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A participação do administrado como limite à discricionariedade das agências reguladoras

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08/07/2014 às 13:13
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III – A discricionariedade administrativa

Pelo quanto analisado até agora no presente estudo, tem-se que a previsão normativa abstrata quanto à possibilidade de participação popular, no Brasil, é ampla e bastante diversificada, apresentando diversos dispositivos que consagram a participação popular na Administração Pública e, em especial, nas agências reguladoras.

Como dito alhures, a existência de dispositivos legais que contemplam tal participação não faz com que se possa afirmar que o Brasil possui cidadãos capacitados para o exercício pleno de seus direitos no tocante à participação popular nos assim chamados “assuntos de Estado”.

Entretanto, as leis que regem as agências reguladoras e, em especial, a Lei Geral de Telecomunicações, possuem dispositivos que condicionam a validade da regulação efetuada pelas agências à participação popular através do dever de submeter as minutas de seus atos normativos ao crivo da participação através da realização de consultas públicas (art. 42, da Lei 9.472/97).

A doutrina é pacífica quanto à necessidade de participação popular para a edição de atos normativos pelas agências reguladoras. Entretanto, quanto ao alcance da regulação efetuada pelas agências, a doutrina não é tão unânime, havendo doutrinadores que dão maior ou menor extensão ao poder normativo dessas autarquias. Para este trabalho, adota-se o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello segundo o qual as agências reguladoras não podem, ao editar atos normativos, exceder ou distorcer os limites impostos pela lei, tendo de respeitar os princípios jurídicos, não podendo inovar originariamente na ordem jurídica, papel este constitucionalmente atribuído e reservado ao Poder Legislativo.

Assim, para evolução do presente estudo faz-se necessário aclarar que as agências reguladoras apenas podem emitir seus atos normativos quando assim estiverem autorizadas por lei.[33]

Sob influência do positivismo jurídico, o princípio da legalidade a que se submete a Administração Pública passou a ser visto de forma diversa. Enquanto no Estado de Direito Liberal se reconhecia à Administração ampla discricionariedade no espaço livre deixado pela lei, significando que ela pode fazer tudo o que a lei não proíbe, no Estado de Direito social a vinculação à lei passou a abranger toda a atividade administrativa; o princípio da legalidade ganhou sentido novo, significando que a Administração só pode fazer o que a lei permite.[34]

Logo, diante da existência de uma competência discricionária assinalada pela lei, as agências reguladoras poderão normatizar os aspectos estritamente técnicos, nunca é de mais lembrar, da esfera estrita de sua atuação.

Antes de se adentrar no tema da limitação da discricionariedade das agências pelo exercício de suas competências discricionárias e pela participação popular, há que se analisar de forma sucinta quais são os fundamentos da discricionariedade, seu conceito e sua diferenciação da vinculação, bem como as teorias acerca dos conceitos jurídicos indeterminados e o questionamento se o seu uso pela norma gera discricionariedade e a estrutura lógico-normativa da discricionariedade.

Inicialmente, há que se ressaltar que para justificar a existência de competências discricionárias na legislação a doutrina, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, utiliza-se de dois critérios: um jurídico e outro prático.

Sob o ponto de vista jurídico, utiliza-se a teoria da formação do Direito por degraus, de Kelsen: considerando-se os vários graus pelos quais se expressa o Direito, a cada ato acrescenta-se um elemento novo não previsto no anterior; esse acréscimo se faz com o uso da discricionariedade; esta existe para tornar possível esse acréscimo.

Se formos considerar a situação vigente no direito brasileiro, constataremos que, a partir da norma de grau superior – a Constituição -, outras vão sendo editadas, como leis e regulamentos, até chegar-se ao ato final de aplicação ao caso concreto. Em cada um desses degraus, acrescenta-se um elemento inovador, sem o qual a norma superior não teria condições de ser aplicada.[35]

Quanto ao critério prático, a existência da discricionariedade por ocasião da prática de determinados atos[36]decorre da impossibilidade prática[37]do legislador prever qual a providência que atende de maneira ótima a finalidade imposta pelo ordenamento jurídico diante de um caso concreto.

A discricionariedade não é um “defeito” da lei. Não é desejável nem possível que todas as leis contenham todas as soluções a serem adotadas por ocasião de sua aplicação. Isso tornaria a atividade administrativa petrificada, sem possibilidade de adaptação para solucionar os problemas da realidade.

Por isso, a discricionariedade é, antes, uma virtude da disciplina normativa. É a solução jurídica para as limitações e os defeitos do processo legislativo de geração de normas jurídicas. É da essência da discricionariedade que a autoridade administrativa formule a melhor solução possível, adote a disciplina jurídica mais satisfatória e conveniente ao interesse público.[38]

Vale citar, ainda, a fundamentação construída por Afonso R. Queiró:

Ora entre a norma e a situação de facto, entre a norma e a realidade, interpõe-se o agente, que, tendo-as a ambas ante si – a norma e a sua enunciação dos factos, e os factos mesmos – está posto na necessidade, no dever, de tirar a conseqüência, isto é, de agir, de praticar este ou aquele acto. Em direito público o acto funciona como consequência jurídica (Rechtsfolge), exactamente porque é obrigatório. Por sua vez, a norma é obra de um legislador, e seria insensato negar que a este legislador é impossível, material e logicamente impossível, para muitíssimas hipóteses, transmitir ao agente mais do que ordens e enunciar os factos com conceitos de carácter em certa medida vago e incerto, de tal maneira que o agente ao executar essas ordens e interpretar esses conceitos deve fixar-se, devendo agir, em uma dentre várias interpretações possíveis destes últimos.[39]

Assim, antes de se adentrar nas peculiaridades da discricionariedade das agências reguladoras, há que se distinguir entre atos expedidos no exercício de competência vinculada e atos expedidos no exercício de competência discricionária.

