Artigo Destaque dos editores

A relevância dos dados do IPEA quanto à responsabilização da mulher vítima de estupro

22/07/2014 às 16:22
Leia nesta página:

Após a retificação dos resultados da pesquisa do IPEA no que tange à responsabilização das mulheres pelos ataques sexuais sofridos, imprescindível questionar qual a verdadeira relevância desses resultados para a diminuição da violência contra as mulheres.

 O IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, divulgou no dia 27 de março deste ano pesquisa sobre a "Tolerância social à violência contra as mulheres" que constatou que a maioria dos brasileiros, concorda, total ou parcialmente, que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas" (65,1%) e que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” (58,5%). Os resultados causaram grande alvoroço nas redes sociais e na mídia com manifestações em grande escala.

Logo em seguida, o IPEA assumiu o erro na divulgação da pesquisa e apontou que o percentual correto de brasileiros que concordam, total ou parcialmente, que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas" seria de 26% e não mais de 65,1%. A diferença entre os resultados divulgados foi tão significativa que suscitou dúvidas quanto à sua veracidade. Afinal, diante de tanta polêmica, opiniões divergentes e manifestações, qual a relevância dessa pesquisa no que tange à responsabilização da mulher vítima de estupro?

É inquestionável que após a correção dos percentuais os ânimos se acalmaram e o assunto foi encerrado. Será que a diminuição do percentual da pesquisa tornou a constatação de alguma forma aceitável? Provavelmente. Apesar do equívoco na divulgação dos percentuais, o resultado quanto à concordância de 58,5% dos entrevistados de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” continua válido. Portanto a resposta dos brasileiros confirmou a sobrevivência do pensamento machista e da equivocada premissa de que as mulheres são responsáveis pelos atos impensados dos homens, ou seja, eles não teriam autocontrole ao se deparar com uma mulher com comportamentos supostamente provocantes. A culpa pelo mau comportamento sexual do homem seria da mulher.

Segundo o IPEA, a violência de gênero seria um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. A cultura do machismo, ainda existente no Brasil e disseminada muitas vezes de forma implícita, colocaria a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que terminaria legitimando e incentivando diversos tipos de violência, dentre os quais o estupro. Essa cultura tem como consequencia direta a responsabilização das mulheres pela conduta de seus estupradores e, por conseguinte, a aceitação social dessa conclusão. Já para a mulher, vítima de estupro, essa responsabilização pode ser classificada como uma verdadeira tortura psicológica, afinal, além de todas as mazelas físicas e psicológicas da violência sexual sofrida, ela precisa conviver com a punição extraoficial da sociedade machista pelo comportamento doentio do seu estuprador.

A violência contra a mulher possui caráter complexo e possui estreita relação com a questão de gênero e sua relação de poder. Apesar da dificuldade da desconstrução dessa cultura de violência contra a mulher, grandes mudanças ocorreram no Brasil ao longo dos anos. A partir de 2009, o estupro, que até então era considerado crime contra os costumes, passou a ser classificado como um crime contra a dignidade e liberdade sexual das pessoas (tanto do homem quanto da mulher), ou seja, o bem jurídico tutelado agora é a liberdade sexual e não mais a conduta sexual adaptada às convenções sociais. Ademais, a articulação social em movimentos próprios resultou em uma série de conquistas, dentre as quais, a aprovação da Lei Maria da Penha, que criou instrumentos de combate e prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Diante dessas considerações, a relevância da pesquisa quanto à responsabilização da mulher pelo seu próprio estupro consiste em incentivar a reflexão e a busca de soluções de médio e longo prazo para mudar essa dinâmica. Tornou-se irrelevante o percentual dos brasileiros que concorda com a premissa de que as mulheres que se vestem de forma provocante merecem ser atacadas. A realidade é que ainda há brasileiros com essa mentalidade. Por certo a desconstrução paulatina da cultura patriarcal brasileira terá como consequencia a mitigação da responsabilização das mulheres pela conduta dos seus agressores sexuais. Trata-se de um grande desafio que exige a atuação conjugada da sociedade civil e do Estado, com intensivas políticas públicas, campanhas publicitárias e com movimentos sociais organizados para a diminuição da histórica desigualdade baseada no gênero. Um ordenamento jurídico adequado em consonância com as expectativas da sociedade também é essencial. Essas medidas não solucionarão a questão de imediato, porém são passos importantes na longa caminhada pelo fim da desvalorização da mulher brasileira e da absurda aceitação implícita da violência sexual contra as mulheres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Reinaldo Rossano. Direito Processual Penal/Reinaldo Rossano Alves. – 7 ed. rev. atual. e ampl. – Niterói, RJ: Impetus, 2010.

