Resumo: Ontem os Códigos; hoje as Constituições. Em substituição ao Direito Civil, é a Constituição quem figura hoje no epicentro do sistema jurídico. E esta mudança de paradigma não se faz sem que o modo de enxergar as relações privadas seja drasticamente alterado. Na dianteira desta revolução, o neoconstitucionalismo e todos os desdobramentos teóricos subjacentes à reaproximação recentemente havida entre Direito, Moral e Ética: supremacia da Constituição, revitalização dos princípios e valores, protagonismo judicial, preferência por uma justiça tópica. A reboque do neoconstitucionalismo, a compreensão da Constituição como norma que expande/irradia seus valores por todas as províncias do Direito, condicionando a atuação dos Poderes constituídos e a interpretação do direito ordinário. Já não se pode entender o Direito Civil dissociado da Constituição. Reorientado pelo superprincípio da dignidade da pessoa humana, exsurge um Direito Civil renovado e compromissado mais com o homem e menos com o patrimônio, mais com o ser em detrimento do ter, num processo de humanização que refletirá diretamente na propriedade, nos contratos e na família. Fala-se na personalização das relações privadas, com ênfase em valores existenciais e no reconhecimento de que o Direito Civil, ao exercer sua importante função regulatória do patrimônio, não pode descurar da figura do homem. É este necessário influxo dos valores constitucionais sobre o Direito quem dá a tônica e a importância da concepção civil-constitucional das relações inter privatos.
Palavras-chave: neoconstitucionalismo, constitucionalização do Direito, Direito Civil Constitucional.
INTRODUÇÃO
O Direito Civil passa por uma revolução. De tradição milenar, acostumou-se a emprestar boa parte de seus conceitos, institutos e princípios ao restante do ordenamento. Com a passagem da Constituição para o centro da maioria dos sistemas jurídicos democráticos, vê-se agora ombreado aos demais ramos do Direito e também deve obediência à Carta.
Naturalmente, este deslocamento – antes no centro, hoje na periferia do ordenamento – não se fez sem muita reflexão. E em meio à profusão de novas idéias e discursos jurídicos que marca o atual cenário, fala-se com avidez numa relação simbiótica entre os ícones das províncias jusprivatista e juspublicista – Direito Civil e Direito Constitucional, respectivamente – a dar origem a um Direito Civil Constitucional.
Diversas são as inquietações em torno deste híbrido. Sinteticamente, questiona-se a) de que modo pode ser conceituado; b) sobre o que pretende atuar; c) por que modo(s) atua e d) que contribuição pode dar à praxis jurídica – pois poucas coisas são mais inúteis e perniciosas que a teoria dissociada da prática.
Este o objetivo do presente trabalho: apreender a exata razão de ser do Direito Civil Constitucional.
Registre-se, para fins metodológicos, que o texto final é fruto de intensa pesquisa bibliográfica, bem como da análise de decisões judiciais dos Tribunais Superiores afetas à matéria de fundo.
O NEOCONSTITUCIONALISMO
O constitucionalismo liberal preocupava-se essencialmente em garantir um espaço de atuação individual perante o Estado. Eram tempos em que as declarações de direitos – limitadas às liberdades individuais –, a distribuição de competências e a separação de poderes ocupavam papel central.
Simbólico desta fase é o art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, a dizer expressamente que a sociedade que não garantia direitos e que não separava poderes não tinha uma Constituição (SANTOS, 2006).
Impotente diante da questão social que abalou o final do século XIX e o primeiro quartel do século XX, esta visão liberal deu lugar ao constitucionalismo social, segunda versão do pensamento constitucionalista.
Assim, à medida que a indiferença estatal era substituída pela prestação de serviços, questões existenciais antes deixadas à solução individual passam a ser assumidas pelo Estado.
