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O neoconstitucionalismo e a construção de um Direito Civil Constitucional

18/05/2014 às 12:22
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Com a Constituição de 1988, exsurge um direito civil renovado e compromissado mais com o homem e menos com o patrimônio, mais com o “ser” e menos com o “ter”, num processo de humanização que refletirá diretamente na propriedade, nos contratos e na família, vigas mestras da codificação privada.

Resumo: Ontem os Códigos; hoje as Constituições. Em substituição ao Direito Civil, é a Constituição quem figura hoje no epicentro do sistema jurídico. E esta mudança de paradigma não se faz sem que o modo de enxergar as relações privadas seja drasticamente alterado. Na dianteira desta revolução, o neoconstitucionalismo e todos os desdobramentos teóricos subjacentes à reaproximação recentemente havida entre Direito, Moral e Ética: supremacia da Constituição, revitalização dos princípios e valores, protagonismo judicial, preferência por uma justiça tópica. A reboque do neoconstitucionalismo, a compreensão da Constituição como norma que expande/irradia seus valores por todas as províncias do Direito, condicionando a atuação dos Poderes constituídos e a interpretação do direito ordinário. Já não se pode entender o Direito Civil dissociado da Constituição. Reorientado pelo superprincípio da dignidade da pessoa humana, exsurge um Direito Civil renovado e compromissado mais com o homem e menos com o patrimônio, mais com o ser em detrimento do ter, num processo de humanização que refletirá diretamente na propriedade, nos contratos e na família. Fala-se na personalização das relações privadas, com ênfase em valores existenciais e no reconhecimento de que o Direito Civil, ao exercer sua importante função regulatória do patrimônio, não pode descurar da figura do homem. É este necessário influxo dos valores constitucionais sobre o Direito quem dá a tônica e a importância da concepção civil-constitucional das relações inter privatos.

Palavras-chave: neoconstitucionalismo, constitucionalização do Direito, Direito Civil Constitucional.


INTRODUÇÃO

O Direito Civil passa por uma revolução. De tradição milenar, acostumou-se a emprestar boa parte de seus conceitos, institutos e princípios ao restante do ordenamento. Com a passagem da Constituição para o centro da maioria dos sistemas jurídicos democráticos, vê-se agora ombreado aos demais ramos do Direito e também deve obediência à Carta.

Naturalmente, este deslocamento – antes no centro, hoje na periferia do ordenamento – não se fez sem muita reflexão. E em meio à profusão de novas idéias e discursos jurídicos que marca o atual cenário, fala-se com avidez numa relação simbiótica entre os ícones das províncias jusprivatista e juspublicista – Direito Civil e Direito Constitucional, respectivamente – a dar origem a um Direito Civil Constitucional.

Diversas são as inquietações em torno deste híbrido. Sinteticamente, questiona-se a) de que modo pode ser conceituado; b) sobre o que pretende atuar; c) por que modo(s) atua e d) que contribuição pode dar à praxis jurídica – pois poucas coisas são mais inúteis e perniciosas que a teoria dissociada da prática.

Este o objetivo do presente trabalho: apreender a exata razão de ser do Direito Civil Constitucional.

Registre-se, para fins metodológicos, que o texto final é fruto de intensa pesquisa bibliográfica, bem como da análise de decisões judiciais dos Tribunais Superiores afetas à matéria de fundo.


O NEOCONSTITUCIONALISMO

O constitucionalismo liberal preocupava-se essencialmente em garantir um espaço de atuação individual perante o Estado. Eram tempos em que as declarações de direitos – limitadas às liberdades individuais –, a distribuição de competências e a separação de poderes ocupavam papel central.

Simbólico desta fase é o art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, a dizer expressamente que a sociedade que não garantia direitos e que não separava poderes não tinha uma Constituição (SANTOS, 2006).

Impotente diante da questão social que abalou o final do século XIX e o primeiro quartel do século XX, esta visão liberal deu lugar ao constitucionalismo social, segunda versão do pensamento constitucionalista.

Assim, à medida que a indiferença estatal era substituída pela prestação de serviços, questões existenciais antes deixadas à solução individual passam a ser assumidas pelo Estado.

