados ao tema da “efetividade do processo”, que traz em si a superação da ilusão de que este poderia ser estudado de maneira neutra e distante da realidade social e do direito material. (MARINONI, 2009, p. 32)

O magistério de Mauro Capelletti também deixa clara a importância do acesso à justiça, o que justifica a sua tutela especial:

[...] o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos [...] que pretenda garantir e não apenas proclamar o direito de todos [...] o acesso à justiça não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe o alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência (CAPELLETI; GARTH, 1988, p. 12/13)

O acesso à ordem jurídica justa em análise, podendo ser também caracterizado como acesso à tutela jurisdicional adequada, está calcado em alguns instrumentos basilares de efetivação do direito material.

O primeiro dos fundamentos necessários para a tutela efetiva pretendida é a possibilidade de acesso ao processo.

Entende-se como possibilidade de acesso ao processo a minimização, ou mesmo eliminação, de obstáculos que impeçam o ajuizamento das demandas judiciais, dentre os quais, a ausência de recursos econômicos.

Nesse contexto, impende asseverar a criação dos Juizados Especiais Federais, utilizado pelos mais necessitados economicamente, que, por exemplo, frequentemente buscam o Poder Judiciário para elidir as decisões administrativas do órgão previdenciário, o INSS, tão referido no capítulo antecedente. Trata-se, sem dúvida, de um bom exemplo de facilitação de acesso ao processo judicial.

Outro fundamento do acesso amplo ao Poder Judiciário é a necessidade de decisão justa.

Daniel Amorim Assumpção Neves assim ensina sobre o tema:

Amplia-se o acesso, permite-se a ampla participação, mas profere-se uma decisão injusta. É fácil perceber que nesse caso tanto o acesso como a ampla participação não levaram as partes a lugar nenhum. Em razão disso, a terceira “viga mestra” é a decisão com justiça, ainda que o conceito de justiça seja indeterminado, suscetível de certa dose de subjetivismo, o que se pode afirmar, com segurança, é que a missão de decidir com justiça não significa a permissão de julgamento por equidade, espécie de julgamento reservado a situações excepcionais, expressamente previstas em lei (art. 127 do CPC). Trata-se de preferir a interpretação mais justa diante de várias possíveis, ou, ainda, de aplicar a lei sempre levando-se em consideração os princípios constitucionais de justiça e os direitos fundamentais.  (NEVES, 2011, p. 24)

Reafirma-se, assim, a preocupação pós-positivista com o conteúdo justo do direito, a ser corporificado no bojo dos processos judiciais estabelecidos. A busca pela interpretação mais justa diante das várias possíveis se coaduna com o cenário jusfilosófico aqui tratado.

Além das citadas bases para o acesso à ordem jurídica justa, faz-se necessária, ademais, a possibilidade de efetivação das decisões judiciais. Para tanto, dentre outros os mecanismos, está a necessidade de ampliação dos poderes dos magistrados para a garantia de eficácias das suas próprias decisões.

Sem a pretensão de exaurir todas as possibilidades de atuação dos magistrados para a garantia de eficácia das decisões, vale aduzir que diversos dispositivos do Código de Processo Civil concedem amplo poder de cautela aos juízes, nos últimos anos.

Sobre o poder geral de cautela, à guisa de exemplificação, importa trazer à baila as lições trazidas por Daniel Baggio Maciel, em seu artigo “O poder geral de cautela do juiz”, com trecho abaixo transcrito:

