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A participação do administrado como limite à discricionariedade das agências reguladoras

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08/07/2014 às 13:13
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IV - A participação popular e as questões de alta complexidade técnica

Como afirmado alhures, não há que se duvidar que o ordenamento jurídico brasileiro é um dos mais avançados no tocante à previsão da participação popular na Administração Pública e, em especial, nas agências reguladoras. Entretanto, a questão merece uma observação mais detalhada, que deve ser feita a partir da ideia de que a participação popular pressupõe a existência de um substrato social favorável à participação política consciente por parte do cidadão/administrado.

Não é difícil perceber, ao se levar em consideração o nível de alfabetização da população brasileira, que a participação popular nos assuntos regulados pelas agências é algo por demais distante da maioria da população.

A construção de uma cidadania ativa e consciente de seus direitos e deveres, bem como dos assuntos altamente técnicos discutidos no âmbito das agências é uma realidade ainda também muito distante no Brasil. Este processo de construção da cidadania não é algo que surge espontaneamente do seio da sociedade. Ele tem de ser incentivado, promovido pelo Estado. Para tanto, é de salutar importância que o Estado propicie ao povo condições adequadas de aprimoramento da cultura e desenvolvimento da educação. A questão central que deve ser pensada é se há, de fato, por parte da classe política brasileira interesse em desenvolver um sistema educacional que realmente possibilite à população uma educação suficiente para que todos se desenvolvam intelectualmente e criticamente possam analisar os “assuntos de Estado” com coerência e independência.

Enquanto as noções mínimas dos direitos e deveres previstos constitucionalmente continuarem a ser revelados para a grande maioria da população por intermédio da mídia, principalmente a televisiva, não há que se falar em esperança no desenvolvimento de uma cidadania ativa e consciente. Isto porque não há interesse por parte da elite política e midiática que a população brasileira caminhe no sentido de uma cidadania ativa. Nesse sentido, merece destaque a informação de que, no país, 90% do mercado de comunicação é detido por apenas 14 famílias[76], e, além disso, observa L. Renaud,

[...] No Brasil, onde os barões da mídia ocupam uma cadeira em cada dez na Câmara dos Deputados e uma em cada três no Senado, o grupo Globo detinha, em 2006, ‘61,5% dos canais de televisão’ e ‘40,7% da difusão total dos jornais’. Com mais de 120 canais no mundo, a rede de televisão do magnata Roberto Marinho (cujo falecimento fez Lula decretar três dias de luto nacional em 2003) chega a mais de 120 milhões de pessoas por dia.[77]

Ao refletir acerca da elite que controla o capital financeiro e as informações divulgadas para a sociedade, Gilberto Dupas destaca a redução dos vínculos que esta elite possui com suas comunidades de origem.

[...] A mobilidade do capital e a emergência de um mercado global criaram uma nova elite que controla os fluxos do capital financeiro e das informações, atuando predominantemente em redes e clusters, e reduzindo progressivamente seus vínculos com suas comunidades de origem.[78]

Com a internacionalização da elite restou à classe média e aos trabalhadores a complexa questão de elaborar o bem público de interesse da coletividade. Como criar na sociedade contemporânea um sentido de obrigação civil?

[...] a condição essencial para a prática da cidadania é a existência e a explicitação de conflitos, e a sua mediação pela sociedade política. Afinal, ma luta pela cidadania é um embate por significados, pelos direitos à fala e à política, que exige redefini-los num patamar mais abrangente. A sociedade civil produz ideologia, construtura de consensos provisórios que exigem contestação permanentemente. No entanto, a sociedade civil contemporânea passou a aspirar a ser um lugar do não-conflito, no qual os interesses contraditórios não aparecem. Essa falsa visão reduz, mais uma vez, a sociedade civil ao âmbito dos atores privados. Privatiza-se o público, mas não se publiciza o privado.

A sociedade contemporânea não é, pois, capaz de gerar um sentido de obrigação civil. As elites se internacionalizam e o dever de contribuir para o bem públicos – por intermédio do Estado – recai desproporcionalmente sobre a classe média e os trabalhadores. Portanto, o poder do Estado vai sendo substituído pela influência direta de organizações instrumentais que perseguem a realização contextual de objetivos particulares. O Estado se fragmenta em múltiplas instâncias decisórias e deixa de desempenhar o papel de centro de coordenação capaz de induzir com legitimidade uma direção ao conjunto social ou uma finalidade comum entre os atores. Comitês ministeriais tecnocráticos e comissões ad hoc são mobilizados para a resolução de problemas particulares nos quais estão sempre presentes os interesses econômicos representados por grupos de pressão, public relations e lobbying.[79]

