1. Introdução
No momento em que nossa capital, Palmas-TO, se prepara para sediar os Jogos Mundiais Indígenas, temos uma excelente oportunidade para discutir e desmistificar alguns pontos básicos sobre o atendimento policial adequado a eventuais conflitos e tensões que possam surgir em eventos dessa magnitude, afinal, se todas as pessoas fossem anjos, as leis seriam tirânicas e a polícia uma violência desnecessária, irracional e inconcebível.
Inicialmente, cumpre ressaltar que o Código Penal Brasileiro consagrou expressamente o principio da territorialidade (art. 5°), que de forma aqui simplificada vai significar a aplicação da lei brasileira aos fatos ocorridos no Brasil, independente da nacionalidade do autor ou da vítima do fato. Da mesma forma, será competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação (art. 12 da LINDB), como seria o caso de eventual crime em que o indígena figurasse na condição de autor ou de vítima (furtos, roubos, lesões corporais, homicídios, crimes sexuais, etc).
Nesse contexto, o diploma que rege a situação jurídica do índio no Brasil, além da Constituição Federal e demais normas do ordenamento jurídico, é especificamente a Lei n° 6.001/73, denominada de “estatuto do índio”.
Calha notar, que o estatuto acima mencionado, no parágrafo único de seu art. 1°, determina a aplicação aos indígenas das mesmas normas que se aplicam aos brasileiros em geral, resguardados os usos, costumes, as tradições indígenas e as condições peculiares nele estabelecidas.
Dessa maneira, como o Índio pode ser tanto vítima, quanto autor, de qualquer dos crimes estabelecidos na Lei penal, deve receber o mesmo tratamento padrão que é dispensado pela polícia para qualquer pessoa, nacional ou não, respeitadas as peculiaridades de sua condição definidas no estatuto, sobre as quais se passará a analisar.
2. Comunidades Indígenas Remanescentes no Brasil
Elaborado em 1900, o primeiro levantamento antropológico-cultural do País revelou a existências de 218 tribos, totalizando cerca de 1.250.000 índios, designadas de acordo com a convenção para a grafia dos etnônimos aprovada em 1953, pela I Reunião Brasileira de Antropologia.
Atualmente, de acordo com a FUNAI remanescem cerca de 220 povos indígenas, cerca de 70 grupos de índios isolados, sobre os quais ainda não há informações objetivas. 180 línguas, pelo menos, são faladas pelos membros destas sociedades, que pertencem a mais de 30 famílias linguísticas diferentes. Assim, a atual população indígena brasileira, segundo resultados preliminares do Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, é de 817.963 indígenas, dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras. Este Censo revelou que em todos os Estados da Federação, inclusive do Distrito Federal, há populações indígenas, além de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista
3. Peculiaridades do Estatuto
Concebido na década de 70, século passado, o estatuto do índio revela uma concepção isolacionista, ao traçar uma classificação legal dos índios entre isolados, em vias de integração e integrados, a partir da qual faz uma distinção positiva para fins de aplicação da lei penal, no momento de fixação da pena, bem como de seu cumprimento, nos termos do art. 3° da lei 6001/73, a seguir transcrito:
Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.
Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.
Dessa maneira, se o índio autor do fato for considerado silvícola, isolado ou não integrado ou ainda em vias de integração, não importa a natureza da infração penal que tenha cometido, por mais grave que o seja, ele cumprirá a pena em regime especial de semiliberdade, com acompanhamento do órgão federal de assistência ao Índio – FUNAI, devendo o juiz considerar a atenuante prevista no artigo acima mencionado para fixação da pena.
Os índios considerados integrados não gozam desses benefícios. O Artigo 4° do referido estatuto traz as definições acerca do que se considera a respeito da integração:
Art 4º Os índios são considerados:
I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;
II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;
III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.
Interpretando a norma, urge ressaltar que a derradeira comunidade indígena comprovadamente em estado de isolamento foi “descoberta” na década de 1970, pelos irmãos Vilas Boas.
Contudo, a FUNAI mantém até hoje um departamento especial para proteção de comunidades indígenas isoladas, cuja existência atual é reivindicada por indigenistas e entidades não governamentais, os quais estariam vivendo em áreas remotas do território nacional, nos estados de Roraima, Pará e Amazonas, próximas à fronteira com Peru e Guiana, porém sem confirmação oficial.
O certo é que, por razões históricas ligadas à formação do Estado brasileiro, as comunidades indígenas do Tocantins, ou o que restara delas, mantiveram contato com o restante da população em séculos anteriores e desde então mantém relações contínuas de troca de mercadorias e venda de produtos, as escolas ensinam o idioma português nas aldeias (quando os professores não estão em greve) – falado fluentemente, se utilizam de vestimentas, veículos de transporte, e participam ativamente das relações sociais nas cidades próximas às aldeias, elegendo representantes e sendo eleitos em alguns municípios, não podendo ser classificadas como isoladas.
O CPB, quando trata da inimputabilidade, art. 26, define como isento de pena o agente que era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato, perfeitamente aplicável aos índios não integrados, se ainda existirem, impossível de presumir-se para os demais.
Vale ressaltar ainda, que o art. 57 do estatuto do índio permite a tolerância na aplicação, pelas tribos, de sanções penais ou disciplinares a membros do respectivo grupo, desde que não tenha caráter cruel ou infamante, vedada a aplicação da pena de morte:
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.
Assim, não há falar-se em constrangimento ilegal, abuso de autoridade ou incidência de qualquer tipificação para as sanções moderadas aplicadas pelos caciques, anciões ou por quem a cultura e as tradições indígenas designarem, aos membros da própria tribo.
Visando pacificar a discussão sobre a competência para julgamento das questões envolvendo indígenas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), editou a súmula n° 140, segundo a qual “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima”, exceção para o crime de genocídio, disposto em lei especial e cuja competência é da justiça federal.
Cumpre anotar, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos Índios são terras da União, nos termos da Constituição Federal de 1988, sendo a Justiça Federal competente para dirimir eventuais conflitos acerca da terra. Neste sentido, compete privativamente à União legislar sobre direito agrário (art. 22, I, CF/88), razão pela qual a posse e propriedade destas terras são insuscetíveis de regulamentação por lei estadual ou municipal.
4. À Guisa de Conclusão
Portanto, nos atendimentos policiais em que figure o índio como autor ou vítima de crimes durante os Jogos Mundiais indígenas, em Palmas-TO, as partes deverão ser encaminhadas à delegacia de Polícia Civil local, pois é competente a justiça comum estadual, (súmula 140, STJ), e esta é sua polícia judiciária (art. 144, § 4°, CF/88), ressalvada a tolerância para as penalidades moderadas aplicadas pelas tribos aos seus próprios membros e ainda a competência da Justiça Federal para processar e julgar conflitos agrários de terras tradicionalmente por eles ocupadas e o crime de genocídio.
Referências:
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
AZEVEDO, M. Censos demográficos e os índios: dificuldades para reconhecer e contar. In: RICARDO, C. A. (Org.) Povos Indígenas no Brasil 1996/2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.
FUNAI, Indios no Brasil: quem são, disponível em www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao, consulta em abril de 2014.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: RT, 2011.
PAGLIARO, H., AZEVEDO, MM., and SANTOS, RV. orgs. Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. 192 p. ISBN: 85-7541-056-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.