Quem ler o artigo 798 do Código de Processo Civil perceberá nele uma autorização que legitima o juiz a ordenar providências assecuratórias previstas expressamente em lei e outras que, embora não estejam especificadas normativamente, sejam necessárias à proteção do direito provável contra qualquer dano importante. As medidas de simples segurança que possuem regulação expressa em lei são chamadas "cautelares nominadas" (art. 813 e seguintes), ao passo que as demais são conhecidas por "cautelares inominadas". Atentos a essa previsão legal, podemos dizer que o poder cautelar geral do juiz é uma aptidão jurídica da qual está investido o magistrado para ordenar quaisquer medidas cautelares se presentes o “fumus boni iuris” e o “periculum in mora”. A título de exemplo, valendo-se desse atributo inerente à jurisdição, o juiz pode autorizar ou vedar a prática de determinados atos, impor a prestação de caução, ordenar a guarda judicial de pessoas e o depósito de bens (art. 799). Para GRECCO FILHO, "o poder geral de cautela atua como um poder integrativo de eficácia global da atividade jurisdicional, afinal, se essa atividade estatal tem por finalidade declarar o direito de quem tem razão e satisfazer esse direito, ela deve ser dotada de instrumentos para a garantia do direito enquanto não definitivamente julgado e satisfeito." Embora essa expressão de inspiração italiana indique o poder do juiz de determinar medidas de prevenção contra o dano iminente, melhor é entendê-lo como um “poder-dever”. Fala-se em "poder" porque é o juiz o agente público titular da jurisdição e a ele compete ordenar tais providências em conformidade com o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República. (MACIEL, 2008)

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Nesse contexto, impende destacar que a ampliação dos poderes dos magistrados não é fato tão recente no ordenamento jurídico brasileiro, e não esteve adstrita tão somente à efetivação das decisões.

Outra emblemática demonstração da atuação ativa dos magistrados em causas judiciais reside na atividade voltada para o preenchimento das cláusulas gerais, existentes especialmente no Direito Civil.

Nota-se a relevância da atuação do órgão judicante no preenchimento das normas abstratas em questão, como bem se vê abaixo:

As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados contêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse social e boa fé, dentre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a sua própria avaliação. (BARROSO, 2011)

Tem-se, assim, que a atuação mais efetiva e ativa do Poder Judiciário configura um dos grandes pilares do acesso à justiça.

Freddie Didier Jr. enuncia a evolução da jurisdição, elencando os fatos que compõem o cenário jurídico vigente, a fim de possibilitar o atual alcance da função jurisdicional, senão veja-se:

Não é mais possível utilizar a noção de jurisdição criada para um modelo de Estado que não mais existe, notadamente em razão de diversos fatores, tais como: i) a redistribuição das funções do Estado, com a criação de agências reguladores (entes administrativos, com funções executiva, legislativa e judicante) e executivas; ii) a valorização e o reconhecimento da força normativa da Constituição, principalmente das normas princípio, que exigem do órgão jurisdicional uma postura mais ativa e criativa na solução de problemas; iii) o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, que impõe a aplicação direta das normas que os consagram, independentemente de intermediação legislativa; iv) a criação de instrumentos processuais como o mandado de injunção, que atribui ao Poder Judiciário a função de suprir, para o caso concreto, a omissão legislativa; v) a alteração da técnica legislativa: o legislador contemporâneo tem-se valido da técnica das cláusulas gerais, deixando o sistema normativo mais aberto e transferindo expressamente ao órgão jurisdicional a tarefa de completar a criação da norma jurídica do caso concreto; vi) a evolução do controle de constitucionalidade difuso, que, dentre outras consequências, produziu entre nós a possibilidade de enunciado vinculante da súmula do STF em matéria constitucional, texto normativo de caráter geral, a despeito de produzido pelo Poder Judiciário.” (DIDIER JR., 2009, p. 67/68)

Evidencia-se, do excerto doutrinário acima citado, bem como de todo o exposto, a modificação, ao longo do tempo, do conceito de jurisdição, fortemente marcada pela ampliação dos poderes exercidos pelo órgão judicante e fortalecimento da jurisdição constitucional, impulsionadas pelo novo constitucionalismo, marcado pelo reconhecimento da força normativa da Constituição; pelo fortalecimento da jurisdição constitucional; e pelas novas formas de interpretação do texto constitucional[4].

2.2. Da efetividade ao ativismo judicial

Os direitos sociais, pertencentes à segunda dimensão de Direitos Fundamentais, estão previstos na Constituição Federal de 1988, em extenso rol, especialmente em seu artigo 6º, que considera como tais, sem prejuízo de outros, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Tais direitos evidenciam deveres de prestação e proteção pelo Estado (demandam ações concretas do poder público) e, em algum grau, também obrigam o Estado à abstenção de atos que se afigurem contrários ao dever positivo.