Haverá atos expedidos no exercício de competência vinculada quando a norma predetermina de modo completo, diante de um fato concreto, qual será a única solução possível a ser dada pela Administração. Ao contrário, haverá exercício de competência discricionária quando não houver uma predefinição legal da única solução correta a ser dada pela Administração diante de um fato concreto.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello,

Haveria atuação vinculada e, portanto, um poder vinculado, quando a norma a ser cumprida já predetermina e de modo completo qual o único possível comportamento que o administrador estará obrigado a tomar perante casos concretos cuja compostura esteja descrita, pela lei, em termos que não ensejam dúvida alguma quanto ao seu objetivo reconhecimento. Opostamente, haveria atuação discricionária quando, em decorrência do modo pelo qual o Direito regulou a atuação administrativa, resulta para o administrador um campo de liberdade em cujo interior cabe interferência de uma apreciação subjetiva sua quanto à maneira de proceder nos casos concretos, assistindo-lhe, então, sobre eles prover na conformidade de uma intelecção, cujo acerto seja irredutível à objetividade e ou segundo critérios de conveniência e oportunidade administrativa.[40]

Segundo os escólios de Eduardo G. de Enterría e Tomás-Ramón Fernándes:

O exercício das potestades regradas reduz a Administração à constatação [...] do suposto de fato legalmente definido de maneira completa e a aplicação, em presença do mesmo, o que a própria lei já determinou exaustivamente. Há aqui um processo aplicativo da Lei que não deixa resquício a nenhum juízo subjetivo, salvo a constatação ou verificação do suposto para a fim de contrastá-lo com o tipo legal. A decisão em que consista o exercício da potestade é obrigatória na presença de dito suposto e seu conteúdo não pode ser configurado livremente pela Administração, tendo de se limitar ao que a própria lei previu sobre esse conteúdo de modo preciso e completo [...].

Em contraste com essa maneira de atuar, o exercício das potestades discricionárias da Administração comporta um elemento substancialmente diferente: a inclusão no processo aplicativo da lei de uma estimação subjetiva da própria Administração com a que se completa o quadro legal que condiciona o exercício da potestade ou seu conteúdo particular. Há de notar-se, sem embargo, que essa estimação subjetiva não é uma faculdade extra-legal, que surge de um suposto poder originário da Administração, anterior ou marginal ao Direito; é, pelo contrário, uma estimação cuja relevância tem de haver sido prevista expressamente pela Lei que configurou  a potestade e que a atribuiu a Administração justamente com esse caráter. Por isso, a discricionariedade, frente ao que pretendia a antiga doutrina, não é um suposto de liberdade da Administração frente à norma: ao contrário, a discricionariedade é um caso típico de remissão legal: a norma remete parcialmente para completar o quadro regulador da potestade e de suas condições de exercício a uma estimação administrativa, mas que não é realizada [...] por uma via normativa geral, mas analiticamente, caso por caso, mediante uma apreciação de circunstâncias singulares, [...].[41]

Nota-se, desta forma, que os atos praticados no exercício de competência vinculada são aqueles que não deixam margem de liberdade para o administrador na aplicação da lei, dado que ela própria já predetermina de modo antecipado e objetivo os pressupostos exigidos para a prática do ato, bem como o seu conteúdo.

Justamente por não deixarem margem de liberdade para o administrador e por já estarem previamente e objetivamente estatuídos na norma os pressupostos para a prática do ato, bem como o seu conteúdo, os atos praticados no exercício de competência vinculada não geram dúvidas na doutrina. Entretanto, os atos praticados no exercício de competência discricionária são objeto de aprofundado estudo no Direito Administrativo, sendo um de seus temas mais caros.

A doutrina discute, v.g., se há de fato atos praticados no exercício de competência discricionária, havendo forte corrente doutrinária que nega a existência da discricionariedade quanto esta decorre da utilização pela norma de conceitos jurídicos indeterminados. Tal teoria foi desenvolvida pela doutrina alemã, que assevera que a discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados são coisas distintas, vez que a discricionariedade necessariamente supõe duas ou mais soluções justas, ao passo que os conceitos jurídicos indeterminados admitem apenas uma única solução justa.

Esta doutrina também foi desenvolvida na Espanha por Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernándes como mecanismo para a redução da discricionariedade ao permitir um amplo controle jurisdicional desses atos, já que se diante da utilização de conceitos jurídicos indeterminados pela norma não é possível se falar em discricionariedade, vez que há apenas uma única solução justa para o caso, restaria ao Judiciário a análise acerca da adoção pela Administração da única solução possível, sem que isso signifique invasão do mérito administrativo e ferimento ao princípio da separação de poderes.

A discricionariedade é essencialmente uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente justas, ou, se se preferir, entre indiferentes jurídicos, dado que a decisão se fundamenta normalmente em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos, etc.), não incluídos na Lei e remetidos ao juízo subjetivo da Administração. Ao contrário, a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados é um caso de aplicação da lei, posto que se trata de subsumir em uma categoria legal [...] certas circunstâncias reais determinadas, justamente por isso é um processo em que não há interferência de vontade do aplicador, como é próprio de quem exercita uma potestade discricionária.

