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Desdobramentos políticos-jurídicos do Mensalão

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12/06/2014 às 07:31
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5. TEORIA DO VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR

A Constituição é a lei maior de um Estado. Considerando-se um Estado comprometido em igual medida tanto com o Direito, quanto com a Democracia, tem-se que a Magna Carta jurídico-política, instituidora da facticidade estatal, traz em seu âmago as bases instrumentais do Estado erigido sob a égide de suas disposições.

Conforme os preceptivos que delineiam o sistema constitucional brasileiro, em hipótese alguma pode haver norma jurídica que destoe das previsões constitucionais situada no topo da pirâmide hierárquica. Sempre que qualquer disposição normativa, integrante da Carta Maior ou de diplomas normativos infraconstitucionais (destacando-se que também podem haver normas constitucionais inconstitucionais, BACHOF, 1994) não se coadunar com o que fora positivado pelos constituintes (originário e derivado), tal disposição legal será passível de Controle de Constitucionalidade.

A doutrina clássica apresenta duas espécies de vício tendentes a macular a constitucionalidade de uma norma, desse modo, ensejando discussões acerca da produção dos efeitos das leis nas quais os mesmos se verifiquem. Pode haver vício de constitucionalidade formal, de cunho procedimental, referente à inobservância dos trâmites impostos constitucionalmente como requisito de eficácia das disposições de determinado espécime normativo, como exemplo uma Emenda Constitucional aprovada em inobservância do quantum relativo ao quórum qualificado previsto pelo §2º do art.60 da Constituição Federal de 1988.

A seu turno, o vício material se constata quando o teor de determinada disposição normativa atenta flagrantemente contra disposição presente no arcabouço constitucional. É o caso de uma hipotética lei que regulamente a pena de trabalhos forçados a condenados por crimes hediondos. Ora, não obstante a natureza da infração penal, a lei constitucional vigente é expressa ao vedar a aplicação de pena de trabalhos forçados (art.5º, XLVII, “c”, CB/88).

Classicamente, como fora demonstrado, apresentam-se os vícios de ordem formal e os de natureza material como fatores tendentes a motivar o pleito pela declaração de inconstitucionalidade das leis que porventura venham a inquinar, tanto pela via direta, quanto pela via incidental.

Dessarte, ao se considerar o escândalo do Mensalão, transfigurado na Ação Penal nº 470, faz-se necessário dissertar sobre as implicações científico-jurídicas inerentes à temática, relevando-se que o aspecto estritamente jurídico, exteriorizado na responsabilização penal dos representantes condenados pelo Supremo Tribunal Federal traz apenas uma das diversas possibilidades de estudo correlatas ao mencionado julgamento. Há implicações político-constitucionais que não podem ser olvidadas, nesse sentido, indaga-se: Os atos oriundos de representantes políticos, eleitos para o mister de zelar pelo interesse público, que não se coadunam com a finalidade inerente a atividade de representação política, são constitucionalmente válidos? Noutras palavras, a postura do parlamentar que no exercício de suas atribuições, ao votar pela aprovação ou rejeição de determinado projeto de lei, age para promover a satisfação de seus interesses pessoais, mediante percepção (ilícita) de pecúnia, pode ser questionada sob o viés de sua constitucionalidade?

A resposta se situa na obra do professor Pedro Lenza, estudioso do Direito Constitucional que, provocado pela Ação Penal nº 470, cunhou um raciocínio teórico-discursivo muito pertinente acerca do controle de constitucionalidade dos atos legislativos, apresentando a Teoria do Vício de Decoro Parlamentar.

Como se sabe e se publicou em jornais, revistas etc., muito se falou em esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para votar de acordo com o governo ou em certo sentido. As CPIs vêm investigando e a Justiça apurando, e, uma vez provados os fatos, os culpados deverão sofrer as sanções de ordem criminal, administrativa, civil etc. O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade. Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, § 1.º, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”. [...] Em nosso entender, sem dúvida, trata-se de inconstitucionalidade, pois que maculada a essência do voto e o conceito de representatividade popular. (LENZA, 2011, p.129) (grifo do autor) 

Percebe-se que a teorização do aludido professor, baseia-se, precipuamente, no teor no §1º do art.55 da Constituição Brasileira de 1988, ipsis litteris :

Art.55 [...] §1º É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.

Com a lavratura do acórdão referente à Ação Penal nº 470, transcorrido o prazo para a apresentação dos recursos cabíveis, haverá o trânsito em julgado do decisum. Em caso de manutenção das condenações iniciar-se-á o cumprimento das penas pelos vinte e cinco réus condenados, dentre os quais quatro são deputados federais que se encontram em pleno gozo de suas funções políticas. Como prevê a legislação, a condenação implicará, além das penas de reclusão/detenção/multa, na perda do exercício do mandato eletivo, assim, num viés temporal, considerando-se a teoria de Lenza e a certeza da veracidade das ilicitudes perpetradas e provadas ao longo do processo, questiona-se a validade e a eficácia dos projetos de lei de interesse da cúpula do Poder Executivo (grande favorecida pela distribuição das “mesadas”) aprovados por força das intervenções dos réus condenados, reitera-se, a maioria, líderes de bancada em suas respectivas agremiações político-partidárias.

Pedro Lenza centra-se na questão das Emendas Constitucionais, porém, nada obsta a interpretação extensiva da teorização sub examine, assim, as demais espécies normativas apreciadas pela câmara no período de 2003-2007, quando o esquema de compra de apoio político apelidado de Mensalão vigorou a pleno vapor, incitam o devido questionamento concernente à sua constitucionalidade.

A Teoria do Vício de Decoro Parlamentar abre caminho para que os pretórios, desde que devidamente impulsionados, se manifestem acerca da coerência constitucional das leis cunhadas durante o supracitado período. O professor da Universidade de São Paulo elenca, em complemento ao que dispõe a doutrina clássica, uma terceira espécie de vício, passível de ensejar a inconstitucionalidade de uma norma. Se há o vício material e o formal, também há o vício de decoro parlamentar.

Soa evidente que os parlamentares condenados na Ação Penal nº 470 abusaram das prerrogativas inerentes a seus cargos e perceberam vantagens indevidas (§1º do art.55, CB/88). Posto que, etimologicamente, decoro significa “decência” (FERREIRA, 2001, p.221), probidade, lisura, conformidade com padrões éticos, morais e, sobretudo, jurídico-constitucionais, pode se dizer que os parlamentares condenados no processo do Mensalão são indecorosos de per si.

À luz do pensamento cunhado por Lenza (2011) as disposições legais aprovadas pelo parlamento, especificamente, pela Câmara dos Deputados, podem ser submetidas ao Controle de Constitucionalidade, direto ou incidental, pois, o vício evidenciado contraria tanto uma disposição constitucional específica (art.55, §1º, CF/88), quanto toda a essência do sistema constitucional.

Pragmaticamente, as polêmicas reformas tributária e previdenciária, se apresentam como motivações mais propícias ao questionamento de sua constitucionalidade. Em Minas Gerais, por meio do controle difuso, a Emenda Constitucional nº41 (Reforma Previdenciária) fora questionada e a sentença de primeiro grau, exarada pelo juiz federal Geraldo Claret de Arantes (2013, p.6), ao decidir pela declaração de inconstitucionalidade afirmara que:

A inconstitucionalidade advinda do vício de decoro resulta diretamente da mácula que teria envolvido o voto que constitui, em suma, o sagrado valor de representação popular conferida pelo povo que se faz assim representar pelo parlamentar corrompido, ferindo o que consta do artigo 1º, inciso I da Constituição Federal, que estabelece como ilar do Estado Democrático de Direito a soberania popular, neste caso, violada dramaticamente pela venda de votos no parlamento que a representaria.

Dessarte, como asseveram os estudiosos do Direito, a ciência jurídica é dinâmica, qual seja, deve manter um diálogo contínuo com a realidade social e se molda conforme os fatos que são expostos ao seu crivo.

A Teoria do Vício de Decoro Parlamentar é consequência científica do Mensalão, trata-se de uma interpretação constitucional referente aos desdobramentos políticos dos ilícitos praticados pelos representantes condenados, fundamentada na Lei Maior do Estado Democrático Brasileiro.

Por certo, dada a incipiência dos estudos voltados à aludida temática, as construções jurisprudenciais e científicas concernentes ao tema ainda levarão algum tempo para se consolidar. O próprio Supremo Tribunal Federal não tem um posicionamento definido sobre a questão, “Gilmar Mendes entendeu que a legalidade das reformas está mantida” (TERRA, 2013, p.1), ao passo que Lewandowski adverte o fato de a questão ser controvertida aludindo que a mesma “se revela muito problemática” (idem).

