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O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário: ofensa a separação dos poderes?

24/04/2014 às 10:36
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O Judiciário tem legitimidade para intervir em matéria de políticas públicas por ter recebido a competência de zelar pelo cumprimento da Constituição, corrigindo, inclusive, a atuação desregrada dos outros Poderes e sem que isso constitua ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Resumo: Esse breve ensaio debaterá a possibilidade de controle das políticas públicas pelo poder judiciário em cotejo com o princípio da separação dos poderes. Analisará, ainda, a posição da jurisprudência pátria, em especial a do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 45-9 de relatoria do Ministro Celso de Mello, que impõe limitações a tal controle, tal como a reserva do possível e a necessidade de se aplicar o princípio da proporcionalidade.

Palavras-chave: Políticas públicas. Controle. Judiciário.


I – INTRODUÇÃO

Na atualidade, o direito administrativo vem sofrendo intensas críticas vindas de variadas frentes, seja daquelas que o consideram, nos moldes em que está delineado, como entrave a uma atuação estatal mais célere e livre de amarras, necessária no atual mundo globalizado, seja de outras que veem a necessidade de reposicioná-lo em face do Estado Democrático de Direito consolidado pela Constituição da República de 1988, ao argumento de que não respeita princípios fundamentais dessa nova ordem.

O mérito administrativo, por seu turno, como instituto diretamente ligado a uma das principais espécies de atuação da Administração – a discricionária -, não está livre das críticas e tentativas de revisão.

A questão das políticas públicas surge com a ideia de dirigismo estatal, juntamente com o Estado do bem-estar social. Nesse momento, tais políticas representavam uma forma de intervenção na atividade privada. Com o passar do tempo, as políticas públicas passaram a ser entendidas como diretrizes geras para a atuação do Estado e dos indivíduos1.

De acordo com Comparato (1998, p. 45), as políticas públicas podem ser definidas como um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado, a serem seguidos pelo corpo político vinculando juridicamente todos os órgãos estatais.

Nesse panorama, as políticas públicas passaram a ser vistas como um processo, cujo fim tende a uma escolha racional e coletiva das prioridades, na definição de quais interesses públicos serão reconhecidos pelo direito2.

Sendo assim, no que concerne à formação das políticas públicas, que a iniciativa pertence ao Poder Legislativo, na exata medida em que a definição de diretrizes e objetivos gerais significa a realização de opções políticas, cuja competência é dos representantes do povo. A realização concreta de tais políticas cabe ao Poder Executivo3.

Esse breve trabalho enfrentará o limite do controle jurisdicional das políticas públicas, analisando a posição da doutrina e jurisprudência pátria.


II – A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A ideia original de controle sobre os atos da Administração era o controle objetivo, recaindo apenas sobre a legalidade. Com a mudança de paradigmas, o controle passou a ser subjetivo, no sentido de que se ter um direito processualmente garantido ao cidadão para pedir justiça ao juiz para a proteção de um direito material concreto4.

Com a proteção dada pela Constituição da República de 1988 aos direitos fundamentais, inclusive os sociais, criou-se uma obrigação ao Estado e, portanto, a todos os seus Poderes de dar máxima efetividade aos direitos consagrados. Os direitos sociais e as políticas públicas que dele decorrem deixaram de ser vistos como meras promessas estatais e passaram a ser determinações vinculantes a todos os poderes5.

Essa mudança de perspectiva quanto ao caráter vinculante das normas constitucionais é bem explicitada no RE 271.286 em que se discutia a obrigação do Estado fornecer medicamentos para o tratamento de HIV, assim emendado:

(...) A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.- O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

(...)

(STF. RE (AgRg) 271.286-RS. Rel. Min. Celso de Mello. Informativo n. 210/2000 do STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo210.htm>. Acesso em 2 nov. 2013).

Portanto, havendo um direito previsto na Constituição, cabe tanto ao Executivo quanto ao Judiciário dar-lhe a máxima eficácia possível. Não pode um comando constitucional ser considerado inerte.

