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Convenção de Varsóvia x Código de Defesa do Consumidor - o Recurso Extraordinário 636.331 /RJ e sua repercussão em matéria de responsabilidade civil no transporte aéreo internacional

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31/05/2014 às 16:22
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A importância do Recurso Extraordinário n.º 636.331 é indiscutível, pois seu julgamento repercutirá de forma muito significativa em matéria de limitação, ou não, da responsabilidade por danos no transporte aéreo internacional.

RESUMO: A propositura do Recurso Extraordinário n.º 636.331/RJ, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, traz à baila a grande divergência dos tribunais brasileiros acerca do tema responsabilidade civil no transporte aéreo internacional, os quais, majoritariamente, têm aplicado o Código de Defesa do Consumidor (CDC) em detrimento da Convenção de Varsóvia (1929). O objetivo do presente artigo é analisar os argumentos jurídicos deste caso, tendo por base as principais peças processuais produzidas pelas partes e que ensejam discussões sobre a limitação de indenização de danos matérias por extravio de bagagem, presente no citado diploma internacional, e a reparação integral prevista no CDC.

PALAVRAS-CHAVE: Recurso Extraordinário n.º 636.331. Responsabilidade Civil no Transporte Aéreo Internacional. Código do Consumidor. Convenção de Varsóvia.


1. INTRODUÇÃO

O tema “responsabilidade civil no transporte aéreo internacional”, tem sido, sem dúvida, frequentemente abordado pelos juristas nos últimos tempos, especialmente após o advento do Código de Defesa do Consumidor (CDC) - Lei 8.078/90 - e da crescente expansão da utilização do transporte aéreo no Brasil.

Temos, inclusive, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), o Recurso Extraordinário (RE) nº 636.331/RJ, em que figuram como partes uma passageira que teve sua bagagem extraviada, a Sra. Sylvia Regina de Moraes Rosolem, que ajuizou uma ação na Comarca da Capital do Rio de Janeiro, em face da Sociéte Air France - companhia aérea francesa que opera no Brasil - tendo como objeto o pedido de indenização por danos materiais e morais em decorrência do infortúnio.

Após a sentença de primeira instância, que julgou parcialmente procedente o pedido, e após sucessivos trâmites processuais que culminaram no recurso extraordinário em comento, almeja-se que nossa Corte Maior traga uma resposta definitiva acerca de um tema controverso em nossos Tribunais.

Ressalta-se que, na maior parte dos julgados, os tribunais brasileiros têm determinado a aplicação do CDC em detrimento da Convenção de Varsóvia de 1929 e instrumentos posteriores – Protocolo de Haia de 1955, Convenção de Guadalajara de 1961, Protocolo de Guatemala de 1971 e Protocolo de Montreal de 1975 - (Sistema Varsóvia), que foi substituída pela Convenção de Montreal de 1999, (art. 55 do Decreto nº 5.910, de 27 de setembro de 2006) [1], ambas ratificadas pelo Brasil.

Também é essencial frisar que já houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a Convenção de Varsóvia e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90 - CDC), conforme contido na decisão monocrática da lavra da Ministra Carmem Lúcia no Agravo de Instrumento nº 715.877/SP [2], em que asseverou o seguinte:

Decisão: (...) A jurisprudência do Supremo Tribunal federal firmou-se no sentido de que no caso específico de contrato de transporte internacional aéreo prevalece a Convenção de Varsóvia em detrimento do Código de Defesa do Consumidor, nos termos do art. 178 da Constituição da república, devendo, portanto, a responsabilidade por dano material no transporte internacional de carga ser a tarifada e não a integral.(...)

Trata-se de julgado importante do ano de 2009, pois reconhece que a Convenção de Varsóvia prevalece sobre o CDC em questões consumeristas, indicando um caminho interpretativo que materializa a visão divergente do Poder Judiciário Brasileiro sobre um tema de extrema relevância e que possui o condão de uniformizar a nossa jurisprudência.

Por este motivo, o julgamento do Recurso Extraordinário em análise é de vital importância, e para que se compreenda melhor seu objeto, optou esta autora por analisar as peças processuais disponibilizados no site do STF[3], e, após, realizar uma abordagem dos três aspectos que sintetizam a base jurídica e sistêmica das argumentações propostas.