Da Constituição de Weimar de 1919 às constituições europeias do pós-guerra, o constitucionalismo social transforma profundamente a relação entre Estado e sociedade. O catálogo de direitos fundamentais foi ampliado, abrangendo diversos direitos a prestações e à proteção da relação de trabalho. O Executivo assume, como provedor, um papel de destaque, pela necessidade de assegurar a governabilidade em um sistema que se legitima, fundamentalmente, por suas prestações sociais e pela necessidade de que o Estado se situe como eixo dos pactos sociais que efetuam entre si os partidos com os agentes econômicos e sociais (SANTOS, 2006, p. 48).
A adoção da jurisdição constitucional dá impulso ao processo de constitucionalização de todos os ramos do direito; as especificidades da hermenêutica constitucional e a força normativa da Constituição ganham reconhecimento; os direitos fundamentais são alçados à condição de epicentro axiológico do ordenamento; enfim, a Constituição passa a protagonizar os principais debates políticos.
Denomina-se neoconstitucionalismo essa postura constitucionalista forte, na qual a Constituição não se basta como parâmetro orientador da política, mas se pretende efetiva, com a fiscalização de uma jurisdição constitucional atuante e expansiva (SANTOS, 2006).
Os autores do neoconstitucionalismo não podem ser reunidos numa corrente unitária de pensamento. Como adverte Humberto Ávila (2008), a diversidade de concepções, elementos e perspectivas é tanta que torna inviável esboçar uma teoria única, havendo mesmo quem, como Paolo Comanducci, utilize a expressão no plural, referindo-se a “neoconstitucionalismos”.
Todavia, André Rufino do Vale (2006) entende possível identificar nestas teorias uma série de coincidências e tendências comuns que podem conformar uma nova cultura jurídica, um paradigma constitucionalista in statu nascendi - ou, em outros termos, o paradigma do Estado Constitucional de Direito.
Apontando algumas destas características, referido autor destaca a importância dada aos princípios e valores como componentes elementares dos sistemas jurídicos constitucionalizados; a ponderação como método de interpretação/aplicação dos princípios e de resolução dos conflitos entre valores e bens constitucionais; a compreensão da Constituição como norma que irradia efeitos por todo o ordenamento jurídico, condicionando toda a atividade jurídica e política dos poderes do Estado – e mesmo a dos particulares em suas relações privadas; o protagonismo dos juízes em relação ao legislador na tarefa de interpretar a Constituição; a aceitação de alguma conexão entre Direito e moral (VALE, 2006).
O professor Humberto Ávila (2008) acrescenta a este rol a prevalência de uma justiça tópica, particular, fundada em normas posteriores, individuais e concretas, em substituição àquela baseada em normas prévias, gerais e abstratas.
Enfim, princípios em vez de regras – ou mais princípios que regras; ponderação em vez de subsunção – ou mais ponderação que subsunção; Constituição em substituição à lei – ou maior, ou direta aplicação da Constituição em vez de lei; juízes em vez de legisladores – ou mais Poder Judiciário e menos Poderes Legislativo e Executivo; justiça particular em vez de justiça geral – ou mais análise individual e concreta que geral e abstrata (ÁVILA, 2008; VALE, 2006).
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
Uma expressão, diversos significados.
A locução pode ser empregada para identificar o fenômeno pelo qual a Constituição incorpora formalmente a seu texto inúmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do Direito, “fenômeno iniciado, de certa forma, com a Constituição portuguesa de 1976, continuado pela Constituição espanhola de 1978 e levado ao extremo pela Constituição brasileira de 1988” (BARROSO, 2005, p. 41).
Em outro sentido, a expressão é associada a um efeito expansivo/irradiante das normas constitucionais – notadamente dos direitos fundamentais –, cujo conteúdo material e axiológico se espraia com força normativa por todo o ordenamento. “Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional” (BARROSO, 2005, p. 42), o que repercute tanto na atuação dos Poderes constituídos – especialmente nas suas relações com os indivíduos – quanto nas relações entre particulares.
Esta compreensão teve origem na Alemanha do pós-guerra.
Sob a égide da Lei Fundamental de 1949, o Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, além de terem uma dimensão subjetiva, desempenham também a função de instituir uma ordem objetiva de valores.