As consequências desse contraste são capilares. Sendo a aplicação de conceitos jurídicos um caso de aplicação e interpretação da Lei que criou o conceito, o juiz pode fiscalizar tal aplicação, valorando se a solução a que se chegou é a única solução justa que a lei permite [...]. Em troca, o juiz não pode fiscalizar a entranha da decisão discricionária, posto que, [...], tenha sido produzida dentro dos limites da remissão legal [...] é necessariamente justa (como o seria igualmente a solução contrária).[42]

No Brasil, um dos defensores de que há apenas uma única resposta correta quando a lei faz uso de conceitos jurídicos indeterminados é Eros Roberto Grau, para quem só haverá discricionariedade quando a norma atribuir ao Administrador juízos de oportunidade. Assim, quando houver na norma conceitos jurídicos indeterminados não haverá discricionariedade, já que tais conceitos se submetem apenas a um processo de interpretação e aplicação do ordenamento jurídico. Outra defensora desta teoria é Lúcia Valle Figueiredo que afasta “toda e qualquer possibilidade da discricionariedade alojar-se nos conceitos plurissignificativos, elásticos ou indeterminados, conforme a nomenclatura que se lhes dê.”[43]

Em contraposição à teoria germânica, há que se ressaltar as ideias de Miguel Sánchez Morón, para quem a tese de que a discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados são coisas completamente distintas não merece acolhimento. Para o jurista a teoria de que há uma única solução justa quando a norma se utiliza de conceitos jurídicos indeterminados não é verdadeira, já que nem sempre será possível se chegar a apenas uma única resposta correta, sendo certo que para tanto “ter-se-ia que apoiar essa ideia em um conceito transcendental de justiça (e de verdade) e em uma fé absoluta da possibilidade de discernimento humano, idealismo esse de difícil aceitação.”[44]

Parece ser acertada a corrente doutrinária que admite mais de uma solução justa na integração dos conceitos jurídicos indeterminados. Isto porque a solução justa apenas poderá existir num plano da filosofia pura, não se sustentando diante de todos os casos concretos. Em assim sendo, se apóia o pensamento de que os conceitos jurídicos indeterminados se inserem no conceito da teoria da discricionariedade administrativa.[45]

Por fim, vale destacar o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, que assevera que a utilização pela norma de conceitos jurídicos indeterminados não afasta a possibilidade de haver mais de uma solução justa para o caso concreto. Tal análise passa por se identificar se a norma está fazendo uso de um conceito unissignificativo ou plurissignificativo. Para referido jurista a margem de liberdade característica da discricionariedade surge em duas hipóteses: quando há liberdade conferida pelo mandamento e quando há fluidez nas expressões utilizadas pela norma.

Ao lado de conceitos unissignificativos, apoderados de conotação e denotação precisas, unívocas, existem conceitos padecentes de certa imprecisão, de alguma fluidez, e que, por isso mesmo, se caracterizam como plurissignificativos. Quando a lei se vale de noções do primeiro tipo ter-se-ia vinculação. De revés, quando se vale de noções altanto vagas ter-se-ia discricionariedade.

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Sendo impossível à norma legal – pela própria natureza das coisas – furtar-se ao manejo de conceitos das duas ordens, a discrição resultaria de um imperativo lógico, em função do quê sempre remanesceria em prol da Administração o poder e encargo de firmar-se em um dentre os conceitos possíveis.[46]

Há que se destacar que para referido doutrinador a existência de discricionariedade ao nível da norma é condição necessária, mas não suficiente para que se possa afirmar a sua existência no caso concreto. Há que se interpretar a norma e há que se analisar o caso concreto para apenas depois se ter certeza da existência da discricionariedade, ou seja, da margem de liberdade do administrador para a utilização de critérios subjetivos para a prática do ato.

A existência de discricionariedade ao nível da norma não significa, pois, que a discricionariedade existirá com a mesma amplitude perante o caso concreto e nem sequer que existirá em face de qualquer situação que ocorra, pois a compostura do caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstrato na regra e, eventualmente, tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade. Em suma, a discrição suposta na regra de Direito é condição necessária, mas não suficiente, para que exista discrição, mas não uma certeza de que existirá em todo e qualquer caso abrangido pela dicção da regra.[47]

Seguindo os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, José Roberto Pimenta, dando a merecida ênfase ao poder normativo dos princípios, afirma:

[...] como a discrição na norma é condição necessária, mas não suficiente à sua verificação no caso concreto porque este lhe dita a compostura final, há casos em que o Direito demandará a adoção de um único critério na aplicação da norma jurídica habilitante da discrição, eliminando toda eleição entre possibilidades virtualmente nela contidas, vinculando a decisão administrativa em determinada direção ou conteúdo. Isso se dará por ordem de fatores vinculados ao caso apreciado pela Administração, e por ordem da força normativa conformadora dos princípios, os quais podem determinar a redução fenomênica da abertura normativa, em tese apreciável em favor do administrado.[48]

Um terceiro e último ponto que merece destaque refere-se à estrutura lógico-normativa da discricionariedade. A doutrina é farta em relação ao tema.

A primeira classificação que merece destaque é a de Celso Antônio Bandeira de Mello. Para o doutrinador “a esfera de liberdade administrativa [...] pode resultar da hipótese da norma jurídica a ser implementada, do mandamento dela ou, até mesmo, de sua finalidade”.[49]

Decorre da hipótese da norma jurídica a ser implementada quando os pressupostos de fato enunciados forem descritos mediante o uso de conceitos práticos[50], ou seja, quando o motivo conformador do ato for descrito por conceitos práticos. “A indeterminação dos conceitos engendra certa liberdade administrativa em razão da presença da ‘zona duvidosa’, isto é, da irredutibilidade dos mesmos a uma objetividade completa, verificada após o processo de interpretação jurídica.”[51]

A discricionariedade decorre da hipótese da norma quando os pressupostos de fato por ela enunciados – como autorizadores ou exigentes de um dado comportamento – são descritos mediante os conceitos que o Prof. Queiró denominou práticos. Isto é, se os antecedentes fáticos que legitimam a prática de um ato – quer-se dizer, se os motivos (na acepção prevalente na doutrina francesa) – estão delineados por meio de palavras vagas, imprecisas, cabe à Administração determinar-lhes concretamente o alcance na espécie, cingida, embora, a certos limites [...].[52]

A discricionariedade pode decorrer, também, da finalidade da norma expressada através de conceitos práticos, ou seja, pode haver discricionariedade quanto à finalidade da norma se esta for composta por conceitos jurídicos irredutíveis a uma objetividade completa. Assim, após a interpretação e o cotejo da norma com o caso concreto pode ser que reste mais de uma possibilidade tida como cabível.

Por fim, a discricionariedade pode decorrer do mandamento da lei, independentemente desta ter se utilizado de conceitos práticos na hipótese legal ou no mandamento, exatamente quando for facultado um comportamento à Administração Pública ou quando esta tiver de escolher uma dentre pelo menos duas soluções possíveis para o caso concreto.

A discricionariedade, finalmente, pode defluir do mandamento da lei. Isto sucede, quer hajam sido utilizados conceitos práticos ou teoréticos na hipótese legal ou até mesmo em aspecto do mandamento (e independentemente da fluidez encontradiça no enunciado da finalidade), quando a norma facultar um comportamento, ao invés de exigi-lo (que é o caso de ‘liberdade’ discricionária mais ampla), ou, ainda, quando confere ao administrador o encargo de decidir sobre a providência a ser obrigatoriamente tomada, de maneira a que tenha que eleger entre pelo menos duas alternativas.[53]

Em conclusão, afirma José Roberto Pimenta

Reconhece-se, assim, uma diferenciação entre a liberdade intelectiva inerente à indeterminação dos supostos de fato e a liberdade volitiva inerente à indeterminação das conseqüências jurídicas, mas aquela não desautoriza tratar ambos os casos como outorga jurídica de discrição.[54]

Uma segunda classificação que merece destaque, por resumir as três teorias que tentam localizar a discricionariedade na estrutura lógico-formal da norma, é a efetuada por Mariano Bacigalupo e citada por José Roberto Pimenta Oliveira em sua tese de dissertação “Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro”, que a seguir se reproduz:

“- em primeiro lugar, aquele que concebe a discricionariedade administrativa como margem de volição para eleger entre a adoção ou não de uma conseqüência jurídica ou outra na aplicação de normas de estrutura condicional que não obrigam a adotar a conseqüência jurídica por ela prevista ou não predeterminam a conseqüência jurídica que deva ou possa adotar-se (discricionariedade como fenômeno exclusivamente derivado da indeterminação das conseqüências jurídicas das normas jurídico-administrativas);

- em segundo lugar, aquele outro segundo o qual também a indeterminação do suposto de fato das normas habilitantes (e não somente a indeterminação das suas conseqüências jurídicas) gera discricionariedade administrativa, ou, ao menos, uma margem de decisão administrativa estruturalmente equiparável, no essencial, àquela;

- e, enfim, o ponto de vista de quem sustenta que, em realidade, a discricionariedade somente opera no âmbito do suposto de fato das normas jurídico-administrativas, e isso por entender que é a sua inexistência ou imperfeição (produto, a seu turno, da ausência, insuficiência ou imprecisão dos critérios determinantes da aplicação ou não em cada caso de uma conseqüência jurídica ou outra), o que genuinamente provoca a margem de atuação discricionária. Esta consistiria, portanto, no fato de que a Administração pode estabelecer ou, ao menos, precisar em sede aplicativa os pressupostos de sua própria atuação, intencionalmente imperfeitos (inacabados ou indeterminados) em sua configuração normativa inicial (discricionariedade como fenômeno exclusivamente derivado da imperfeição ou indeterminação do suposto de fato normativo.”[55]

Postos três dos temas mais caros da discricionariedade passar-se-á agora à problemática da existência de diferenças entre a discricionariedade administrativa e a chamada discricionariedade técnica.

Muito se discute acerca do que seria a discricionariedade técnica, entretanto, a discussão, por vezes, acaba por não evoluir, pois, segundo César A. Guimarães Pereira, há que se precisar primeiro “o que se pretende descrever quando se emprega esta expressão”.[56]Segundo referido doutrinador há, pelo menos, cinco fenômenos distintos, e que não necessariamente possuem o mesmo regime jurídico, que podem ser agasalhados no rótulo da discricionariedade técnica.

