Ementa: Unidades de conservação. Criação. Lei ou Decreto. Incaducabilidade. Espaços territoriais cujos atributos naturais merecem especial proteção.
Palavras-chaves: SNUC. Decreto. Unidades de conservação. Caducabilidade.
A criação de unidades de conservação é um dos instrumentos de proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, macrobem que pertence a todos, cuja defesa e proteção é dever tanto do Poder Público quanto de toda sociedade (art. 225, §1º, III da CF).
Conquanto a criação de unidades de conservação, especialmente as de proteção integral, implique restrições gradativas ao direito de propriedade até sua extinção mediante processo expropriatório, há uma sistemática diferenciada entre a desapropriação prevista pelo Decreto-lei nº 3.365/41 e as desapropriações requeridas pela Lei nº 9.985/2000.
A primeira delas é que o interesse em criar unidades de conservação é estratégico e decorre da necessidade de preservar frações do território nacional com características naturais relevantes, que justifiquem a especial proteção, que exorbita o direito comum (art. 225, §1º, III c/c art. 2º, I da Lei nº 9.985/2000), levando em conta que um dos objetivos do Sistema Nacional Conservação é assegurar que nas UCs, no conjunto, estejam representadas amostras significativas e ecologicamente viáveis das diferentes populações, habitats e ecossistemas do território nacional (arts. 2º e 4º da Lei da Lei nº 9.985/2000)
Não é, portanto, em qualquer lugar do território nacional que deve ser criada uma unidade de conservação, pois não são todos os espaços que apresentam atributos naturais relevantes.
Nesse contexto, a tese que sustenta a caducidade dos Decretos criadores de unidades de conservação, à semelhança das desapropriações ordinárias por utilidade pública ou interesse social, peca por uma série de motivos, especialmente porque não se está em jogo apenas o direito de propriedade, mas também o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado que é pressuposto para a fruição, na sua plenitude, dos atributos de uma propriedade.
Se uma propriedade não cumpre sua função social, pode o Presidente da República declarar o interesse social sobre o imóvel mediante Decreto, desapropriando-o para fins de reforma agrária. O imóvel pode ser qualquer um: basta que seja uma grande propriedade improdutiva.
No Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a lógica é outra.
No SNUC, a desapropriação de imóveis se dá de forma gradativa no tempo, de forma a respeitar o direito de propriedade e a preservação de um ambiente natural sadio. Não se submete, portanto, a prazos de caducidade ou à disponibilidade orçamentária, sob pena de transformar o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado em um “direito na medida do orçamento disponível”.
Evidentemente, haveria nítido prejuízo à preservação ambiental se a criação de unidades de conservação fosse meramente potencial e estivesse na dependência de recursos orçamentários, cuja disponibilidade depende de outras variáveis, como a arrecadação, a vinculação de receitas e as prioridades políticas de onde aplicar o dinheiro, que são escolhidas pela população periodicamente nas urnas.
O próprio ordenamento jurídico reconhece que os Decretos que criam unidades de conservação não caducam e que desapropriação para regularização fundiária das unidades de conservação se dá de forma gradativa no tempo.
A primeira observação é que existem unidades de conservação que comportam, no seu interior, a existência de propriedades privadas, a exemplo de Áreas de Proteção Ambiental – APAs, Áreas de Relevante Interesse Ecológico – ARIEs ou Monumentos Naturais – Monas. Se os imóveis privados situados nessas unidades não serão desapropriados, os Decretos de criação dessas unidades, naturalmente, não se submeterão a nenhum prazo de decadência.
Essa mesma situação se repetira no que diz respeito à unidades de conservação criadas mediante lei (art. 225, §1º, III da CF), que só perdem vigência quando revogadas ou declaradas inconstitucionais.
Assim, admitir a procedência da tese da caducabilidade equivaleria a admitir um Sistema Nacional de Unidades de Conservação pela metade, em que algumas unidades caducariam e outras não, a depender da natureza do seu ato de criação. Um nonsense.