Nesse diapasão, impende asseverar que os direitos sociais são exigíveis, inclusive mediante ação judicial, a fim de que seja dada a efetividade necessária à tutela constitucionalmente prevista.

Embora sempre fossem exigíveis judicialmente, no contexto do neoconstitucionalismo, a necessidade de garantir a materialização desses direitos não mais estava adstrita à norma posta, dando ensejo à doutrina da efetividade, conforme razões a seguir expostas.

Sobre o tema, preciosos são os ensinamentos do já referido Luís Roberto Barroso, ao tratar sobre a chamada doutrina da efetividade:

O reconhecimento de força normativa às normas constitucionais foi uma importante conquista do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa.

Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. Descumpre-se a imperatividade de uma norma tanto por ação quanto por omissão. Ocorrida a violação, o sistema constitucional e infraconstitucional devem prover meios para a tutela do direito ou bem jurídico afetados e restauração da ordem jurídica. Estes meios são a ação e a jurisdição [...] (BARROSO, 2005)

Sobre a efetividade dos direitos sociais, igualmente preciosas são as explanações de Ingo Wolfgang Sarlet, senão veja-se:

Um problema central relacionado com a própria eficácia e efetividade dos direitos fundamentais sociais é o de estabelecer, no âmbito do marco constitucional brasileiro (e, portanto, de modo afinado com os limites do nosso direito constitucional positivo), os contornos do seu (dos direitos sociais) respectivo regime jurídico-constitucional, o qual, além do que expressamente – e implicitamente - foi estabelecido pelo Constituinte, tem sido objeto de fecundo – mas amplamente controverso - desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial.

[...] acabou sendo incorporada ao discurso constitucional brasileiro, até mesmo pelo fato de que o direito constitucional positivo assim o exige, a conhecida formulação de Robert Alexy ao enfatizar que os direitos fundamentais são posições jurídicas a tal ponto relevantes que o seu reconhecimento não pode ser pura e simplesmente colocado plenamente à disposição das maiorias parlamentares simples. Também por esta razão, os direitos fundamentais – para que tenham assegurada uma posição preferencial e privilegiada – devem estar blindados contra uma supressão ou um esvaziamento arbitrário por parte dos órgãos estatais, em outras palavras, pelos poderes constituídos, além de terem sua normatividade plenamente garantida, o que implica o reconhecimento de uma dupla fundamentalidade formal e material. (SARLET, 2001)

A Constituição Federal de 1988, segundo o referido autor, alinhou-se a tal modelo, inserindo em seu bojo um extenso rol de direitos fundamentais, aos quais cuidou de atribuir a condição de cláusulas pétreas, ou seja, limites materiais à atuação retificadora do texto constitucional (art. 60, § 4º).

O reconhecimento dos direitos sociais como direitos judicialmente exigíveis trouxe, como consequência, a transferência, ainda que com diversos temperamentos, de questões que antes eram tidas como exclusivamente definidas como de competência e responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo.

Inegável, portanto, que a valorização do papel do Poder Judiciário deu ensejo a uma crescente judicialização de matérias que antes não eram tão amplamente discutidas na via judicial. Ou seja, questões que outrora eram restritas ao âmbito legislativo ou à execução concreta de políticas públicas por intermédio dos poderes eleitos, passaram a desaguar em processos judiciais, outorgando ao Poder Judiciário a manifestação final e conclusiva.

Nesse contexto, vale asseverar a definição de judicialização, também delineada por Luís Roberto Barroso, tema bastante em voga em tempos atuais:

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês – a chamada democracia ao estilo de Westminster –, com soberania parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade. Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito. Os precedentes podem ser encontrados em países diversos e distantes entre si, como Canadá, Estados Unidos, Israel, Turquia, Hungria e Coreia, dentre muitos outros (...). (BARROSO, 2008)

Ainda sobre a judicialização das políticas públicas, veja-se o ensinamento de José Sérgio da Silva Cristóvam:

A extrema rapidez com que se alteram os cenários político e econômico, aliada à crescente complexidade da sociedade contemporânea, tem exigido um profundo redimensionamento do papel do Direito e das instituições jurídicas no corpo social. [...]