Desta forma, buscou-se traçar uma linha de raciocínio que nos permita chegar a uma conclusão mais apurada, avaliando os principais argumentos das partes envolvidas na demanda judicial.

Passemos então adiante.


2. DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 636.331/RJ

2.1 DO CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO DE BAGAGENS

 Inicialmente, vale a pena tecer breves considerações acerca do denominado contrato de transporte aéreo de bagagens que, como bem asseverado por Marco Fábio Morsello[4], caracteriza-se como aquele em que uma das partes se obriga a transportar de um ponto a outro, conjuntamente com o passageiro, seus pertences.

Trata-se de um contrato de caráter acessório, pois não se vislumbraria a bagagem, despachada ou não, sem o beneficiário titular do transporte aéreo.

Deve-se fazer uma diferenciação entre bagagem despachada, que é aquela que é custodiada de forma exclusiva pelo transportador, por meio da nota de bagagem e que é limitada por quilo, havendo a possibilidade de o passageiro arcar com despesas adicionais resultantes do peso excedente.

A bagagem não despachada, também denominada bagagem de mão, é aquela que, durante a viagem, fica em posse do passageiro, possuindo, também, limitações de peso pelas empresas aéreas.

A Convenção de Varsóvia - em vigor em nosso país pelo Decreto nº 20.704, de 24 de novembro de 1931 – prevê, no art. 22, patamar indenizatório máximo para destruição, perda ou avaria de bagagens, no patamar de 250 francos-Poincaré ou 17 Direitos Especiais de Saque (DES) – cerca de US$ 22,61(vinte e dois dólares e sessenta e um centavos) - por quilograma.

A Convenção de Montreal – em vigor pelo Decreto nº 5.910 de 27/09/2006 - trouxe inovações no tocante aos valores indenizatórios, como a desvinculação da quantia a ser indenizada de acordo com o peso da bagagem, por passageiro, com limite de 1000 DES – cerca de US$ 1.330,00 (mil trezentos e trinta dólares) - exceto por declaração especial, dolo ou culpa grave do transportador.

A declaração de bagagem especial, no momento do check in, através do pagamento de uma taxa, é aquela realizada pelo passageiro, a fim de evitar a aplicação de limites indenizatórios, pois, neste caso, haveria o ressarcimento integral do valor declarado.

Ressalta-se que, no tocante ao transporte aéreo doméstico, prevalece o definido no Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 19/12/86) que possui valores específicos de indenização diferentes das convenções internacionais, e que é definido em seu art. 215, como aquele em que os pontos de partida e de destino estejam situados em território nacional, e, que, portanto, não se aplica ao caso em estudo.

2.2 SÍNTESE DO CASO

A análise da matéria contida no Recurso Extraordinário em comento foi feita através de peças processuais disponíveis na página do Supremo Tribunal Federal, e que consistem nos seguintes documentos: sentença (ação distribuída na 4ª vara cível da Comarca da Capital do Rio de Janeiro), Recurso de Apelação das partes, acórdão da 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Recurso Extraordinário da Société Air France, três petições de terceiros e o parecer do Ministério Público Federal. 

O cerne da questão gira em torno do pedido da autora, que, em viagem realizada em 03 de outubro de 2005, no voo AF443, tendo como ponto de partida o Brasil e ponto de destino Madrid, na Espanha, com conexão em Paris, teve sua bagagem extraviada.

Inconformada com a reparação que lhe foi oferecida pela Companhia Aérea, ajuizou ação de reparação na Capital do Rio de Janeiro, protocolada sob o n.º 2006.001.006759-0, requerendo ressarcimento no valor de R$ 1.165,98 (mil cento e sessenta e cinco reais e noventa e oito centavos) a título de despesas extras ocasionadas pelo infortúnio, acrescidas de R$ 7.171, 00 (sete mil cento e setenta e um reais) referentes ao conteúdo da bagagem, bem como indenização por danos  morais em valor a ser arbitrado pelo juiz da causa.

A sentença de primeiro grau, prolatada em 29 de março de 2007, foi parcialmente procedente, decidindo pela aplicação da convenção de Varsóvia no que tange a limitação do valor do dano material (1000 USD) e condenando a companhia aérea a ressarcir a autora pelos critérios da Convenção de Varsóvia (proporcional ao peso da mala – 20 quilos) e o valor do dano moral foi arbitrado em R$ 6.000,00 (seis mil reais).