No Brasil, durante muito tempo os tribunais autolimitaram-se, entendendo não poder adentrar o mérito do administrativo. Diversas manifestações do Poder Judiciário, anteriores a Constituição de 1988, assumiram essa posição6. No entanto, a Lei da Ação Popular abriu ao Judiciário a apreciação do mérito do ato administrativo, ao menos nos casos dos arts. 4º, inciso II, alínea b e inciso V, alínea b, da Lei nº. 4.717/65, elevando a lesão à condição de causa de nulidade do ato, sem necessidade do requisito da ilegalidade. Mas foi a Constituição de 1988 que trouxe a verdadeira guinada: em termos de ação popular, o art. 5º, inciso LXXIII, sendo certo que o controle da moralidade administrativa, pela via da citada ação, não pode ser feito sem o exame do mérito do ato guerreado.

Assim, o controle da constitucionalidade das políticas públicas pelo poder judiciário, não se faz apenas sob o prisma da infringência frontal à Constituição pelos atos do Poder Público, mas também por intermédio do cotejo desses atos com os fins do Estado. Diante dessa nova ordem, denominada judicialização da política, contando com o juiz como co-autor das políticas públicas, fica claro que sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficácia dos fins do Estado – incluindo os direitos fundamentais, individuais ou coletivos – o Poder Judiciário deve atuar na sua função de controle7.


III – A SEPARAÇÃO DE PODERES

Outra crítica feita à possibilidade de controle judicial sobre as políticas públicas é que tal intervenção feriria o princípio da separação dos poderes, por representar uma ingerência indevida do Poder Judiciário em matérias que teriam sido exclusivamente conferidas ao Legislativo e ao Executivo.

Com efeito, a teoria da separação dos poderes precisou ser interpretada no sentido de entender que o Estado é uno e uno é o seu poder. Os poderes são considerados independentes e harmônicos, cabendo ao Judiciário investigar o fundamento de todos os atos estatais a partir dos objetivos fundamentais da CR/888.

Num Estado Democrático de Direito, o Judiciário deve alinhar-se com os objetivos estatais, não devendo mais ser um poder neutro. Assim, o controle sobre as políticas públicas não se dá apenas no que diz respeito a uma agressão frontal à Constituição, mas também no que tange aos fins do Estado9.

Dessa forma, a intervenção do Judiciário para controle de políticas públicas não significaria uma agressão ao princípio da separação dos poderes. É papel constitucional do Judiciário, havendo conflito de interesses, decidir o caso concreto, fazendo valer a vontade da lei. O fato de a decisão judicial ser contrária ao Executivo não significa ter havido uma indevida ingerência de um Poder sobre o outro. Ademais, é característica marcante do Estado de Direito a submissão do Estado à jurisdição constitucional10.

A separação dos poderes, portanto, resta incólume, pois não deve haver uma substituição do Poder Legislativo pelo Judiciário, de modo a transformar a discricionariedade legislativa em discricionariedade judicial. Não é papel do Judiciário criar dinheiro, ele redistribui o dinheiro que possuía outras destinações estabelecidas pelo Legislativo e cumpridas pelo Executivo – é o Limite do Orçamento de que falam os economistas, ou a Reserva do Possível dos juristas11.


IV – A JURISPRUDÊNCIA: ADPF 45-9.

A jurisprudência tem-se posicionado em consonância com a doutrina, destacando-se o excerto da decisão monocrática do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF 45-9 abaixo transcrita:

[...]

Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos.

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo.

É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. Grifei.

Depreende-se da leitura do excerto acima que o Ministro Celso de Mello reconhece que os direitos econômicos, sociais e culturais estão vinculados a uma disponibilidade orçamentária, de tal modo que, comprovada a incapacidade econômica do Estado, não seria razoável dele exigir a concretização de tais direitos. No entanto, não poderia o Estado, alegando a reserva do possível, criar obstáculos artificiais à concretização de tais direitos.

Ademais, além da reserva do possível, o Ministro conclui que estaria o Judiciário autorizado a intervir em políticas públicas, caso a atuação dos Poderes Executivo e Legislativo se desse de maneira inconstitucional, ferindo os direitos fundamentais, relembrando a relatividade da liberdade de conformação do Legislativo e de atuação do Executivo.

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Não é demais lembrar que nenhum dos princípios constitucionais é absoluto, devendo ser relativos para que seja possível a convivência harmônica entre todas as normas constitucionais. No caso de colisão de direitos fundamentais, aplica-se o princípio da proporcionalidade.