O caso Lüth (1958) consagrou a importância desta dimensão objetiva, compreensão que resulta do significado dos direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional (BARROSO, 2005; BRANCO, COELHO, MENDES, 2008). Sob esta ótica, os direitos fundamentais transcendem a perspectiva da garantia de posições individuais, incorporando o papel de normas que filtram os valores básicos da sociedade política, expandindo-os para todo o direito positivo – e formando, pois, a base do ordenamento jurídico de um Estado democrático.
A conseqüência é que o direito fundamental não é mais considerado exclusivamente sob a perspectiva individualista, mas, igualmente, o bem por ele tutelado é visto como um valor em si, a ser preservado e fomentado.
Interessa mais diretamente a este trabalho esta segunda concepção.
Uma vez assentado que o ordenamento deve proteger determinados direitos e valores não apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfação, chegou-se à idéia de que esta categoria de normas constitucionais [os direitos fundamentais] condiciona a interpretação de todos os ramos do Direito (BARROSO, 2005).
Esta tomada de consciência marca a passagem da Constituição – berço por excelência dos direitos fundamentais – para o centro do sistema jurídico.
A Constituição passa a ser encarada não apenas como um sistema em si, mas também como um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Esta filtragem constitucional consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados.
Assim é que, longe de significar apenas a inclusão do direito ordinário na Carta, a constitucionalização do direito importa sobretudo a releitura dos diversos ramos do direito à luz da Constituição.
Ou, para dizer de outro modo, não há – ou pelo menos não deve haver – norma infraconstitucional que não deva passar pelo crivo da Lei Maior, pelo que é lícito afirmar que toda interpretação jurídica é também uma interpretação constitucional.
Este o quadro em que se desenvolve a constitucionalização do Direito Civil.
A CONSTITUIÇÃO E O DIREITO CIVIL
LÔBBO (1999) destaca que o Direito Civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico, sempre foi identificado como o locus normativo privilegiado do indivíduo. Em contraposição à constituição política, “era cogitado como a constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal” (LÔBBO, 1999, p. 99), pelo que nenhum ramo do direito era mais distante do Direito Constitucional que ele.
As relações entre os dois foram da absoluta indiferença à interação constate em pouco mais de dois séculos.
BARROSO (2005) identifica o marco inicial dessa trajetória na Revolução Francesa, que deu a cada um deles o seu objeto de trabalho: ao direito constitucional, uma Constituição escrita (1791); ao direito civil, o Código napoleônico (1804). Apesar da contemporaneidade dos dois documentos, “direito constitucional e direito civil não se integravam nem se comunicavam entre si” (BARROSO, 2005, p. 45).
É a fase em que o Direito Civil figura como reino da autonomia da vontade.
A superação do modelo liberal e o advento do Estado Social marcam o segundo momento desta evolução.
Cônscio das profundas desigualdades materiais havidas entre os indivíduos, o Direito Civil começa a superar o individualismo exacerbado. Em nome da solidariedade social e da função social da propriedade e do contrato, o Estado começa a interferir nas relações entre particulares visando, sobretudo, à tutela jurídica dos mais fracos.
Este processo de crescente intervenção estatal – verificado especialmente no âmbito legislativo – reduziu sensivelmente o espaço da autonomia privada e terminou por subtrair do Código Civil matérias inteiras, por vezes transformando-as em ramos jurídicos autônomos.
É a fase do dirigismo contratual, que consolida a publicização do direito privado – e que é ainda hoje uma realidade.
Em substituição ao Direito Civil, é a Constituição, hoje, quem confere unidade dogmática ao sistema e incorpora os valores dominantes, figurando no centro do ordenamento.
Para BARROSO (2005, p. 43), o que marca o estágio atual é justamente “a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde passa a atuar como o filtro axiológico pelo qual se deve ler o direito civil”.
Há regras positivadas impondo o fim da supremacia do marido no casamento, a plena igualdade entre os filhos, a função social do contrato e da propriedade; e há também princípios – igualdade, solidariedade social, razoabilidade/proporcionalidade e outros tantos – cuja força normativa se difunde por todo o ordenamento e condiciona a interpretação do direito ordinário.