Da Constituição de Weimar de 1919 às constituições europeias do pós-guerra, o constitucionalismo social transforma profundamente a relação entre Estado e sociedade. O catálogo de direitos fundamentais foi ampliado, abrangendo diversos direitos a prestações e à proteção da relação de trabalho. O Executivo assume, como provedor, um papel de destaque, pela necessidade de assegurar a governabilidade em um sistema que se legitima, fundamentalmente, por suas prestações sociais e pela necessidade de que o Estado se situe como eixo dos pactos sociais que efetuam entre si os partidos com os agentes econômicos e sociais (SANTOS, 2006, p. 48).

A adoção da jurisdição constitucional dá impulso ao processo de constitucionalização de todos os ramos do direito; as especificidades da hermenêutica constitucional e a força normativa da Constituição ganham reconhecimento; os direitos fundamentais são alçados à condição de epicentro axiológico do ordenamento; enfim, a Constituição passa a protagonizar os principais debates políticos.

Denomina-se neoconstitucionalismo essa postura constitucionalista forte, na qual a Constituição não se basta como parâmetro orientador da política, mas se pretende efetiva, com a fiscalização de uma jurisdição constitucional atuante e expansiva (SANTOS, 2006).

Os autores do neoconstitucionalismo não podem ser reunidos numa corrente unitária de pensamento. Como adverte Humberto Ávila (2008), a diversidade de concepções, elementos e perspectivas é tanta que torna inviável esboçar uma teoria única, havendo mesmo quem, como Paolo Comanducci, utilize a expressão no plural, referindo-se a “neoconstitucionalismos”.

Todavia, André Rufino do Vale (2006) entende possível identificar nestas teorias uma série de coincidências e tendências comuns que podem conformar uma nova cultura jurídica, um paradigma constitucionalista in statu nascendi - ou, em outros termos, o paradigma do Estado Constitucional de Direito.

Apontando algumas destas características, referido autor destaca a importância dada aos princípios e valores como componentes elementares dos sistemas jurídicos constitucionalizados; a ponderação como método de interpretação/aplicação dos princípios e de resolução dos conflitos entre valores e bens constitucionais; a compreensão da Constituição como norma que irradia efeitos por todo o ordenamento jurídico, condicionando toda a atividade jurídica e política dos poderes do Estado – e mesmo a dos particulares em suas relações privadas; o protagonismo dos juízes em relação ao legislador na tarefa de interpretar a Constituição; a aceitação de alguma conexão entre Direito e moral (VALE, 2006).

O professor Humberto Ávila (2008) acrescenta a este rol a prevalência de uma justiça tópica, particular, fundada em normas posteriores, individuais e concretas, em substituição àquela baseada em normas prévias, gerais e abstratas.

Enfim, princípios em vez de regras – ou mais princípios que regras; ponderação em vez de subsunção – ou mais ponderação que subsunção; Constituição em substituição à lei – ou maior, ou direta aplicação da Constituição em vez de lei; juízes em vez de legisladores – ou mais Poder Judiciário e menos Poderes Legislativo e Executivo; justiça particular em vez de justiça geral – ou mais análise individual e concreta que geral e abstrata (ÁVILA, 2008; VALE, 2006).


A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

Uma expressão, diversos significados.

A locução pode ser empregada para identificar o fenômeno pelo qual a Constituição incorpora formalmente a seu texto inúmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do Direito, “fenômeno iniciado, de certa forma, com a Constituição portuguesa de 1976, continuado pela Constituição espanhola de 1978 e levado ao extremo pela Constituição brasileira de 1988” (BARROSO, 2005, p. 41).

Em outro sentido, a expressão é associada a um efeito expansivo/irradiante das normas constitucionais – notadamente dos direitos fundamentais –, cujo conteúdo material e axiológico se espraia com força normativa por todo o ordenamento. “Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional” (BARROSO, 2005, p. 42), o que repercute tanto na atuação dos Poderes constituídos – especialmente nas suas relações com os indivíduos – quanto nas relações entre particulares.

Esta compreensão teve origem na Alemanha do pós-guerra.

Sob a égide da Lei Fundamental de 1949, o Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, além de terem uma dimensão subjetiva, desempenham também a função de instituir uma ordem objetiva de valores.

O caso Lüth (1958) consagrou a importância desta dimensão objetiva, compreensão que resulta do significado dos direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional (BARROSO, 2005; BRANCO, COELHO, MENDES, 2008). Sob esta ótica, os direitos fundamentais transcendem a perspectiva da garantia de posições individuais, incorporando o papel de normas que filtram os valores básicos da sociedade política, expandindo-os para todo o direito positivo – e formando, pois, a base do ordenamento jurídico de um Estado democrático.