Primeiro, pode-se aludir a ‘discricionariedade técnica como uma suposta liberdade da Administração para realizar exames e apurações técnicas e formular juízos especializados, de modo a preencher um conceito técnico referido na lei. [...]. Aqui se encaixam as hipóteses vislumbradas por Renato Alessi como de questões técnicas não coligadas a questões administrativas: (a) acertamento de conceitos técnicos em relação aos quais não se dá à Administração competência para avaliar a sua medida em função do interesse público a realizar e (b) desenvolvimento de atividades instrumentais de natureza técnica (p. ex., obras ou serviços técnicos), depois de escolhido o meio a ser adotado.

O segundo sentido que se poderia dar a ‘discricionariedade técnica’ é o de denotar escolhas administrativas relacionadas com campos especializados de conhecimento. [...].

Uma terceira hipótese é a que envolve escolhas administrativas realizadas com base em apreciações técnicas, que Desdentado Daroca denomina ‘discricionariedade técnico-administrativa. Neste caso, há um momento de cognição técnica e outro de decisão administrativa. [...]. Nesta hipótese enquadram-se os casos que Alessi refere como envolvendo questões técnicas indissociavelmente coligadas a questões administrativas: (a) conceito técnico é pressuposto para a decisão administrativa que, acertado o conceito, pode avaliar sua medida em face do interesse público, (b) a questão administrativa tem pressuposto de fato cujo acertamento depende de processos técnicos e (c) decisão administrativa acerca dos meios técnicos instrumentais (p.ex., obra ou serviços técnicos) a serem adotados para realizar certo interesse público.

O quarto sentido possível corresponde à situação na qual a Administração é chamada a formular escolhas com base em hipóteses científicas que não tenham podido ser objeto de corroboração. [...].

O quinto e último sentido de ‘discricionariedade técnica’ poderia ser o processual, correspondente à suposta liberdade da Administração na atividade instrutória do processo administrativo, nos casos em que a instrução é complexa. Haveria discricionariedade técnica na seleção dos fatos relevantes e na sua valoração, ou seja, na fixação dos padrões da instrução. Estaria nas escolhas voluntárias que ocorreriam mesmo quando a regulação substancial derivar da lei mas depender de tais escolhas.[57]

O primeiro fenômeno, ou seja, da discricionariedade técnica como uma suposta liberdade da Administração para realizar exames e apurações técnicas e formular juízos especializados, de modo a preencher um conceito técnico referido na lei não envolve discricionariedade, pois é caso de remissão legal a um conceito técnico. É o caso, por exemplo, da aposentadoria por invalidez, vez que a invalidade é um conceito técnico, ainda que, na prática, haja dificuldade de se apurar a invalidez tecnicamente.

No segundo caso, isto é, no de denotar escolhas administrativas relacionadas com campos especializados de conhecimento há que se dividir a análise em dois campos distintos: “ou o juízo técnico próprio da Administração é formulado como parte da regulação legal do bem da vida, ou compõe a própria regulação administrativa do conflito de interesses sobre esse bem”[58]. Como exemplo deste segundo sentido, pode-se citar a autonomia didático-científica das universidades públicas.

No terceiro caso, ou seja, o que envolve escolhas administrativas realizadas com base em apreciações técnicas em que há um momento de cognição técnica e outro de decisão administrativa pode-se afirmar que o momento de cognição técnica envolve uma apreciação técnica da Administração efetuada com base em critérios estritamente técnicos e por essa razão plenamente controlável pelo Poder Judiciário. Neste caso, há discricionariedade quando a Administração toma uma decisão com base nos critérios técnicos antes delineados. “Um caso que corresponde a esta situação é o da adoção de uma solução ambientalmente adequada a partir da elaboração de um EIA/RIMA”.[59]

O quarto sentido que corresponde à situação na qual a Administração é chamada a formular escolhas com base em hipóteses científicas que não tenham podido ser objeto de corroboração é tipicamente um caso de discricionariedade, que ocorre quando “a Administração é chamada a agir, em matérias técnicas, mesmo sem poder contar com um juízo técnico conclusivo e seguro. São situações em que a Administração deve realizar condutas de prognóstico [...] ou em situações de conhecimento científico insuficiente”[60].

  Por fim, o quinto sentido é o que correspondente à suposta liberdade da Administração na atividade instrutória do processo administrativo, nos casos em que a instrução é complexa. Ora, não há que se falar em discricionariedade para a estipulação dos fatos que devem ser provados ou mesmo para a estipulação de quais são meios de prova que poderiam ser utilizados.

Nota-se, portanto, que em alguns dos casos acima citados não se está diante da possibilidade de se exercer um juízo discricionário, mas apenas e tão-somente uma apreciação técnica. Há outros, em que a discricionariedade não se distingue da discricionariedade atribuída a qualquer outra atividade administrativa, não havendo sentido em se diferenciar discricionariedade administrativa de discricionariedade técnica. Ao cabo e ao fim, é possível afirmar que existe apenas um tipo de discricionariedade que é comum a qualquer outra área da atividade administrativa.

Nos casos em que há discrição, há pura e simples discrição, não discrição ‘técnica’. Nos casos em que não há discrição, não há nada, nem uma ‘discrição técnica’ supostamente peculiar.

O emprego da expressão ‘discricionariedade técnica’ é apenas fonte de equívocos. Faz supor que (a) todos os juízos técnicos da Administração são incendiáveis pelo Poder Judiciário por serem discricionários, ou que (b) há uma ‘espécie’ de discricionariedade que não se submete ao mesmo regime da ‘discricionariedade administrativa’ ou, ainda, que (c), pela reação que provoca, todas as atividades administrativas relacionadas com questões técnicas são vinculadas e excluem a discrição. [...]

