O IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, divulgou no dia 27 de março deste ano pesquisa sobre a "Tolerância social à violência contra as mulheres" que constatou que a maioria dos brasileiros, concorda, total ou parcialmente, que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas" (65,1%) e que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” (58,5%). Os resultados causaram grande alvoroço nas redes sociais e na mídia com manifestações em grande escala.
Logo em seguida, o IPEA assumiu o erro na divulgação da pesquisa e apontou que o percentual correto de brasileiros que concordam, total ou parcialmente, que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas" seria de 26% e não mais de 65,1%. A diferença entre os resultados divulgados foi tão significativa que suscitou dúvidas quanto à sua veracidade. Afinal, diante de tanta polêmica, opiniões divergentes e manifestações, qual a relevância dessa pesquisa no que tange à responsabilização da mulher vítima de estupro?
É inquestionável que após a correção dos percentuais os ânimos se acalmaram e o assunto foi encerrado. Será que a diminuição do percentual da pesquisa tornou a constatação de alguma forma aceitável? Provavelmente. Apesar do equívoco na divulgação dos percentuais, o resultado quanto à concordância de 58,5% dos entrevistados de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” continua válido. Portanto a resposta dos brasileiros confirmou a sobrevivência do pensamento machista e da equivocada premissa de que as mulheres são responsáveis pelos atos impensados dos homens, ou seja, eles não teriam autocontrole ao se deparar com uma mulher com comportamentos supostamente provocantes. A culpa pelo mau comportamento sexual do homem seria da mulher.
Segundo o IPEA, a violência de gênero seria um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. A cultura do machismo, ainda existente no Brasil e disseminada muitas vezes de forma implícita, colocaria a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que terminaria legitimando e incentivando diversos tipos de violência, dentre os quais o estupro. Essa cultura tem como consequencia direta a responsabilização das mulheres pela conduta de seus estupradores e, por conseguinte, a aceitação social dessa conclusão. Já para a mulher, vítima de estupro, essa responsabilização pode ser classificada como uma verdadeira tortura psicológica, afinal, além de todas as mazelas físicas e psicológicas da violência sexual sofrida, ela precisa conviver com a punição extraoficial da sociedade machista pelo comportamento doentio do seu estuprador.
A violência contra a mulher possui caráter complexo e possui estreita relação com a questão de gênero e sua relação de poder. Apesar da dificuldade da desconstrução dessa cultura de violência contra a mulher, grandes mudanças ocorreram no Brasil ao longo dos anos. A partir de 2009, o estupro, que até então era considerado crime contra os costumes, passou a ser classificado como um crime contra a dignidade e liberdade sexual das pessoas (tanto do homem quanto da mulher), ou seja, o bem jurídico tutelado agora é a liberdade sexual e não mais a conduta sexual adaptada às convenções sociais. Ademais, a articulação social em movimentos próprios resultou em uma série de conquistas, dentre as quais, a aprovação da Lei Maria da Penha, que criou instrumentos de combate e prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Diante dessas considerações, a relevância da pesquisa quanto à responsabilização da mulher pelo seu próprio estupro consiste em incentivar a reflexão e a busca de soluções de médio e longo prazo para mudar essa dinâmica. Tornou-se irrelevante o percentual dos brasileiros que concorda com a premissa de que as mulheres que se vestem de forma provocante merecem ser atacadas. A realidade é que ainda há brasileiros com essa mentalidade. Por certo a desconstrução paulatina da cultura patriarcal brasileira terá como consequencia a mitigação da responsabilização das mulheres pela conduta dos seus agressores sexuais. Trata-se de um grande desafio que exige a atuação conjugada da sociedade civil e do Estado, com intensivas políticas públicas, campanhas publicitárias e com movimentos sociais organizados para a diminuição da histórica desigualdade baseada no gênero. Um ordenamento jurídico adequado em consonância com as expectativas da sociedade também é essencial. Essas medidas não solucionarão a questão de imediato, porém são passos importantes na longa caminhada pelo fim da desvalorização da mulher brasileira e da absurda aceitação implícita da violência sexual contra as mulheres.
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