Desta forma, não há como se separar da análise ora efetuada as condições enfrentadas pela população para o exercício da participação popular na Administração, contemplada tão amplamente no ordenamento jurídico brasileiro. A participação popular possui na sua estrutura não um firme terreno fértil, mas um terreno movediço que a qualquer momento pode tornar letra morta as previsões existentes.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello há que se distinguir os Estados formalmente democráticos e os Estados substancialmente democráticos, além daqueles que se encontram em transição para a democracia. Para o Autor, os Estados formalmente democráticos

[...] carecem das condições objetivas indispensáveis para que o instituído formalmente seja deveras levado ao plano concreto da realidade empírica e cumpra sua razão de existir. BISCARETTI DI RUFFÌA, em frase singela, mas lapidar, anotou que ‘a democracia exige, para seu funcionamento um minimum de cultura política’, que é precisamente o que falta nos países apenas formalmente democráticos. As instituições proclamam adotar em suas cartas Políticas não se viabilizam. Sucumbem ante a irresistível força de fatores interferentes que entorpecem sua presumida eficácia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de um lado, os segmentos sociais dominantes, que as controlam, apenas buscam manipulá-las ao seu sabor, pois não valorizam as instituições democráticas em si mesmas, isto é, não lhes devotam real apreço. Assim, não tendo qualquer empenho em seu funcionamento regular, procuram, em função das próprias conveniências, obstá-lo, ora por vias tortuosas ora abertamente quando necessário, seja por iniciativa direta, seja apoiando ou endossando quaisquer desvirtuamentos promovidos pelos governantes, simples prepostos, meros gestores dos interesses das camadas economicamente mais bem situadas. De outro lado, como o restante do corpo social carece de qualquer consciência de cidadania e correspondentes direitos, não oferece resistência espontânea a estas manobras. Ademais, é presa fácil das articulações, mobilizações e aliciamento da opinião pública, quando necessária sua adesão ou pronunciamento, graças ao controle que os segmentos dominantes detêm sobre a ‘mídia’, que não é senão um de seus braços.[80]

 Ora, como se pode falar em participação popular nas agências reguladoras se, de fato, não há no Brasil uma democracia substancial? Como ter esperanças que os assuntos normatizados pela ANATEL contarão com uma efetiva interferência da população se esta nem sequer possui o que Paolo Biscaretti di Ruffìa classifica como o mínimo de cultura política?

Com efeito, o aumento da complexidade das relações sociais, bem como o implemento da tecnologia e a crescente demanda por decisões que envolvem assuntos cada vez mais específicos, de áreas de conhecimento específicas, faz com que determinados temas afetos à normatização efetuada pelas agências reguladoras contenham aspectos muitas vezes desconhecidos da grande maioria da população, demandando conhecimentos teóricos e práticos dominados apenas por detentores de determinada parte das ciências: os técnicos. Norberto Bobbio já identificava a tecnocracia como prejudicial ao exercício pleno da democracia, quando afirmava:

[...] o projeto político democrático foi idealizado para uma sociedade muito menos complexa que a de hoje. [...] Tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos.[81]

A solução definitiva para resolver a questão da efetividade da participação popular é a educação combinada com o desenvolvimento de uma cultura política sólida. Acontece que, nesse aspecto, da cultura política, é de se observar que no Brasil, desde a proclamação da República, em 1889, poucos períodos foram realmente aproveitados para o desenvolvimento de instituições democráticas, que pudessem levar a população a uma prática cotidiana de exercício pleno de cidadania.

Com efeito, o período da Primeira República, ainda que contasse com a positivação de direitos políticos, por exemplo, foi permeado por práticas de fraudes eleitorais patentes, sérias restrições ao direito de voto, parcas instituições e deficiente estruturação partidária, dentre outros, que praticamente esvaziavam a prática democrática. Após o período do Estado Novo, que apenas se encerrou em 1945, houve relativo período de florescimento do exercício da democracia no país, porém solapado novamente pelo golpe militar de direita, ocorrido em 1964.

Somente houve o retorno às instituições democráticas no Brasil em 1985, com a derrocada dos militares governantes e paulatina abertura para o novo (e ansiado) regime político de soberania popular. Assim, também é fator determinante para a parca participação popular no Brasil a duração relativamente curta de efetiva prática democrática pela população.

Ressalta-se, por oportuno, que não se está aqui a reduzir a zero a importância da existência de dispositivos constitucionais e legais que contemplam a participação popular. O que se está a dizer é que a simples previsão legal não é suficiente para garantir uma real e consciente participação popular. No atual nível de desenvolvimento cultural e educacional do Brasil, pode-se afirmar que a participação popular existente é apenas “para inglês ver”[82].