Em vista disso, é mais adequado aludir-se a ‘apreciações técnicas’ da Administração, para denotar todos os casos em que houver o recurso da Administração a sistemas específicos e especializados de conhecimento, para a formulação de juízos acerca de determinados fatos com base nos postulados técnicos e científicos próprios de cada setor do conhecimento.[61]

Para Giannini, Alessi, García de Enterría, Sáinz Moreno, García-Trevijano y Martín González a Administração não possui discricionariedade administrativa na realização de apreciações técnicas que requerem a aplicação deste tipo de conceito. A atuação técnica não deixa margem alguma de liberdade de decisão, estando vinculada a regras e critérios técnicos que são certos, objetivos e universais. Para esses doutrinadores os termos “técnica” e “discricionariedade” são incompatíveis, logo, a aplicação de conceitos que remetem a critérios técnicos é atividade regrada[62].

Já para Sánchez Morón ainda que a atividade administrativa seja delimitada por conceitos jurídicos indeterminados (mérito e capacidade, justo preço, oferta mais vantajosa), a concretização desses conceitos é freqüentemente incerta e opinável, existindo um âmbito de decisão que corresponde à Administração. Desta forma, não caberia aos tribunais um controle pleno da apreciação técnica realizada pela Administração Pública, sob pena do Judiciário substituir a decisão tomada pela Administração pela sua decisão, ferindo o princípio da separação de poderes. Não há que se olvidar que a existência de discricionariedade ao nível da norma é uma opção legislativa e não algo situado à margem do Direito.

Por fim, como salienta Eva Desdentado Daroca, há uma terceira corrente, encabeçada por Marzuoli que nega que na aplicação de conceitos técnicos exista discricionariedade administrativa, mas que não aceita, também, que nestes casos é a atividade regrada. Para o doutrinador, a técnica nem sempre é capaz de produzir certeza, “porque em alguns juízos técnicos não restam eliminadas a opinabilidade ou subjetividade, o que dá lugar a resolução dessas dúvidas técnicas conforme os valores do operador".” [63]Logo, segundo esta teoria existe um  fenômeno mais amplo que a discricionariedade administrativa, que é o dos fatos valoráveis ou opináveis. Dentro deste fenômeno estariam compreendidas tanto a discricionariedade administrativa como as valorações técnicas.

Para fins do presente estudo, adota-se a teoria que afirma não haver diferença entre discricionariedade administrativa e discricionariedade técnica, existindo apenas um tipo de discricionariedade que é comum a qualquer outra área da atividade administrativa. Desta forma, a discricionariedade técnica não constitui verdadeiramente discricionariedade, já que “não envolve decisão política, porque não dá liberdade de escolha para a Administração”.[64]

Analisar-se-á, a partir de agora, a discricionariedade concedida às agências reguladoras para expedir atos normativos.

Como afirmado alhures, as agências reguladoras possuem competência para expedir regulamentos normatizando conceitos estritamente técnicos dentro da sua esfera de regulação, não podendo inovar na ordem jurídica, sob pena de ferimento ao princípio da legalidade e ao princípio da separação de poderes.

O que as agências não podem fazer – porque falta o indispensável fundamento constitucional – é baixar regras de conduta, unilateralmente, inovando na ordem jurídica, afetando direitos individuais, substituindo-se ao legislador. Esse óbice constitui-se no mínimo indispensável para preservar o princípio da legalidade e o princípio da segurança jurídica. Principalmente, não podem as agências baixar normas que afetem os direitos individuais, impondo deveres, obrigações, penalidade, ou, mesmo, outorgando benefícios, sem previsão em lei. Trata-se de matéria de reserva de lei, consoante decorre do art. 5º, II, da Constituição.[65]

Segundo a doutrina é possível identificar a existência de três tipos de regulamentos: (a) regulamentos executivos, ou seja, regulamentos que se destinam ao mero cumprimento da lei; (b) regulamentos autorizados ou delegados; e (c) regulamentos autônomos ou independentes (estes inexistentes no Brasil).

A doutrina aponta, em termos gerais, a existência de três espécies de regulamentos: os regulamentos autônomos ou independentes são atos normativos editados pelo Poder Executivo com base em competências normativas próprias, estabelecidas na Constituição, para as quais não se prevê a interferência do Poder Legislativo. Criam direito novo, independentemente da existência de lei a respeito. Os regulamentos autorizados ou por delegação são aqueles editados pelo Poder Executivo no exercício de competência normativa que lhe tenha sido atribuída pelo Legislativo, o qual, diante da existência de situações de fato extremamente mutantes, excessivamente técnicas ou politicamente complexas, limita-se a fixar os princípios gerais a serem seguidos pela autoridade administrativa na disciplina da matéria que constitui seu objeto. Os regulamentos executivos são aqueles destinados a tão-somente estabelecer regras de organização e de procedimento necessárias à aplicação da lei.