A superação do positivismo jurídico exige uma revisão de vários institutos jurídicos e inúmeras teorias que, embora servissem ao modelo liberal de Estado de direito, atualmente não se sustentam no seio do novo constitucionalismo: a teoria liberal da separação de poderes, a própria noção de soberania, o papel do Poder Judiciário no controle da Administração Pública, o controle jurisdicional da discricionariedade e do mérito administrativo, e, o objetivo central deste texto, a justiciabilidade de políticas públicas. (CRISTOVAM, 2005)

Com efeito, depreende-se de tudo o quanto aqui escrito que a judicialização nasce de fatores de naturezas diversas, sendo certo que a ascensão do Poder Judiciário é apenas um deles.

O multicitado Luis Barroso traz a lume o que enxerga como sendo as principais causas do fenômeno ora estudado. A primeira delas, segundo o referido autor, seria a própria redemocratização do país, que 

[...] teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos Ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Por outro lado, o ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Nesse mesmo contexto, deu-se a expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria Pública em diferentes partes do Brasil. Em suma: a redemocratização fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira. (BARROSO, 2008)

Para além disso, destaca-se também a constitucionalização abrangente, caracterizada na realidade brasileira pelo caráter mais que analítico do texto constitucional de 1988, que enfrenta diversas matérias não propriamente constitucionais, que em momento pretérito eram objeto de tratamento legislativo ordinário. Para Luís Roberto Barroso, em verdade,

[...] Essa foi, igualmente, uma tendência mundial, iniciada com as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que foi potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica, ambiciosa, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. (BARROSO, 2008)

Ressalte-se, ainda, que também representa um importante fator de judicialização a conformação atribuída pelo legislador constituinte ao sistema brasileiro de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Trata-se, como é cediço, de

[...] um dos mais abrangentes do mundo. Referido como híbrido ou eclético, ele combina aspectos de dois sistemas diversos: o americano e o europeu. Assim, desde o início da República, adota-se entre nós a fórmula americana de controle incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o direito de propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem como entidades públicas e privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF. (BARROSO, 2008)

Em suma: para o autor aqui referido, três são os fatores decisivos para a chamada judicialização na realidade jurídico-institucional brasileira. A redemocratização do país, a abrangência do texto constitucional e o desenho conferido ao sistema de controle de constitucionalidade pátrio.

Tal percepção é absolutamente acertada, eis que tais fatores efetivamente conduzem à discussão judicial de inúmeras matérias, que talvez não chegassem ao Poder Judiciário caso estivessem mais restritas ao processo legislativo majoritário. Acredita-se, destarte, que a judicialização, na forma aqui referida, configura verdadeira escolha do sistema constitucional brasileiro, que além de tudo o quanto já referido, impede o afastamento de apreciação de lesão ou ameaça a direito pelo Poder Judiciário, por expressa dicção constitucional.

Fenômeno muito próximo da judicialização, mas que com este não se confunde, é o que se pode chamar de ativismo judicial.

Afinal, com o aumento das questões potencialmente submetidas ao Poder Judiciário e com a já referida judicialização, os juízes passaram a ter maior participação na concretização do texto constitucional vigente, aplicando-lhe diretamente aos casos concretos. Neste contexto, perdeu força a clássica ideia de separação de poderes, e a interferência do Poder Judiciário sobre os demais foi ampliada.

Com efeito, é bastante comum a aplicação direta do texto constitucional, independentemente da atuação do legislador ordinário. Ademais, dado o caráter híbrido do controle de constitucionalidade brasileiro, qualquer juiz ou tribunal pode afastar a aplicação da norma legislada do caso concreto, sob o argumento ou percepção de que estaria a mesma dissonante com o texto constitucional vigente, ou seja, marcada pelo fenômeno da inconstitucionalidade. Para Luís Roberto Barroso (2008), os critérios de declaração de tais inconstitucionalidades passaram a ser cada vez menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição.