BRASIL. DECRETO-LEI 2.848/1940. CÓDIGO PENAL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 31/03/14.

BRASIL. DECRETO-LEI 3.689/41. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 01/04/14.

BRASIL. LEI 8.072/1990. LEI DE CRIMES HEDIONDOS. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072compilada.htm. Acesso em: 31/03/14.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

BRASIL. LEI 11.340/06. LEI MARIA DA PENHA. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 31/03/14.

BRASIL. GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Violência contra a mulher: políticas públicas e medidas protetivas na contemporaneidade. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao21/materia03/ Acesso em: 30/03/14.

BRASIL. IPEA. Notícias. “Crianças e Adolescentes são 70% das vítimas de estupro”. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21849&catid=8&Itemid=6. Acesso em: 30/03/14.

BRASIL. IPEA. Nota Técnica nº 11 “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde”.  Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf. Acesso em: 30/03/14.

BRASIL. IPEA. SIPS sobre a “Tolerância social à violência contra as mulheres”. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf. Acesso em: 30/03/14.

BRASIL. IPEA. Errata sobre a pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21971. Acesso em 27/05/14.

BRASIL. Senado debateu pesquisas do IPEA sobre violência sexual. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=22050. Acesso em 27/05/14.

BRASIL. STF. Supremo julga procedente ação da PGR sobre Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199853 . Acesso em: 01/04/14.

DIP, Andrea. A PUBLICA. A condenação das vítimas. Disponível em: http://www.apublica.org/2012/01/condenacao-das-vitimas/. Acesso em: 01/04/14.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III/Rogério Greco. 6 ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2009.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense. 1956. v. VIII.

MARCHA DAS VADIAS. Sobre a Marcha das Vadias DF. Disponível em: http://marchadasvadiasdf.wordpress.com/sobre/ Acesso em: 30/03/14.

NOTÍCIAS R7. Brasiliense cria movimento “Eu não mereço ser estuprada” que já tem quase 45 mil adesões. http://noticias.r7.com/distrito-federal/brasiliense-cria-movimento-eu-nao-mereco-ser-estuprada-que-ja-tem-quase-45-mil-adesoes-31032014. Acesso em: 31/03/14.

__________________. Dilma apoia protestos de mulheres contra o estupro e se solidariza com jornalista ameaçada. Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/dilma-apoia-protestos-de-mulheres-contra-o-estupro-e-se-solidariza-com-jornalista-ameacada-31032014. Acesso em: 31/03/14.

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual/Guilherme de Souza Nucci. – 4 ed. rev., ampl. e atual – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

PATROCÍNIO, Carol. PORTAL NEWS. De quem é a culpa pela violência contra a mulher. Disponível em: http://www.portalnews.net.br/brasil/7929-de-quem-e-a-culpa-da-violencia-contra-a-mulher.html Acesso em: 30/03/14.

ZACARIAS, André Eduardo de Carvalho... [et al.]. Maria da Penha – Comentários à Lei nº 11.340-06/André Eduardo de Carvalho Zacarias... [et. al.]. – Anhanguera Editora Jurídica – Leme/SP – Edição 2013.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Lívia Magalhães

Advogada especializada em Direito Criminal, Direito de Família e Direito Constitucional.<br><br>Sócia do escritório MAGALHÃES & DUARTE ADVOCACIA.<br> <br>Coordenadora de Execução Penal da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB/DF. <br><br>Diretora Jurídica do Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Lívia. A relevância dos dados do IPEA quanto à responsabilização da mulher vítima de estupro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4038, 22 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28930. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos