Resumo: A discricionariedade administrativa é o espaço de decisão natural da Administração Pública, cuja vontade, se apoiada em critérios técnicos sustentáveis, deve prevalecer diante da vontade dos órgãos de controle, por respeito ao princípio constitucional da soberania popular.
Palavras-chave: discricionariedade. Critérios sustentáveis. Autocontentação judicial. Soberania popular.
A efetivação dos direitos sociais e econômicos, bem como dos direitos ligados ao progresso, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum dos povos – os direitos de segunda e terceira geração – muitas vezes enunciados de forma programática na Constituição Federal, passam por dificuldades porque a programação de políticas públicas e ações governamentais dependem de sua regulamentação.
No ambiente das escolhas dramáticas, onde são escassos os recursos orçamentários e muitas as necessidades, cabe aos representantes do povo escolher as prioridades para concretização, na maior medida possível, nas normas constitucionais.
Do problema da aplicabilidade e da eficácia dos direitos, há farta doutrina e jurisprudência. Mas, os direitos de segunda e terceira geração, que assim denomino apenas por razões didáticas, sem querer afirmar a superação de um grupo pelo outro, também são desafiados por um outro problema: quem irá efetivá-los?
A todo momento, a legislação se vale de conceitos jurídicos indeterminados, como “uso sustentável”, “meios de vida e cultura” e “espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais”, que dão ampla margem de decisão à Administração Pública, no que se chamou de discricionariedade administrativa.
É nesse espaço decisório onde se travam muitas disputas de poder sobre como dar efetividade a esses direitos. Mas, sob a Constituição da República, a discricionariedade é espaço precípuo para prevalência da soberania popular, por meio das formas legais como ela se expressa. Esse deve ser o norte para balizar a análise de uma decisão do Poder Executivo nessa esfera.
Com efeito, a Constituição de 1988, a discricionariedade sobrevive como um espaço de subdeterminação1. À medida que a Administração Pública edita regulamentos ou pratica atos materiais, como a publicação de um plano de manejo ou a concessão de uma autorização para realizar atividades numa unidade de conservação, concretiza, de forma paulatina e gradual, a sua vinculação à lei e à própria Constituição.
As unidades de conservação são um dos instrumentos de proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado previstos nos incisos do art. 225, §1º da CF. Preferi utilizá-las como exemplo porque a Lei nº 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, se vale de inúmeras cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que dá poderes ao gestores ambientais para escolher, antes de qualquer outro, as soluções que melhor realizem o direito a um meio ambiente saudável.
O Poder Executivo é quem decide primeiro e, se sua decisão foi sustentável, ainda que haja outras, é também ele quem dá a palavra final.
Para tanto, diante de conceitos abertos, o gestor ambiental deverá fazer suas escolhas, aferindo, por meios técnicos, conceitos objetivamente decifráveis, de modo a tornar sustentável a decisão do Poder Público. Por exemplo, num caso concreto envolvendo reservas extrativistas marinhas, se houver dúvida sobre a licitude da permissão da exploração do turismo náutico, é preciso investigar, de forma pública e fundamentada, se a atividade estará de acordo com uso sustentável da área e com a proteção dos meios de vida das populações tradicionais.
Assim, embora possam existir dois cenários sobre um mesmo caso, cabe apenas à Administração Pública a escolha sobre a saída que melhor se ajuste à proteção da unidade de conservação.
A esse respeito, são oportunas as palavras do Ministro Luiz Fux, que respeita a discricionariedade do gestor e aponta a Administração Pública como espaço onde serão debatidas as políticas públicas de cunho ambiental. Disse ele no seu voto na ADI nº 4029/DF: “não caberia a esta Corte discutir a implementação de políticas públicas, seja por não dispor de conhecimento necessário para o sucesso de um modelo de gestão ambiental, seja por não ser a sede idealizada pela Constituição para o debate em torno do assunto” (STF: ADI 4029/DF. Rel. Min. Luiz Fux,j. 08.03.2012, informativo nº 657).
Compete à Administração Pública a valoração dos conceitos jurídicos indeterminados da legislação ambiental, densificando os conceitos de prognose, que são aqueles “cujo preenchimento demanda uma avaliação de pessoas, coisas ou processos sociais, por intermédio de um juízo de aptidão”2, como exemplificados no art. 2º, XI c/c art. 15 da Lei do SNUC, a exemplo da “perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos” ou a “manutenção da biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável” etc.
Na sua decisão, o administrador público, mediante critérios técnicos sustentáveis, apontará a solução que, a seu entender, melhor se ajuste à proteção do meio ambiente. E, embora possam existem a solução A ou B, cabe apenas ao Poder Executivo a escolha.
Não se afasta o controle judicial sobre essas escolhas principalmente diante da garantia fundamental da inafastabilidade da Jurisdição (art. 5º, XXXV da CF). No entanto, nessa área específica, o Poder Judiciário não tem como substituir sua vontade, pela vontade do administrador, sob pena de violar a separação dos Poderes (art. 2º da CF). O Judiciário não deve controlar “se o resultado dessa operação foi correto, mas se o processo de tomada de decisão foi devidamente motivado e justificado, se todos os exames, laudos e pareceres foram elaborados com lisura, tornando-se sustentável”3.
É nesse sentido, os tribunais superiores, num exercício de autocontenção (self-restraint), têm se pronunciado:
STJ: “Descabe ao Poder Judiciário proceder à avaliação de questões de provas referentes a concurso público em substituição à banca examinadora. Outrossim, determinadas situações consolidadas pelo decurso do tempo devem ser respeitadas sob pena de causar à parte prejuízo excessivo, em desacordo com o art. 462 do CPC, impondo-se, desse modo, a aplicação da teoria do fato consumado nos casos em que não forem resultado de condutas antijurídicas premeditadas. Precedentes citados: AgRg no RMS 26.999-PR, DJe 23/3/2009; RMS 22.542-ES, DJe 8/6/2009; AgRg no REsp 1.042.678-SE, DJe 1º/7/2009; AgRg no REsp 1.049.131-MT, DJe 25/6/2009, e EDcl no REsp 675.026-PR, DJe 16/12/2008”.
(REsp 1.130.985-PR, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 17/12/2009).
Por tudo isso, a discricionariedade administrativa deve ser trabalhada como espaço onde prevalece a soberania popular. Não se trata de impor uma solução sobre a outra, exceto nos casos em que haja desvirtuamentos ou abusos. Mas, diante de critérios técnicos sustentáveis, ainda que possam existir outras saídas, deve prevalecer a decisão da Administração Pública, cujo programa de governo posto em prática por seus agentes foi escolhido, democraticamente, pela maioria. Cabe ao Poder Executivo, e apenas a ele, a implementação, dentro da legalidade, das políticas públicas.
Notas
1 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 198.
2 MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética, 2004, p. 77
3 KRELL, Andreas Joachim. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos juridicamente indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2004, p. 42