Além disso, não raramente o Poder Judiciário tem, por intermédio dos processos que aprecia, imposto ou determinado condutas ou abstenções ao Poder Público, notadamente no que diz respeito às demandas relacionadas com a implementação de políticas públicas.

Acredita-se, relativamente ao ativismo judicial, que se trata de um modo de agir verdadeiramente decorrente da escolha do Poder Judiciário em maximizar a sua atuação diante das possibilidades trazidas pelo texto constitucional.

Não é tarefa fácil, contudo, segundo explica Vanice Valle, identificar as decisões judiciais que decorram da utilização do ativismo como salutares ou ofensivas às competências dos demais poderes. Isto porque, diante da subjetividade envolvida no tema, é igualmente tormentosa a identificação do fenômeno. Afinal,

[...] o parâmetro utilizado para caracterizar uma decisão como ativismo ou não reside numa controvertida posição sobre qual é a correta leitura de um determinado dispositivo constitucional. Mais do que isso: não é a mera atividade de controle de constitucionalidade – consequentemente, o repúdio ao ato do poder legislativo – que permite a identificação do ativismo como traço marcante de um órgão jurisdicional, mas a reiteração dessa mesma conduta de desafio aos atos de outro poder, perante casos difíceis. (VALLE, 2009, p. 21).

Vê-se, deste modo, apesar das dificuldades inerentes ao tema, que o ativismo judicial está calcado na intenção do Poder Judiciário em ampliar o seu espaço na efetivação dos valores e normas constitucionais.

De modo diverso, como já explicitado, a judicialização, como decorrência do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, é um fato que independe de qualquer vontade política neste sentido.

Nesse contexto, importa bem distinguir os conceitos em questão.

A judicialização e o ativismo são traços marcantes na paisagem jurídica brasileira dos últimos anos. Embora próximos, são fenômenos distintos. A judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema de controle de constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que permitem que discussões de largo alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Vale dizer: a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte.

O ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário. Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso. Os riscos da judicialização e, sobretudo, do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias. (BARROSO, 2008)

Tem-se, assim, que, apesar das distinções quanto à origem, os dois institutos supramencionados possuem consequências parecidas, bem como demonstram a vertiginosa ascensão do Poder Judiciário, razão pela qual mereceram a análise ora esboçada.

A despeito das semelhanças, o ativismo judicial desafia o próprio sistema jurídico vigente ao agigantar o Poder Judiciário em detrimento das decisões e escolhas dos demais Poderes. Já a judicialização, como dito, decorre do próprio sistema.

Com isso, deve-se ressaltar a inevitabilidade da judicialização, ao mesmo tempo em que se afirma como necessária a avaliação dos riscos e limites do ativismo judicial, a fim de que este instituto seja também visto como imprescindível ao sistema jurídico, como solução para as omissões dos demais poderes da República ou na ponderação de interesses na colisão de princípios, sem, contudo, excessos que ponham em xeque o próprio princípio constitucional fundamental da tripartição dos poderes.

2.3. O ativismo judicial em matéria previdenciária

Na história recente do direito previdenciário brasileiro, muitos são os exemplos de decisões judiciais que evidenciam a postura ativista do Poder Judiciário.

Afinal, sendo a Constituição Federal de 1988 um texto analítico, é certo que ali são tratados diversos temas que não necessariamente são classificados como matéria constitucional. E um dos inegáveis efeitos decorrentes desta vastidão do texto constitucional é, sem dúvidas, a expansão da jurisdição e do alcance das decisões judiciais que buscam fundamento e razão de ser no bojo da própria carta política.

Além disso, tendo o texto constitucional tratado de matérias variadas, não raramente as discussões jurídicas mais simples são levadas até o órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro, que é o Supremo Tribunal Federal – STF, que tem por competência maior a própria guarda e proteção da Constituição Federal.