Segundo Grinover (2010), a razoabilidade mede-se pela aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade, que significa, em última análise, a busca do justo equilíbrio entre os meios empregados e os fins a serem alcançados.

Sobre o tema, Canotilho explicitou que o princípio da proporcionalidade me sentido amplo comporta subprincípios constitutivos: a) princípio da conformidade ou adequação dos meios, que impõe que a medida adotada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes; b) princípio da exigibilidade ou da necessidade ou da menor ingerência possível, que coloca a tônica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível; e, c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito, também entendido como princípio da justa medida, no qual deve-se pesar as desvantagens do meio em relação às vantagens do fim12.

Assim, é admissível pensar numa restrição ao Legislativo ou ao Executivo, a fim de que seja garantido um direito fundamental violado.


V – CONCLUSÃO

Conclui-se, portanto, que o Judiciário tem legitimidade para intervir em matéria de políticas públicas por ter recebido a competência de zelar pelo cumprimento da Constituição, corrigindo, inclusive, a atuação desregrada dos outros Poderes e sem que isso constitua ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Não pode, contudo, o Judiciário querer substituir o Poder Legislativo e o Executivo, na formulação e implementação de políticas públicas, devendo o magistrado, no caso concreto, ponderar os princípios porventura em colisão, respeitando a margem de discricionariedade dos outros Poderes, bem como as escolhas por ele realizadas.


REFERÊNCIAS

BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 245-247.

CANELA JUNIOR, Oswaldo. A efetividade dos direitos fundamentais através do processo coletivo: um novo modelo de jurisdição. Inédito. Tese de doutorado. Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. Orientador: Kazuo Watanabe.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1996.

COMPARATO. Fabio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de informação legislativa. Brasília, ano 35, nº 136, p. 45, abr./jun. 1998.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Controle das políticas públicas pelo poder judiciário. Revista do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito. V. 7, n. 7, 2010. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/RFD/article/viewFile/1964/1969>. Acesso em 22 out. 2013.

MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Apontamentos sobre o controle judicial de políticas públicas. FORTINI, Cristiana; ESTEVES, Julio César dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca (org.). Políticas Públicas: possibilidades e limites. Belo Horizonte: Forum, 2008, p. 57.

SEFERJAN, Tatiana Robles. O controle das políticas públicas pelo poder judiciário. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (org.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 308.

STF. RE 463.210-1/SP. Rel Min. Carlos Velloso. 2a. Turma. DJ 03/02/206.

STF. RE 393.175 – AgR/RS. Rel Min. Celso de Mello. 2a. Turma. DJ 02/02/2007.

STF. http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm#ADPF - Políticas Públicas - Intervenção Judicial - "Reserva do Possível" (Transcrições). Acesso em 22 out. 2013.


Notas

1 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 245-247.

2 BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 264.

3 BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 269-270.

4 MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Apontamentos sobre o controle judicial de políticas públicas. FORTINI, Cristiana; ESTEVES, Julio César dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca (org.). Políticas Públicas: possibilidades e limites. Belo Horizonte: Forum, 2008, p. 57.

5 SEFERJAN, Tatiana Robles. O controle das políticas públicas pelo poder judiciário. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (org.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 308.

6 GRINOVER, Ada Pellegrini. Controle das políticas públicas pelo poder judiciário. Revista do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito. V. 7, n. 7, 2010. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/RFD/article/viewFile/1964/1969>. Acesso em 22 out. 2013.

7 CANELA JUNIOR, Oswaldo. A efetividade dos direitos fundamentais através do processo coletivo: um novo modelo de jurisdição. Inédito. Tese de doutorado. Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. Orientador: Kazuo Watanabe.

8 SEFERJAN, Tatiana Robles. Op. cit. p. 310.

9 GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit.

10 STF. RE 463.210-1/SP. Rel Min. Carlos Velloso. 2a. Turma. DJ 03/02/206.

11 STF. RE 393.175 – AgR/RS. Rel Min. Celso de Mello. 2a. Turma. DJ 02/02/2007.

12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1996.

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Sobre a autora
Natália Hallit Moyses

Procuradora Federal. Chefe do Serviço de Orientação e Análise em Demandas de Controle da PFE-INSS. Especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOYSES, Natália Hallit. O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário: ofensa a separação dos poderes? . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3949, 24 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27891. Acesso em: 22 dez. 2024.

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