A conseqüência é que o direito fundamental não é mais considerado exclusivamente sob a perspectiva individualista, mas, igualmente, o bem por ele tutelado é visto como um valor em si, a ser preservado e fomentado.

Interessa mais diretamente a este trabalho esta segunda concepção.

Uma vez assentado que o ordenamento deve proteger determinados direitos e valores não apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfação, chegou-se à idéia de que esta categoria de normas constitucionais [os direitos fundamentais] condiciona a interpretação de todos os ramos do Direito (BARROSO, 2005).

Esta tomada de consciência marca a passagem da Constituição – berço por excelência dos direitos fundamentais – para o centro do sistema jurídico.

A Constituição passa a ser encarada não apenas como um sistema em si, mas também como um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Esta filtragem constitucional consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados.

Assim é que, longe de significar apenas a inclusão do direito ordinário na Carta, a constitucionalização do direito importa sobretudo a releitura dos diversos ramos do direito à luz da Constituição.

Ou, para dizer de outro modo, não há – ou pelo menos não deve haver – norma infraconstitucional que não deva passar pelo crivo da Lei Maior, pelo que é lícito afirmar que toda interpretação jurídica é também uma interpretação constitucional.

Este o quadro em que se desenvolve a constitucionalização do Direito Civil.


A CONSTITUIÇÃO E O DIREITO CIVIL

LÔBBO (1999) destaca que o Direito Civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico, sempre foi identificado como o locus normativo privilegiado do indivíduo. Em contraposição à constituição política, “era cogitado como a constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal” (LÔBBO, 1999, p. 99), pelo que nenhum ramo do direito era mais distante do Direito Constitucional que ele.

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As relações entre os dois foram da absoluta indiferença à interação constate em pouco mais de dois séculos.

BARROSO (2005) identifica o marco inicial dessa trajetória na Revolução Francesa, que deu a cada um deles o seu objeto de trabalho: ao direito constitucional, uma Constituição escrita (1791); ao direito civil, o Código napoleônico (1804). Apesar da contemporaneidade dos dois documentos, “direito constitucional e direito civil não se integravam nem se comunicavam entre si” (BARROSO, 2005, p. 45).

É a fase em que o Direito Civil figura como reino da autonomia da vontade.

A superação do modelo liberal e o advento do Estado Social marcam o segundo momento desta evolução.

Cônscio das profundas desigualdades materiais havidas entre os indivíduos, o Direito Civil começa a superar o individualismo exacerbado. Em nome da solidariedade social e da função social da propriedade e do contrato, o Estado começa a interferir nas relações entre particulares visando, sobretudo, à tutela jurídica dos mais fracos.

Este processo de crescente intervenção estatal – verificado especialmente no âmbito legislativo – reduziu sensivelmente o espaço da autonomia privada e terminou por subtrair do Código Civil matérias inteiras, por vezes transformando-as em ramos jurídicos autônomos.

É a fase do dirigismo contratual, que consolida a publicização do direito privado – e que é ainda hoje uma realidade.

Em substituição ao Direito Civil, é a Constituição, hoje, quem confere unidade dogmática ao sistema e incorpora os valores dominantes, figurando no centro do ordenamento.

Para BARROSO (2005, p. 43), o que marca o estágio atual é justamente “a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde passa a atuar como o filtro axiológico pelo qual se deve ler o direito civil”.

Há regras positivadas impondo o fim da supremacia do marido no casamento, a plena igualdade entre os filhos, a função social do contrato e da propriedade; e há também princípios – igualdade, solidariedade social, razoabilidade/proporcionalidade e outros tantos – cuja força normativa se difunde por todo o ordenamento e condiciona a interpretação do direito ordinário.

O que se pretende então é “não apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos” (LÔBBO, 1999, p. 100).

Assim entendida, “a constitucionalização [...] oxigena o próprio direito civil, tornando-o mais flexível, mais vivo, menos formal, e coerente com o que de atual tem sido produzido na órbita do direito constitucional” (MAGALHÃES, 2006, p. 212).

Certo que o Direito Civil deve continuar sendo aquilo que sempre pretendeu ser – a regulação do patrimônio, porque inviável, senão verdadeiramente impossível a convivência social sem regras claras sobre tema tão explosivo –, o que se busca é um fundamento ético que possibilite esta regulamentação sem descurar do homem e de outros interesses seus que não os estritamente patrimoniais.