Logo, acredita-se que o STF tem funcionado, em diversas oportunidades, como verdadeiro ambiente fértil para o ativismo judicial referido alhures, eis que, na clara intenção de assegurar direitos constitucionalmente previstos, é levado a atuar efetivamente nos processos, até mesmo de forma contramajoritária, desconsiderando ou revisando a vontade externada pelos órgãos de composição eletiva (Poderes Executivo e Legislativo).[5]

Dito isto, quadra asseverar que essa dinâmica, de atuação jurisdicional mais severa e ativista, repercute inegavelmente no Direito Previdenciário. Afinal, há um tratamento relativamente detalhado da Previdência Social no bojo do texto constitucional (vide artigos 201 e seguintes da Constituição de 1988), e em diversos momentos o STF foi instado a se manifestar em ações relacionadas a este específico ramo do conhecimento jurídico.

E não apenas o STF, como é cediço, mas todos os órgãos jurisdicionais.

Isso porque, com o amplo acesso à justiça, facilitado pelos inúmeros instrumentos que visam o afastamento dos obstáculos, mormente os econômicos, de judicialização dos conflitos, bem como diante da nova postura do Judiciário com relação ao seu papel constitucional, muitas situações que envolvem matéria previdenciária vem sendo decididas em última análise pelo órgão judicante em desprestígio à legislação infraconstitucional vigente.

Antes de adentrar no estudo do caso que interessa ao presente trabalho, cumpre asseverar que muitas das decisões que são fortemente marcadas pelo ativismo judicial trouxeram grandes avanços para o direito previdenciário, e, por vezes, chegam a influenciar a alteração da legislação atinente ao tema.

Dentre casos emblemáticos que traduziram o ativismo judicial como expoente de um Poder Judiciário ativo e empenhado nas causas sociais, tem-se o reconhecimento das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal, e, por consequência, como ensejadoras de benefícios previdenciários.

O já muitas vezes citado Luís Roberto Barroso, em seu texto “Retrospectiva 2011 - Direito Constitucional e Supremo Tribunal Federal”, bem sintetiza a decisão em questão ao analisar o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277:

Em ambas as ações, ajuizadas respectivamente pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro e pelo Procurador-Geral da República, o STF atribuiu interpretação conforme a Constituição ao art. 1723 do Código Civil, que regulamenta a união estável entre o homem e a mulher. Como se sabe, a mesma referência básica é encontrada no art. 226, § 3º da Constituição, que impõe ao Estado o dever de reconhecer a tais uniões informais o status

de família, sem prejuízo de facilitar sua conversão em casamento. Os opositores do reconhecimento invocavam justamente a literalidade dessas previsões, sobretudo do dispositivo constitucional. Em decisão unânime, o STF afastou o suposto óbice e estendeu expressamente o regime jurídico da união estável às uniões entre duas pessoas do mesmo gênero, atendidos os requisitos da união heterossexual.

[...] a postura interpretativa do STF, que construiu a necessidade de reconhecimento das uniões entre pessoas de mesmo gênero a partir da aplicação direta de princípios constitucionais. O ponto foi destacado por diversos Ministros, sobretudo pelo Ministro Gilmar Mendes, que saudou o precedente como a superação definitiva da teoria do legislador negativo. (BARROSO, 2012)

Essa decisão, que estava em consonância com outras decisões já proferidas pela Corte sobre o tema, ao dar a interpretação ao art. 226, §3º da Constituição Federal conforme os princípios contidos na própria Carta Magna, em postura ativista, demonstra a importância da atuação do Poder Judiciário na efetivação das normas constitucionais.

Por outro lado, por vezes, a atuação do órgão judicial, na tentativa de realizar os direitos sociais, acaba por implicar em ofensas significativas à esfera de atuação dos demais Poderes, à lei e à Constituição Federal, conforme se passa a demonstrar.

Tome-se como relevante exemplo, e que bem demonstrará até onde pode chegar a postura ativista do Poder Judiciário, o fato de que o INSS, órgão previdenciário na realidade jurídico-institucional brasileira (responsável pela gestão do regime geral) não raras vezes é instado ao cumprimento de decisões judiciais que, em tese, não deveriam produzir efeitos em relação a ele, por não ter participado da relação jurídica processual.