V – Conclusão

 O princípio da participação popular é inerente à ideia de Estado Democrático de Direito, estando presente no ordenamento jurídico pátrio já no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, bem como em diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, caracterizando-se, pois, como direito fundamental.

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Sua previsão pode ser observada em artigos constitucionais que regulamentam direitos e garantias fundamentais (art. 5º), a cooperação de associações representativas nos Municípios (art. 29), a ordem social, a seguridade e assistência sociais, a saúde, a educação e a cultura.

Encontra-se, também, nos mais diversos diplomas normativos das agências reguladoras. Assim, é farta a gama de dispositivos que preveem as audiências e consultas públicas, os conselhos, os debates e as ouvidorias nas leis instituidoras dessas autarquias sob regime especial.

Merece destaque a Lei Geral de Telecomunicações que contem previsão que determina que as minutas dos atos normativos da ANATEL precisam ser levadas à consulta pública para sufrágio popular. Tal requisito formalístico é fator limitador da discricionariedade da Agência.

A discricionariedade concedida às agências reguladoras não é um defeito da lei, mas uma opção do legislador, que, ao elaborar o texto legal, deixa ao administrador certa margem de liberdade para eleger, diante do caso concreto, qual a opção mais adequada entre pelo menos duas alternativas possíveis. Desta forma, o exercício pelas agências reguladoras de seu poder normativo encontra seu limite máximo na legalidade. Tudo que for feito à margem da legalidade não é discricionariedade e sim arbitrariedade. A discricionariedade pode advir do uso pela norma de conceitos jurídicos indeterminados, não se desconhecendo, entretanto, a forte doutrina germânica que defende que esses conceitos indeterminados não geram discricionariedade, já que sua interpretação levaria necessariamente a uma única solução correta.

Com a análise da estrutura lógico-formal da norma, pode-se afirmar, seguindo a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, que a discricionariedade pode localizar-se tanto na hipótese, no mandamento ou na finalidade da norma.

Isto posto, há que se ressaltar a inexistência de diferenças entre a discricionariedade administrativa e a discricionariedade técnica. A discricionariedade conferida às agências reguladoras não se diferencia da discricionariedade atribuída a qualquer outra atividade administrativa. Em função disso, entende-se prejudicial à compreensão da matéria a utilização da expressão discricionariedade técnica, revelando-se mais adequada a utilização da expressão apreciações técnicas.

 Os assuntos concernentes aos campos de atuação das agências reguladoras são caracterizados pela alta complexidade e especialidade, razão pela qual a conferência de discricionariedade para normatizar se justifica, não cabendo ao regulador determinar quais serão os objetivos visados ou decidir ou não decidir determinada matéria.

Ao normatizar determinado assunto, as agências reguladoras abrem mão de parte da sua discricionariedade, pois, ao fazê-lo, vinculam-se material e procedimentalmente ao quanto estabelecido. As agências não podem, portanto, afastar casuisticamente sua normatização. Logo, ao expedir atos normativos gerais a agência reguladora reduz a margem de discricionariedade a ela atribuída legalmente, não podendo descumprir casuisticamente a normatização por ela feita anteriormente, dado que, ao expedir seus regulamentos, vincula-se material e procedimentalmente a eles.

A Lei Geral de Telecomunicações possui dispositivo que obriga a ANATEL a submeter as minutas de seus atos normativos à consulta pública, momento em que se efetivará a participação dos usuários/cidadãos nas resoluções propostas pela agência.

Não há que se olvidar, entretanto, que a participação popular no Brasil ainda está longe de ser consciente e acessível à maioria do povo brasileiro. Isto porque inexiste no país uma cidadania ativa e consciente das discussões que devem ser efetuadas no espaço público. A falta de educação e cultura política impede que esta participação seja efetiva a ponto de orientar os rumos dos “assuntos de Estado”.

Esta situação é agravada quando estão em pauta assuntos regulados pelas agências, tendo em vista o alto grau de complexidade e especialidade daqueles. Dessa forma, tem-se que os institutos de participação popular estão longe de se efetivarem de fato, pois dependem da existência de uma cultura de participação, com cidadãos ativos e com uma Administração Pública instigadora e mediadora de conflitos no espaço público, dando especial importância à educação e formação política de seus cidadãos, capacitando-os para ocupação dos espaços públicos de discussão e decisão.   

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Sobre a autora
Marina Centurion Dardani

Advogada/Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP - Cogeae

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DARDANI, Marina Centurion. A participação do administrado como limite à discricionariedade das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4024, 8 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28684. Acesso em: 25 abr. 2024.

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