O que se pretende então é “não apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos” (LÔBBO, 1999, p. 100).
Assim entendida, “a constitucionalização [...] oxigena o próprio direito civil, tornando-o mais flexível, mais vivo, menos formal, e coerente com o que de atual tem sido produzido na órbita do direito constitucional” (MAGALHÃES, 2006, p. 212).
Certo que o Direito Civil deve continuar sendo aquilo que sempre pretendeu ser – a regulação do patrimônio, porque inviável, senão verdadeiramente impossível a convivência social sem regras claras sobre tema tão explosivo –, o que se busca é um fundamento ético que possibilite esta regulamentação sem descurar do homem e de outros interesses seus que não os estritamente patrimoniais.
Já não se pode entender o direito civil em suas vigas fundamentais sem o necessário suporte lógico – e axiológico – do direito constitucional. “Um se prende ao outro como corpo e alma” (STOLZE, PAMPLONA, 2005, p. 54). E não é por outra razão que se diz em doutrina que “o direito privado passou a ser o direito constitucional aplicado, pois nele se detecta o projeto de vida em comum que a Constituição impõe” (LÔBBO, 1999, p. 100).
O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
O Código Civil de 1916 era egoísta, patriarcal e autoritário, refletindo, naturalmente, a sociedade do século XIX. Preocupava-se com o “ter” em detrimento do “ser”. Ignorava a dignidade humana. Não se compadecia com os sofrimentos do devedor. Esmagava o filho dito “bastardo”. Fazia-se de desentendido no que dizia com os direitos e litígios pela posse coletiva das terras. E o que é pior, imaginava que as partes de um contrato eram sempre iguais (LÔBBO, 1999; STOLZE, PAMPLONA, 2005).
Em sentido diametralmente oposto, a Constituição de 1988, na esteira do movimento de humanização do Direito que influenciou quase todos os ordenamentos ocidentais no pós-segunda guerra, consagrou em mais de uma oportunidade a dignidade do homem, a valorização social do trabalho, a igualdade substancial, a proteção dos filhos – todos, sem distinção –, a função social da propriedade e o exercício responsável da atividade econômica.
Longe de pretender ser apenas uma carta solene de boas intenções, passou a ser considerada um corpo normativo superior que deve ser observado nas relações jurídicas em geral, subordinando toda a legislação infraconstitucional.
O conflito axiológico era inevitável. E a promulgação de novo Código, embora tenha inegavelmente atenuado esta subversão com a adoção de diversas fórmulas humanizadoras, não foi capaz, para muitos, de alterar substancialmente este quadro – havendo mesmo quem diga em doutrina que referido Código já nasceu “velho”, “retrógrado” e “demagógico”.
Neste contexto de mudança de paradigmas, em que o eixo valorativo do direito civil se desloca do patrimônio para a pessoa, surgiu a necessidade de uma releitura que partisse da premissa de que a Constituição, como norma hierarquicamente superior, traz em seu bojo uma escala de valores que deve ser necessariamente observada por todo o ordenamento.
Porque é a Constituição – e não mais o Código Civil – quem exerce função unificadora do sistema; mais ainda, porque é a Carta Magna quem verdadeiramente funda o ordenamento jurídico, o que se tem é que a carga valorativa que dela emana passa a demarcar os limites da autonomia privada, da propriedade e da proteção da família.
O Direito Civil deixa de encontrar seu único fundamento no Código e na legislação ordinária. E é neste contexto que ganha corpo o Direito Civil Constitucional.
Inicialmente esta orientação doutrinária importava na mera consideração das relações de Direito Civil no núcleo da Constituição.
Em seu aspecto substancial, contudo, implica a própria reconstrução axiológica do direito privado em face dos valores constitucionais, na busca da realização dos direitos fundamentais e da concretização de um Estado Constitucional de Direito.
A expressão remonta ao trabalho pioneiro de Pietro Perlingieri; e na visão da professora Maiana Alves Pessoa, “quer elevar os direitos fundamentais da pessoa” (2007, não paginado).
Enfim, o que se pretende é “não apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos” (LÔBO, 1999, p. 99).