Consoante já mencionado, dentre as decisões judiciais que potencialmente geram efeitos em favor do demandante contra a Autarquia Previdenciária, ainda que esta não tenha figurado como parte do processo, estão as sentenças trabalhistas de reconhecimento de vínculo de emprego e tempo de contribuição, bem como as sentenças proferidas em processos de justificação judicial com pedido de reconhecimento de união estável, tramitados perante as Varas de Família.

Com relação às citadas decisões, ocorrem ainda diferentes tipos de situação, quais sejam: o INSS é intimado diretamente pelo Juízo, no âmbito do processo judicial, para cumprir a decisão proferida em processo no qual não figurou como parte, ou, no âmbito administrativo, a parte instruirá o seu pedido de benefício previdenciário com a sentença, esperando que ela produza efeitos idênticos.

Apesar de, no primeiro exemplo citado, afigurar-se mais clara a atuação judicial proativa, tem-se que, na segunda hipótese, embora a questão seja tratada por normas específicas no âmbito do INSS, na prática, as referidas decisões, quando apresentam validade questionada no âmbito administrativo, geram a judicialização da questão e, em regra, produzem presunção juris et de juri contra a autarquia previdenciária.

Assim sendo, apesar de decorrentes de situações diversas, o desdobramento é idêntico em ambos os casos, a saber: o INSS é instado a suportar efeitos de uma decisão judicial proferida em processo no qual não foi parte, seja porque, no âmbito do mesmo processo, foi intimado para fazê-lo, ou em razão da presunção juris et de juri que será produzida por essa decisão, quando eventualmente judicializada a questão em outro processo.

Outro claro exemplo de ativismo judicial em matéria previdenciária, como se verá no capítulo seguinte, está na própria ideia da desaposentação, que embora tenha surgido no âmbito da discussão doutrinária, ganhou força e expressão pelo acolhimento judicial que lhe foi conferido por variados juízes e tribunais brasileiros.

Estão pendentes de julgamento, atualmente, perante já referido STF, os Recursos Extraordinários de nº 661.256 e 381.367, que decerto resolverão definitivamente o tema, definindo, no âmbito judicial (e não nos poderes eleitos) se é possível a renúncia a uma aposentadoria já recebida para o percebimento de outra aposentadoria de maior valor, em razão da continuidade laborativa do segurado. O julgamento de tal demanda, de inegável repercussão social e econômica, trará importantes reflexos para a política previdenciária do país.

Pode-se atentar desde já, no entanto, e com vistas principalmente ao exemplo antecedente, que as prerrogativas conferidas ao julgador no sistema jurídico vigente não induzem plenos poderes, tendo em vista que, com efeito, os poderes dos juízes pode e devem encontrar limitações, sob pena de ilegalidade e/ou inconstitucionalidade.

Sobre esta necessidade de limitações, veja-se o comentário feito por Antonio Cláudio da Costa Machado:

A determinação judicial de atos a serem praticados pelas partes tem por balizamento as autorizações legais conferidas ao magistrado para a condução do processo rumo ao seu objetivo. Em outras palavras, o juiz só pode ordenar às partes aquilo que é da vontade da lei e não da sua própria. (MACHADO, 2013, p. 289)

Vê-se, portanto, que a busca pela efetividade das decisões, decorrente do neoconstitucionalismo, deve encontrar limites na lei o no próprio sistema constitucional, que determina, entre outras coisas, que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si.

Outro ponto limitador ao poder do juiz ativista está na garantia da ampla defesa e no princípio do contraditório inerentes ao processo judicial, pelos quais, com exceção das hipóteses legais, não poderá ser imposta uma obrigação a quem não figurou como parte.