Por não se submeter a prazos decadenciais, a regularização fundiária do território das unidades de conservação se dá de forma paulatina no tempo. A gradatividade do processo de regularização fundiária fica evidente em alguns dispositivos legais. O mais claro deles é o art. 66, §5º, III do Código Florestal, que, ao cuidar da compensação de reserva legal, reconheceu que é perfeitamente possível a existência de unidades de conservação pendentes de regularização fundiária, in verbis:
“Art. 66. O proprietário ou possuidor de imóvel rural que detinha, em 22 de julho de 2008, área de Reserva Legal em extensão inferior ao estabelecido no art. 12, poderá regularizar sua situação, independentemente da adesão ao PRA, adotando as seguintes alternativas, isolada ou conjuntamente:
(...)
III - compensar a Reserva Legal.
(...)
§ 5º A compensação de que trata o inciso III do caput deverá ser precedida pela inscrição da propriedade no CAR e poderá ser feita mediante:
(...)
III - doação ao poder público de área localizada no interior de Unidade de Conservação de domínio público pendente de regularização fundiária;
Se alguma dúvida ainda poderia haver sobre a não submissão dos Decretos que criam unidades de conservação a prazos de decadência, a Lei nº 11.651/2012, que é posterior á Lei do SNUC, pacificou o entendimento no mesmo sentido da tese da incaducabilidade dos Decretos.
Com efeito, defender que os decretos criadores de unidades de conservação caducam também implica negar vigência ao Código Florestal e anular uma política pública que fomenta doações para regularização da reserva legal em imóveis rurais em todo território nacional.
Outrossim, a técnica legislativa, em matéria de desapropriações, deixa bastante clara a existência de prazos de caducidade sobre os Decretos Presidenciais. Perceba-se a diferença, quando a lei prevê prazo de decadência, como no art. 10 do Decreto-lei nº 3365/41:
“Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará” (grifo nosso)
É bem diferente, por exemplo, da hipótese do art. 11, §1º da Lei nº 9985/2000, quando a lei não prevê qualquer lapso temporal:
“Art. 11. O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.
§ 1º O Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei” (grifo nosso)
Pode-se definir caducidade como “a perda dos efeitos jurídicos de um ato em decorrência de certa situação fática ou jurídica mencionada expressamente em lei”.[1] No caso específico da desapropriação por utilidade pública, é o decurso de um quinquênio sem que o Poder Público ajuíze ação expropriatória ou firme acordo. No caso das desapropriações para fins de regularização fundiária de unidades de conservação, simplesmente não existe causa expressa de caducidade.
É por isso mesmo que as restrições à fruição dos imóveis inseridos em unidades de conservação decorrem, não do ato formal que os declara como de utilidade publica ou de interesse social, mas sim da tônica preservacionista que impede uma exploração dissonante das limitações de cunho ambiental previstas na Lei do SNUC. É dizer: no caso da implementação de unidades de conservação, o Estado não busca desapropriar por uma utilidade pública, em prevalência do interesse público sobre o privado, mas propriamente por uma utilidade difusa.
De outro giro, sendo a declaração expropriatória “a manifestação emitida pelas pessoas federativas no sentido de expressar a vontade de transferir determinado bem para seu patrimônio, ou para pessoa delegada, com o objetivo de executar atividade de interesse público previsto em lei”,[2] a razão fundamental que justifica sua exigência é a vinculação da coisa a uma finalidade pública. E tal vinculação, ao menos na generalidade das desapropriações, origina-se de uma manifestação volitiva do Poder Público em incorporar um bem específico, mediante ato eminentemente discricionário.
Nesses casos, a caducidade representaria a libertação do particular das razões de conveniência e oportunidade que ensejaram o interesse da Administração sobre o bem. Esse raciocínio, porém, não vale para o interesse ambiental na destinação de espaços territoriais. Como bem esclarece Edis Milaré, “a partir da Constituição de 1988, não mais tem o Poder Público uma mera faculdade na matéria, mas está atado por verdadeiro dever. Quanto à possibilidade de ação positiva de defesa e preservação, sua atuação transforma-se de discricionária em vinculada. Sai da esfera da conveniência e oportunidade para se ingressar num campo estritamente delimitado: defender e proteger o meio ambiente".[3]
Por tudo isso, é próprio do sistema nacional de unidades de conservação a impossibilidade de submissão dos Decretos criadores desses espaços especialmente protegidos a quaisquer prazos de caducidade, sob pena de conferir uma proteção deficiente ao meio ambiente, por deixar de cumprir o mandamento do art. 225, §1º, III da Constituição da República.
Notas
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 685.
[2]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 682.
[3] MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.188.