Flávio Tartuce (2007) entende-o como uma variação hermenêutica, uma mudança de atitude no ato de interpretar a lei civil em confronto com a Constituição:
Uma atitude bem pensada, diga-se de passagem, que tem contribuído para a evolução do pensamento privado, para a evolução dos civilistas contemporâneos. Essa inovação reside no fato de que há uma inversão da forma de interação dos dois ramos do direito – o público e o privado –, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em substituição do que se costumava fazer, isto é, exatamente o inverso (TARTUCE, 2007, p. 117).
Enfático, o professor Gustavo Tepedino (2004, p. 117) clama por uma “imprescindível e urgente releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição”; e assevera que “é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil” (2004, p.13).
Fala-se então na despatrimonialização/personalização/repersonalização (a depender do autor e da obra) das relações privadas. Busca-se um fundamento ético para que o Direito Civil continue a regular o patrimônio sem descurar do homem e de seus interesses não-patrimoniais.
Doutrina e jurisprudência já começaram a se dar conta do potencial deste novo Direito Civil.
Súmula do Superior Tribunal de Justiça – a de número 364, aprovada pela Corte Especial em outubro de 2008 – ampliou sobremaneira a proteção da Lei nº 8.009 de 1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família.
Chegavam àquele Tribunal decisões em que se afirmava que o conceito de família não alberga a situação de pessoa que mora sozinha; que família é um tipo de associação de pessoas; que não se concebe família de um só indivíduo; que a pessoa solteira não constituía entidade familiar, pelo que não se poderia falar na proteção da Lei nº 8.009/90, a qual, sendo exceção à regra comum da penhorabilidade dos bens do devedor, não deveria admitir interpretação extensiva.
Na origem de tal divergência estava o artigo 1º da sobredita Lei, a dizer singelamente que o imóvel residencial do próprio casal ou da entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses ali previstas.
Discordando deste entendimento, o ministro Humberto Gomes de Barros destacou no julgamento do REsp nº 450.989 que a impenhorabilidade do bem de família não visa apenas à proteção da entidade familiar, senão à do próprio direito a moradia que é inerente à pessoa humana.
É absolutamente manifesta neste julgado – já na ementa – a expansão do direito fundamental cravado no artigo 6º da Carta brasileira sobre a interpretação de uma lei cível, a possibilitar que um valor constitucionalmente protegido servisse de vetor hermenêutico à resolução de típica controvérsia inter privatos.
Observe-se que um mesmo artigo de lei dava margem a duas interpretações possíveis e igualmente razoáveis. O que o Superior Tribunal de Justiça fez foi encampar aquela que melhor realizava a vontade da Constituição, dentro da compreensão alhures exposta de que a Lei Maior, como norma que irradia efeitos por todo o ordenamento jurídico, necessariamente condiciona a compreensão do direito ordinário.
À luz desta hermenêutica concretizante, que em última análise busca a realização de importante direito social, “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas” – diz a redação dada à Súmula 364/STJ.
Outro exemplo desta evolução viu-se nos julgamentos que versavam sobre a prisão civil do depositário infiel.
É a própria Constituição quem admite essa modalidade de prisão como uma das duas exceções em que é possível a prisão por dívida no Brasil (artigo 5º, inciso LXVII). Contudo, o Supremo, revolucionando sua jurisprudência, adotou a tese da supralegalidade dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos – no caso, o Pacto de São José da Costa Rica, cuja incorporação pelo ordenamento teria o condão de paralisar a legislação ordinária com ele incompatível – para não mais admiti-la.
Disse o Ministro Cezar Peluso durante o julgamento dos Recursos Extraordinários nº 349.703 e nº 466.343 e do Habeas Corpus nº 87.585, em que se discutia a prisão civil de alienante fiduciário infiel, que a Constituição Federal não deve ter receio quanto aos direitos fundamentais.