Regulamentos independentes ou autônomos são visceralmente incompatíveis com o Direito brasileiro. Portanto, não se pode entender que as agências reguladoras exerçam função legislativa propriamente dita.[66]

Assim, considerando as agências reguladoras como parte indissociável da Administração Pública, em sua faceta indireta, descentralizada, não se poderia olvidar o fato de que seu poder normativo, antes de qualquer ponderação, deve ser encarado como dever, pautado sempre e inexoravelmente pela existência de um interesse público  anterior ao seu exercício. Ainda, tal conjuntura implica no fato de que, se há um dever de agir, os poderes correlatos são exercitáveis apenas na medida proporcional para realização do interesse público que lhe deu origem. Essa é, portanto, a conclusão lógica a que leva a interpretação do sistema de deveres legais e constitucionais impostos às agências reguladoras no Brasil, consubstanciados esses em poderes correlatos, que lhes são conferidos apenas para o razoável e proporcional exercício dos deveres impostos.

Celso Antônio Bandeira de Mello apresenta o problema da seguinte forma: “O verdadeiro problema com as agências reguladoras é o de saber o que e até onde podem regular sem estar, com isto, invadindo a competência legislativa[67]”. O presente questionamento, longe de ter apenas importância dogmática, entendendo-se os limites reais que devem ser impostos à atividade normativa das agências reguladoras, tem caráter salutar no próprio desenvolvimento das atividades estatais. Isso porque a função legislativa, pertencente hoje ao Congresso Nacional (art. 44, CF), diante dos princípios da soberania popular, Democracia, República e Estado de Direito, não podem meramente, sem qualquer previsão constitucional, ser alvo de exercício por outros poderes constituídos no Brasil[68].

Há que se ressaltar, ainda, que nos termos do art. 84, IV, e parágrafo único, da CF compete privativamente ao Presidente da República sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução, podendo delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.

Não há que se olvidar, entretanto, do quanto estabelecido no art. 87, II c.c. os arts. 21, XI, e 177, §2º, todos da Constituição Federal.

[...] não se pode esquecer que os Ministérios podem ‘baixar instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos’ (cf. art. 87, II, da CF), participando, portanto, da função regulamentar; como também os órgãos reguladores das telecomunicações e do petróleo, os quais, precisamente pelo fato de serem assim chamados pela Constituição (arts. 21, XI, e 177, §2º), exercem uma parcela de função normativa implícita na sua função de órgãos reguladores.[69]

Desta forma, não há como se contestar que a própria Constituição Federal deixou espaço para que os Ministérios e os órgãos reguladores das telecomunicações e do petróleo exercessem seu dever normativo.

Não há dúvida, portanto, de que a própria Constituição, embora atribua ao chefe do Executivo o poder regulamentar, deixou uma brecha para os Ministérios e para os órgãos reguladores referidos expressamente na Constituição, como também deixou uma brecha – embora transitória – quando, no art. 25 do ‘Ato das Disposições Constitucionais Transitórias’, revogou todos os atos que implicassem delegação de função normativa a órgãos do Poder Executivo, mas permitiu que o prazo para essa revogação fosse prorrogado. Provavelmente muitos dos órgãos que ainda exercem função normativa exercem uma competência que remanesce (devida ou indevidamente) do regime constitucional anterior à Constituição de 1988, às vezes sem que permaneça o anterior fundamento constitucional.[70]

Isto posto, resta saber se a interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados, fluidos e técnicos, contidos nas diversas leis criadoras das agências reguladoras conferem a elas discricionariedade.

 [...] o fato incontroverso de que há conceitos jurídicos indeterminados nas leis de criação e outorga de funções às Agências Reguladoras poderá, a nosso sentir, dar margem a mais de um resultado tecnicamente justo, impedindo que o mérito desses atos seja revisto positivamente pelo Poder Judiciário.

Nesse contexto, transferir a função de interpretação desses conceitos fluidos para o Poder Judiciário representa transpor a discricionariedade regulatória técnica da Agência Reguladora para os peritos indicados pelos próprios magistrados, muitas das vezes sem uma comprovada capacidade técnica para apreciação dos temas em conflito.[71]

Desta forma, pode-se afirmar que as agências reguladoras, em especial a ANATEL e a ANP, possuem poder normativo para regulamentar os aspectos estritamente técnicos de sua esfera de atuação. A discricionariedade concedida a esses órgãos reguladores, entretanto, é mais limitada que a discricionariedade exercitável nas demais atividades desenvolvidas pela Administração Pública.

Assim, a questão principal do presente tema é saber se a ANATEL, após regular determinados critérios da sua esfera de atuação, pode flexibilizar ou, até mesmo, afastar a regulamentação por ela editada, principalmente se for levada em consideração a exigência legal (requisito formal) de submissão de suas minutas ao crivo popular, através da realização de consulta pública.

Há que se destacar, antes da análise da problemática acima exposta, a teoria desenvolvida por Floriano de Azevedo Marques Neto segundo a qual as agências reguladoras possuem uma discricionariedade menor do que a conferida aos demais órgãos administrativos. Para o doutrinador, tal afirmação pode ser comprovada com base em quatro fundamentos: (a) as competências das agências reguladoras encontram-se melhor definidas nas leis que as criaram, (b) quando a agência reguladora normatiza determinados critérios, regras, conceitos e procedimentos a serem por ela observados passa a ter uma discricionariedade menor do que aquela que possui antes de expedir sua normatização, vinculando-se material e processualmente a ela, (c) os reguladores não possuem a opção de decidir se atuarão ou não, vez que estão submetidos ao princípio da função administrativa e ao dever de decidir e (d) a atuação dos reguladores encontra-se sobre o crivo da constatação da necessidade, adequação e ponderação das medidas adotadas.