Já não se pode entender o direito civil em suas vigas fundamentais sem o necessário suporte lógico – e axiológico – do direito constitucional. “Um se prende ao outro como corpo e alma” (STOLZE, PAMPLONA, 2005, p. 54). E não é por outra razão que se diz em doutrina que “o direito privado passou a ser o direito constitucional aplicado, pois nele se detecta o projeto de vida em comum que a Constituição impõe” (LÔBBO, 1999, p. 100).


O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

O Código Civil de 1916 era egoísta, patriarcal e autoritário, refletindo, naturalmente, a sociedade do século XIX. Preocupava-se com o “ter” em detrimento do “ser”. Ignorava a dignidade humana. Não se compadecia com os sofrimentos do devedor. Esmagava o filho dito “bastardo”. Fazia-se de desentendido no que dizia com os direitos e litígios pela posse coletiva das terras. E o que é pior, imaginava que as partes de um contrato eram sempre iguais (LÔBBO, 1999; STOLZE, PAMPLONA, 2005).

Em sentido diametralmente oposto, a Constituição de 1988, na esteira do movimento de humanização do Direito que influenciou quase todos os ordenamentos ocidentais no pós-segunda guerra, consagrou em mais de uma oportunidade a dignidade do homem, a valorização social do trabalho, a igualdade substancial, a proteção dos filhos – todos, sem distinção –, a função social da propriedade e o exercício responsável da atividade econômica.

Longe de pretender ser apenas uma carta solene de boas intenções, passou a ser considerada um corpo normativo superior que deve ser observado nas relações jurídicas em geral, subordinando toda a legislação infraconstitucional.

O conflito axiológico era inevitável. E a promulgação de novo Código, embora tenha inegavelmente atenuado esta subversão com a adoção de diversas fórmulas humanizadoras, não foi capaz, para muitos, de alterar substancialmente este quadro – havendo mesmo quem diga em doutrina que referido Código já nasceu “velho”, “retrógrado” e “demagógico”.

Neste contexto de mudança de paradigmas, em que o eixo valorativo do direito civil se desloca do patrimônio para a pessoa, surgiu a necessidade de uma releitura que partisse da premissa de que a Constituição, como norma hierarquicamente superior, traz em seu bojo uma escala de valores que deve ser necessariamente observada por todo o ordenamento.

Porque é a Constituição – e não mais o Código Civil – quem exerce função unificadora do sistema; mais ainda, porque é a Carta Magna quem verdadeiramente funda o ordenamento jurídico, o que se tem é que a carga valorativa que dela emana passa a demarcar os limites da autonomia privada, da propriedade e da proteção da família.

O Direito Civil deixa de encontrar seu único fundamento no Código e na legislação ordinária. E é neste contexto que ganha corpo o Direito Civil Constitucional.

Inicialmente esta orientação doutrinária importava na mera consideração das relações de Direito Civil no núcleo da Constituição.

Em seu aspecto substancial, contudo, implica a própria reconstrução axiológica do direito privado em face dos valores constitucionais, na busca da realização dos direitos fundamentais e da concretização de um Estado Constitucional de Direito.

A expressão remonta ao trabalho pioneiro de Pietro Perlingieri; e na visão da professora Maiana Alves Pessoa, “quer elevar os direitos fundamentais da pessoa” (2007, não paginado).

Enfim, o que se pretende é “não apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos” (LÔBO, 1999, p. 99).

Flávio Tartuce (2007) entende-o como uma variação hermenêutica, uma mudança de atitude no ato de interpretar a lei civil em confronto com a Constituição:

Uma atitude bem pensada, diga-se de passagem, que tem contribuído para a evolução do pensamento privado, para a evolução dos civilistas contemporâneos. Essa inovação reside no fato de que há uma inversão da forma de interação dos dois ramos do direito – o público e o privado –, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em substituição do que se costumava fazer, isto é, exatamente o inverso (TARTUCE, 2007, p. 117).

Enfático, o professor Gustavo Tepedino (2004, p. 117) clama por uma “imprescindível e urgente releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição”; e assevera que “é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil” (2004, p.13).

Fala-se então na despatrimonialização/personalização/repersonalização (a depender do autor e da obra) das relações privadas. Busca-se um fundamento ético para que o Direito Civil continue a regular o patrimônio sem descurar do homem e de seus interesses não-patrimoniais.

Doutrina e jurisprudência já começaram a se dar conta do potencial deste novo Direito Civil.

Súmula do Superior Tribunal de Justiça – a de número 364, aprovada pela Corte Especial em outubro de 2008 – ampliou sobremaneira a proteção da Lei nº 8.009 de 1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família.

Chegavam àquele Tribunal decisões em que se afirmava que o conceito de família não alberga a situação de pessoa que mora sozinha; que família é um tipo de associação de pessoas; que não se concebe família de um só indivíduo; que a pessoa solteira não constituía entidade familiar, pelo que não se poderia falar na proteção da Lei nº 8.009/90, a qual, sendo exceção à regra comum da penhorabilidade dos bens do devedor, não deveria admitir interpretação extensiva.

Na origem de tal divergência estava o artigo 1º da sobredita Lei, a dizer singelamente que o imóvel residencial do próprio casal ou da entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses ali previstas.

Discordando deste entendimento, o ministro Humberto Gomes de Barros destacou no julgamento do REsp nº 450.989 que a impenhorabilidade do bem de família não visa apenas à proteção da entidade familiar, senão à do próprio direito a moradia que é inerente à pessoa humana.

É absolutamente manifesta neste julgado – já na ementa – a expansão do direito fundamental cravado no artigo 6º da Carta brasileira sobre a interpretação de uma lei cível, a possibilitar que um valor constitucionalmente protegido servisse de vetor hermenêutico à resolução de típica controvérsia inter privatos.

Observe-se que um mesmo artigo de lei dava margem a duas interpretações possíveis e igualmente razoáveis. O que o Superior Tribunal de Justiça fez foi encampar aquela que melhor realizava a vontade da Constituição, dentro da compreensão alhures exposta de que a Lei Maior, como norma que irradia efeitos por todo o ordenamento jurídico, necessariamente condiciona a compreensão do direito ordinário.

À luz desta hermenêutica concretizante, que em última análise busca a realização de importante direito social, “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas” – diz a redação dada à Súmula 364/STJ.

Outro exemplo desta evolução viu-se nos julgamentos que versavam sobre a prisão civil do depositário infiel.

É a própria Constituição quem admite essa modalidade de prisão como uma das duas exceções em que é possível a prisão por dívida no Brasil (artigo 5º, inciso LXVII). Contudo, o Supremo, revolucionando sua jurisprudência, adotou a tese da supralegalidade dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos – no caso, o Pacto de São José da Costa Rica, cuja incorporação pelo ordenamento teria o condão de paralisar a legislação ordinária com ele incompatível – para não mais admiti-la.

Disse o Ministro Cezar Peluso durante o julgamento dos Recursos Extraordinários nº 349.703 e nº 466.343 e do Habeas Corpus nº 87.585, em que se discutia a prisão civil de alienante fiduciário infiel, que a Constituição Federal não deve ter receio quanto aos direitos fundamentais.

Em suas palavras:

O corpo humano, em qualquer hipótese (de dívida) é o mesmo. O valor e a tutela jurídica que ele merece são os mesmos. A modalidade do depósito é irrelevante. A estratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humano é um retrocesso ao tempo em que o corpo humano era o 'corpus vilis' (corpo vil), sujeito a qualquer coisa (BRASIL. Supremo... 2008, não paginado).

É a dignidade da pessoa humana prevalecendo sobre a proteção do patrimônio.

Terreno igualmente fértil para a influência de valores constitucionais, a responsabilidade civil vem passando por verdadeira revolução.

Os próprios termos em que vazado o parágrafo único do artigo 927 do Novo Código Civil – pelo qual haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem – permitem que se vislumbre a adoção de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva a atuar como potencial porta de entrada de valores constitucionais.

Além disso, a extrema receptividade às normas de proteção à dignidade da pessoa facilita sobremaneira a interação com a Constituição.

Há grande potencial no diálogo com o Direito de Família, onde a responsabilidade civil começa a dar os primeiros passos.

Diz-se, por exemplo, que a violação do dever jurídico de fidelidade por um dos cônjuges pode gerar indenização por danos materiais e morais ao inocente; ou que a ruptura imotivada de um noivado às vésperas do casamento é igualmente passível de redundar neste dever de indenizar.