Em suas palavras:
O corpo humano, em qualquer hipótese (de dívida) é o mesmo. O valor e a tutela jurídica que ele merece são os mesmos. A modalidade do depósito é irrelevante. A estratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humano é um retrocesso ao tempo em que o corpo humano era o 'corpus vilis' (corpo vil), sujeito a qualquer coisa (BRASIL. Supremo... 2008, não paginado).
É a dignidade da pessoa humana prevalecendo sobre a proteção do patrimônio.
Terreno igualmente fértil para a influência de valores constitucionais, a responsabilidade civil vem passando por verdadeira revolução.
Os próprios termos em que vazado o parágrafo único do artigo 927 do Novo Código Civil – pelo qual haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem – permitem que se vislumbre a adoção de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva a atuar como potencial porta de entrada de valores constitucionais.
Além disso, a extrema receptividade às normas de proteção à dignidade da pessoa facilita sobremaneira a interação com a Constituição.
Há grande potencial no diálogo com o Direito de Família, onde a responsabilidade civil começa a dar os primeiros passos.
Diz-se, por exemplo, que a violação do dever jurídico de fidelidade por um dos cônjuges pode gerar indenização por danos materiais e morais ao inocente; ou que a ruptura imotivada de um noivado às vésperas do casamento é igualmente passível de redundar neste dever de indenizar.
Mais recentemente, viu-se a 3ª Turma do STJ obrigar pai a indenizar filha em R$ 200 mil por abandono afetivo (REsp 1159242), tendo afirmado expressamente o Trinbunal a) que inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família; e b) que o cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
Perceba-se que a embasar todas estas pretensões reparatórias está não apenas o Código Civil, mas a própria Constituição, por seu artigo 5º, inciso X.
Sem pretender esgotar aqui os exemplos, é possível vislumbrar uma concepção constitucional do Direito Civil também nos julgamentos do STF que reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo (ADI 4277; ADPF 132), a reforçar a percepção de que esta específica questão só pode ser devidamente equacionada quando entram em cena os valores hauridos da Constituição.
Dada a inexauribilidade dos valores constitucionais, não se sabe ao certo aonde é possível chegar. Já não se discute, porém, que há uma brutal mudança de paradigmas em curso a exigir a devida atenção do civilista.
Este o terreno arenoso – porém absolutamente promissor – em que se desenvolvem os estudos de Direito Civil Constitucional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É verdade que os aspectos da esfera privada que a Constituição se dispôs a regular compõem o objeto de estudo do Direito Civil Constitucional, como quer Nelson Nery Costa (2008).
Não menos verdade, contudo, é que a expressão também quer elevar os direitos fundamentais da pessoa, exatamente como entende a professora Maiana Alves Pessoa (2007).
Reorientado pela dignidade da pessoa humana e devidamente alinhado ao programa constitucional inaugurado em outubro de 1988, que pretende a construção de uma sociedade justa e solidária, exsurge um direito civil renovado e compromissado mais com o homem e menos com o patrimônio, mais com o “ser” e menos com o “ter”, num processo de humanização que refletirá diretamente na propriedade, nos contratos e na família, vigas mestras da codificação privada.
Por uma opção política, vários destes institutos foram diretamente dispostos na Constituição, o que lhes conferiu uma maior estabilidade.
O que a Carta não disciplinou, contudo, recebe o necessário influxo da dignidade da pessoa humana pela via da interpretação civil-constitucional.
Certo que o compromisso maior do direito contemporâneo é com os princípios fundamentais, não é exagero dizer que “é imprescindível e urgente uma releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição” (TEPEDINO, 2004, p.117).
Assim, “é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil” (TEPEDINO, 2004, p. 13).
Presencia-se a estruturação exegética de um direito civil mais humano, centrado nos direitos fundamentais e na proteção de valores outros que não os eminentemente patrimoniais; que valoriza o “nós” em detrimento do “eu” mesmo naqueles casos em que a ordem constitucional preferiu não interferir diretamente, realizando o compromisso constitucional por meio de uma hermenêutica que coloca a dignidade da pessoal no papel de epicentro axiológico do ordenamento.
O paradigma do Estado Constitucional de Direito chega enfim ao Direito Civil.
BIBLIOGRAFIA
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