Valiosas são as palavras de Glauco Gumeto Ramos, em obra coordenada por Freddie Didier Jr., que afirma a necessidade de postura garantista dos princípios acima citados em oposição ao arbítrio ativista dos magistrados, neste sentido:

Não há dúvida de que a ampla defesa é uma das decorrências do princípio maior do devido processo legal, de inequívoco nível constitucional. É ela, a ampla defesa, uma garantia a ser observada-viabilizada-concretizada pela autoridade estatal de maneira prévia ao “ato de fala” representativo do Poder. Insista-se no ponto: o Poder estatal só poderá ser exercido APÓS o exercício da ampla defesa pelo seu destinatário. Foi essa a opção constitucional! Do contrário, é Poder decretado com autoritarismo e arbitrariedade eis que exercido fora do devido processo legal, e isso passa ao largo do modelo semântico de processo prescrito na Constituição. (DIDIER JR., 2013, p. 250)

O supramencionado autor prossegue questionando a possibilidade de compatibilidade constitucional entre o ativismo judicial e a ampla defesa, ao que conclui:

Em primeiro lugar tenhamos em mente – em definitivo – que a ampla defesa não é um favor que o Estado nos confere, mas uma garantia constitucional decorrente do devido processo que é um dos fatores de legitimidade do processo jurisdicional de criação do Direito e do próprio exercício do Poder estatal. Em segundo lugar, tenhamos em mente – também em definitivo – que a ideologia do ativismo judicial viabiliza posturas mais incisivas, autoritárias e arbitrárias do juiz e do Poder Judiciário no curso de criação do direito criado através desse processo. Em suma, o ativismo judicial afeta o conteúdo dogmático da teoria da decisão judicial republicana e democrática e com isso acaba “criando” um modelo pragmático de processo apartado do modelo semântico decorrente dos enunciados prescritivos contidos na Constituição.

Estabelecidos estes parâmetros (=ampla defesa como garantia prévia; ativismo judicial como fator determinante a motivar postura mais incisiva, autoritária e arbitrária do titular do Poder jurisdicional), temos que a ideologia do ativismo judicial é capaz de subverter a garantia constitucional da ampla defesa. E isso, a mim me parece, nos é revelado inclusive de maneira intuitiva. (DIDIER JR, 2013, 250)

Com relação à possível oposição existente entre a postura ativista no processo civil e as garantias constitucionais processuais, elucidativo é o excerto abaixo, é forçoso, destarte, que se persiga um mínimo equilíbrio. A postura ativista não pode ensejar, sob pena de falibilidade do próprio sistema, a inobservância de direitos constitucionalmente tão caros e historicamente conquistados.

Neste sentido, é preciso atentar que

A atividade judicial ao suprimir direitos fundamentais em prejuízo do jurisdicionado, está contrariando a Constituição da República. Não se conhece estatística alguma, mas pelo que se apresenta notório, é possível imaginar que o poder que mais viola a Constituição da República é o Poder Judiciário. Basta lembrar alguns poucos exemplos e, logo é possível chegar a esta conclusão. Quem por anos e anos determinou a prisão do depositário infiel sem lei que cominasse pena, configurando prisão sem lei em afronta ao art. 5º XXXIX, da CF? Quem sempre determinou a retenção de dinheiro de incapaz sem o devido processo legal (sem expressa lei nesse sentido), em afronta ao art. 5, LIV, da CF? Quem cerceia defesa em processo ou procedimento, negando o contraditório e a ampla defesa, em afronta ao art. 7º, X, da CF? (...) (DIDIER JR., 2013, 221/222)

Logo, reafirmando a necessidade de equilíbrio, pode-se defender que o poder conferido ao juiz encontra importante grau de limitação no ordenamento jurídico vigente, não sendo lícito instituir obrigações que conflitem com tal ordenamento, ainda que se manifeste na amplitude da judicialização de questões sociais, mormente quando plenamente possível, no caso concreto, para a realização do direito, a aplicação do direito posto.

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Sobre a autora
Roberta Rabelo Maia Costa Andrade

Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013). Atualmente é Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. A desaposentação e o ativismo judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3940, 15 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27329. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado como estudo monográfico de conclusão do curso de Pós-Graduação em Direito Público junto à Universidade de Brasília (UNB).

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