Mais recentemente, viu-se a 3ª Turma do STJ obrigar pai a indenizar filha em R$ 200 mil por abandono afetivo (REsp 1159242), tendo afirmado expressamente o Trinbunal a) que inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família; e b) que o cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.

Perceba-se que a embasar todas estas pretensões reparatórias está não apenas o Código Civil, mas a própria Constituição, por seu artigo 5º, inciso X.

Sem pretender esgotar aqui os exemplos, é possível vislumbrar uma concepção constitucional do Direito Civil também nos julgamentos do STF que reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo (ADI 4277; ADPF 132), a reforçar a percepção de que esta específica questão só pode ser devidamente equacionada quando entram em cena os valores hauridos da Constituição.

Dada a inexauribilidade dos valores constitucionais, não se sabe ao certo aonde é possível chegar. Já não se discute, porém, que há uma brutal mudança de paradigmas em curso a exigir a devida atenção do civilista.

Este o terreno arenoso – porém absolutamente promissor – em que se desenvolvem os estudos de Direito Civil Constitucional.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

É verdade que os aspectos da esfera privada que a Constituição se dispôs a regular compõem o objeto de estudo do Direito Civil Constitucional, como quer Nelson Nery Costa (2008).

Não menos verdade, contudo, é que a expressão também quer elevar os direitos fundamentais da pessoa, exatamente como entende a professora Maiana Alves Pessoa (2007).

Reorientado pela dignidade da pessoa humana e devidamente alinhado ao programa constitucional inaugurado em outubro de 1988, que pretende a construção de uma sociedade justa e solidária, exsurge um direito civil renovado e compromissado mais com o homem e menos com o patrimônio, mais com o “ser” e menos com o “ter”, num processo de humanização que refletirá diretamente na propriedade, nos contratos e na família, vigas mestras da codificação privada.

Por uma opção política, vários destes institutos foram diretamente dispostos na Constituição, o que lhes conferiu uma maior estabilidade.

O que a Carta não disciplinou, contudo, recebe o necessário influxo da dignidade da pessoa humana pela via da interpretação civil-constitucional.

Certo que o compromisso maior do direito contemporâneo é com os princípios fundamentais, não é exagero dizer que “é imprescindível e urgente uma releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição” (TEPEDINO, 2004, p.117).

Assim, “é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil” (TEPEDINO, 2004, p. 13).

Presencia-se a estruturação exegética de um direito civil mais humano, centrado nos direitos fundamentais e na proteção de valores outros que não os eminentemente patrimoniais; que valoriza o “nós” em detrimento do “eu” mesmo naqueles casos em que a ordem constitucional preferiu não interferir diretamente, realizando o compromisso constitucional por meio de uma hermenêutica que coloca a dignidade da pessoal no papel de epicentro axiológico do ordenamento.

O paradigma do Estado Constitucional de Direito chega enfim ao Direito Civil.


BIBLIOGRAFIA

ÁVILA. Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência”. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte, n. 23, p. 9-30, out./dez. 2008.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 240, p. 1-42, abr./jun. 2005.

BRANCO, Paulo G. Gonet. COELHO, Inocêncio Mártires. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias do STF, Brasília, 09 dez. 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 mar. 2009.

COSTA, Nelson Nery. Direito civil constitucional. São Paulo: Forense, 2007.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 141, p. 100-109, jan./mar. 1999.

MAGALHÃES, Joseli Lima. Da recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Lumen Juris, 2006.

PESSOA, Maiana Alves. Direito Civil Constitucional. Disponível em <www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/civil/direito-civil-constitucional-maiana-alves.pdf> Acesso em: 18 dez. 2007.

SANTOS, Gustavo Ferreira. Neoconstitucionalismo e democracia. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 172, p. 45-55, out./dez. 2006.

STOLZE, Pablo. PAMPLONA, Rodolfo. Novo curso de direito civil, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil, parte geral. 3. ed. São Paulo: Método, 2007.

TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

VALE, André Rufino do. Aspectos do Neoconstitucionalismo. Direito Público. Brasília, n. 14, p. 136-147, nov./dez. 2006.

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Sobre o autor
Victor Emmanuel Cordeiro Lima

Procurador do Estado do Piauí. Advogado. Professor de Direito Constitucional e de Direito Processual do Trabalho da Faculdade Maurício de Nassau.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Victor Emmanuel Cordeiro. O neoconstitucionalismo e a construção de um Direito Civil Constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3973, 18 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28544. Acesso em: 16 abr. 2024.

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