Assim, para Floriano de Azevedo Marques Neto

[...] as Agências possuem uma discricionariedade (entendida em sentido amplo) menor do que aquelas tradicionalmente conferidas aos órgãos administrativos. E isso por alguns motivos. Primeiro, porque suas competências vêm melhor definidas nas leis que lhes instituem (a partir da preocupação de delimitar o núcleo de competências a ser exercido com autonomia reforçada – ou com independência como prefiro – em face da Administração Direta, o legislador é obrigado a precisar melhor competências). Segundo, porque ao editar normas gerais, como aludi acima, o regulador é obrigado a reduzir sua margem de liberdade, vinculando-se material e procedimentalmente às suas próprias normas. Terceiro, porque em regra não remanesce ao regulador uma margem de liberdade no sentido de decidir se atua ou não, pois no geral está subsumido ao princípio da função e ao dever de decidir (neste sentido é sintomática a prescrição constante do artigo 48 da Leo nº 9.784/99 – Lei de Processo Administrativo da União). Por fim, porque sua atuação, subsumida que está ao princípio da proporcionalidade, se encontra permanentemente sob o crivo da aferição da necessidade, adequação e ponderação das medidas adotadas, o que oferece um linde à discricionariedade pelo controle a posteriori dos atos.[72]

Não há que se olvidar que a margem de liberdade conferida às agências reguladoras justifica-se pela complexidade e especialidade dos assuntos concernentes aos seus campos de atuação e é decorrência da opção feita pelo legislador de deixar certa margem de discricionariedade ao nível da norma. Destaque-se, por oportuno, que não cabe ao órgão regulador, ou seja, não faz parte de sua discricionariedade determinar quais serão os objetivos visados ou decidir ou não decidir determinada matéria.

A lei que instituiu uma agência reguladora e define os quadrantes da regulação setorial atribuiu competências de intervenção no setor regulado com vistas a atingimento dos objetivos das políticas públicas setoriais. Certo é que o manejo do que, outra feita, chamei e política regulatória, dependerá de escolhas, de decisões tomadas com relativa margem de discricionariedade pelo regulador. Margem esta, contudo, que não envolverá nem escolhas quanto a decidir ou não, nem quanto aos objetivos para os quais serão manejadas estas competências, pois isto já deverá estar prescrito na respectiva lei.[73]

Conclui-se, assim, que ao expedir atos normativos gerais a agência reguladora reduz a margem de discricionariedade a ela atribuída legalmente, não podendo descumprir casuisticamente a normatização por ela feita anteriormente, dado que ao expedir seus regulamentos vincula-se material e procedimentalmente a eles.

[...] as agências, ao exercer suas competências – e, portanto, ao manejar as margens de discricionariedade que lhe são conferidas pelo legislador -, poderão fazê-lo tanto editando atos concretos quanto mediante atos de caráter geral (normativos). A edição destes últimos – claro que nos limites do poder regulamentar conferido pela lei -, o regulador estará automaticamente reduzindo sua margem de discricionariedade ou, dito de outro modo, estará exaurindo a discricionariedade sobre esta matéria específica ao preencher, de forma geral e abstrata, o conteúdo da determinação normativa quem o legislador havia deixado em aberto (franqueando então a discricionariedade).

[...] Não se admite, então, que no exercício in concreto de suas competências, o regulador se arvore da discricionariedade originalmente conferida pelo legislador para descumprir o preceito normativo que, por ele editado, tornou-se autovinculante.[74]

Vincula-se materialmente “porquanto o princípio da legalidade implica uma estrutura hierárquica interna aos atos do regulador, segundo a qual os atos normativos têm prevalência sobre os atos concretos”[75]. Vincula-se formalmente, pois, em geral, há previsão nas leis das agências reguladoras de regras específicas para a elaboração, aprovação e edição de seus atos normativos, tais como o estabelecimento de prazos, obrigatoriedade de submeter seus atos a consultas públicas, realização de sessões públicas, entre outras.

É nesse ponto, portanto, que se pretendia chegar para afirmar que a participação popular é condição e limite do exercício de competências discricionárias pelas agências reguladoras, em especial, pela ANATEL. A Lei Geral de Telecomunicações, em seu art. 42, estabelece que as minutas de atos normativos da Agência serão submetidas à consulta pública. Ora, a obrigatoriedade de submeter seus atos a consulta pública é requisito formalístico da maior importância, pois, juntamente com os demais limites procedimentais e materiais, impede que a ANATEL casuisticamente afaste a normatização porventura efetuada.

Há que se dar a relevância devida à participação popular na ANATEL, pois o desenvolvimento de uma consciência cidadã ativa passa também pela percepção dos cidadãos de que sua participação nos “assuntos de Estado” é capaz de influenciar os rumos do Estado. A previsão da participação e o seu desprestigio é mais prejudicial do que a sua não previsão. Isto porque a descrença que pode advir deste fato é capaz de retroagir os poucos avanços até agora conquistados pelo povo brasileiro.

No próximo capítulo, analisar-se-á a questão da participação popular e a problemática decorrente desta participação em assuntos de alta complexidade técnica.

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Sobre a autora
Marina Centurion Dardani

Advogada/Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP - Cogeae

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DARDANI, Marina Centurion. A participação do administrado como limite à discricionariedade das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4024, 8 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28684. Acesso em: 18 dez. 2024.

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