Portanto, demonstrada a existência e pertinência da Teoria do Vício de Decoro Parlamentar, problematização científica voltada à teleologia constitucional contrastada com a atuação criminosa de certos representantes políticos, devidamente condenados em devido processo legal-constitucional, caberá aos estudiosos do Direito, bem como aos demais cidadãos atentarem para os vindouros desdobramentos jurídico-políticos de sua aplicação, nunca perdendo de vista que, em se tratando da teoria em comento, é perceptível que sob o viés da racionalidade constitucional, trata-se de uma proposição muito condizente com o espírito da Constituição Brasileira, posto que, quaisquer lesões ao patrimônio jurídico individual ou coletivo, advindas de leis engendradas por parlamentares cooptados, infratores condenados que se valeram da coisa pública para a obtenção de benefícios particulares, devem ser coibidas.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Conforme se apurou no julgamento da Ação Penal nº 470, durante o primeiro mandato presidencial exercido pelo Partido dos Trabalhadores, uma organização criminosa composta por uma quantidade considerável de representantes políticos, assessorados por empresários, marqueteiros e diversos outros integrantes da administração pública operou no Congresso Brasileiro com a finalidade de comprar apoio político intentando a cooperação de determinados parlamentares na aprovação das propostas legislativas favoráveis aos desígnios da cúpula do Poder Executivo.

O popularmente denominado “Processo do Mensalão” atraiu demasiada atenção da mídia, tornando-se um dos assuntos mais explorados pelos veículos midiáticos, fator que contribuíra muitíssimo para despertar a curiosidade dos cidadãos no tocante aos temas relativos ao Estado.

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Toda a gama de condutas ilícitas praticadas pelos réus condenados, principalmente no que concerne aos que à época exerciam mandato eletivo de representação política, remete a uma análise conceitual dos aspectos essenciais do Estado Democrático de Direito Brasileiro, no qual predominam as práticas de democracia indireta para as quais a representação política é primordial. Dessa perquirição, surge a constatação de que, mais do que condutas tipificadas pela legislação penal, os parlamentares infratores cometeram notório atentado ao sistema constitucional vigente.

Nenhuma disposição normativa pode conflitar com o que prescreve a Constituição. Nesse sentido, a Supremacia da Magna Carta apresenta-se como o principal fundamento do Controle de Constitucionalidade, o qual permite que o Poder Judiciário atue como guardião da Lei Maior em exercício de salvaguarda dos prescritivos positivados pelo legislador constituinte.

 Em complemento à doutrina tradicional acerca da disciplina do Controle de Constitucionalidade, que preleciona dois vícios aptos a propiciar o debate acerca da constitucionalidade de determinado ato normativo (vício formal e vício material), surge a Teoria do Vício de Decoro Parlamentar, fundamentada pelo §1º do art.55 da Constituição Federal de 1988, que institui uma terceira categoria de vício.

Verificada a correlação existente entre a teoria citada e o julgamento da Ação Penal nº 470, tem-se que, a nova categoria de vício trazida pela teoria em comento seria passível de ensejo de Controle de Constitucionalidade, considerada a postura indecorosa dos representantes que no exercício de seu mister vilipendiaram o interesse público.

Em recente decisão proferida num mandado de segurança julgado na Primeira Vara da Fazenda e Autarquias de Belo Horizonte, o titular do juízo optou pela concessão da segurança pleiteada pela impetrante, citando a teoria do vício de decoro parlamentar na parte dispositiva da sentença.

 Portanto, no decorrer deste breve artigo foi possível constatar que o escândalo do Mensalão é um objeto de estudo que não se vincula tão somente à sua conotação penal, percebeu-se que os aspectos constitucionais correlatos às ações da organização criminosa julgadas pelo Supremo Tribunal Federal possuem a mesma relevância, sobretudo, por sinalizarem possíveis consequências políticas advindas das condutas criminosas que imiscuíram o processo legislativo constitucional ao tempo em que foram praticadas. Assim, conclui-se que conforme se verificou in concreto a Teoria do Vício de Decoro Parlamentar demonstra pertinência no raciocínio que prescreve para o pleito do Controle de Constitucionalidade dos Atos Legislativos, lesivos ao interesse público, praticados pelos representantes políticos condenados na Ação Penal nº 470.


REFERÊNCIAS 

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BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994.

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 4ºed. Ed. São Paulo: Atlas, 2011. 

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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: O minidicionário da língua portuguesa. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

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LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 26.ed. São Paulo: Atlas, 2011.

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Sobre o autor
Pedro Igor Papalino

www.ajpapalino.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAPALINO, Pedro Igor. Desdobramentos políticos-jurídicos do Mensalão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3998, 12 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28225. Acesso em: 22 dez. 2024.

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