Inconformadas com a decisão, as partes recorreram em sede de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

A Sociéte Air France, em seu recurso, afirmou ter havido força maior, fator excludente de responsabilidade, pela ocasião de uma greve geral ocorrida na França na data do evento (04/10/2005); tendo também asseverado que a passageira abriu mão de sua bagagem quando informou que, caso a mesma fosse encontrada, devia ser despachada para o Brasil e que não houve dano moral a ser reparado.

Já a passageira, em sua apelação, alega ter sido tímida a condenação por danos morais, pretendendo a majoração do seu quantum, afirmando ter tentado solucionar a questão por via administrativa, sem sucesso.

O acórdão, datado de 05 de dezembro de 2007, em que figurou como relator o desembargador Roberto Guimarães, deu parcial provimento ao recurso da autora e negou provimento ao recurso do réu aduzindo que na relação contratual de transporte aéreo deve ser aplicado o CDC.

Para fundamentar seu voto, o relator menciona, como um de seus argumentos, os critérios da especialidade e anterioridade para resolução de antinomias, previstos na Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 04/09/1942 - a partir da Lei nº 12.376, de 2010, denomina-se de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) - conforme transcrito no trecho abaixo:

Decisão: (...) Dessa forma, dispondo as duas normas de maneira diversa, deve-se resolver a antinomia, com base na orientação constante da Lei de Introdução ao Código Civil, observando-se os critérios da hierarquia, especialidade e anterioridade, para afastar do caso concreto a aplicação de uma das normas conflitantes. Ressalte-se, inicialmente, que o Código de Defesa do Consumidor é lei especial, porquanto só ele regula as relações de consumo, de modo que, uma vez indicada a mencionada relação, deverá ele incidir, ainda que exista outra legislação especial tratando da matéria, no caso, a convenção de Varsóvia e o Código do Ar. Acrescente-se que o Código do Consumidor retrata a vontade mais recente do legislador, adequando-se melhor às situações presenciadas atualmente, trazendo diversas inovações, dentre elas a responsabilidade objetiva na reparação dos danos decorrentes do contrato de transporte, de forma que a Convenção de Varsóvia, estabelecida em época em que o transporte aéreo era pouco frequente, espelha concepção já superada pelas exigências atuais (...)

A decisão acima foi no sentido de condenar a ré ao ressarcimento do valor pedido a título de danos materiais que foi de R$ 7.171, 00 (sete mil cento e setenta e um reais) e majorar o valor da indenização por danos morais para R$ 10.000,00 (dez mil reais).

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Diante do resultado desfavorável, a Société Air France, ingressou com Recurso Extraordinário (RE), ressaltando a importância do objeto da ação devido ao comprometimento do governo brasileiro no âmbito internacional.

Após o RE ser admitido no Supremo Tribunal Federal, ingressaram como amicus curiae – expressão que pode ser traduzida como “amigo da corte”, que consiste num terceiro que se manifesta no processo com o fito de influenciar na decisão final - a International Air Transport Association (IATA), a International Union of Aerospace Insurers (IUAI) e a Companhia American Airlines, pela Recorrente; e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) pelo Recorrido, demonstrando a relevância na matéria posta sub judice e a repercussão que ultrapassa a esfera das partes, na mais clara acepção do instituto da repercussão geral[5].

O parecer do Ministério Público Federal foi no sentido de prevalência das regras do CDC, que não prevê limitação de indenização por danos materiais, em detrimento da aplicação da Convenção de Varsóvia.

2.3 ANÁLISE DO CASO

Após esse breve relato, asseveramos o seguinte:

Para uma análise mais apurada cinge-se lançar um olhar sob três aspectos primordiais que constituirão um triângulo de sustentação do sistema da limitação indenizatória em matéria de responsabilidade civil no transporte aéreo internacional.

2.3.1 ASPECTO CONSTITUCIONAL

O primeiro aspecto é concernente ao direito constitucional, pois se refere à aplicabilidade do art. 178 da Constituição Federal de 1988(CF/88):

A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1995).

A questão da aplicabilidade do art. 178 da CF/88 às pretensões indenizatórias relativas ao transporte aéreo internacional em detrimento do Código de Defesa do Consumidor é divergente, já tendo sido apresentados posicionamentos no STF nos dois sentidos, não somente no julgado citado no início deste artigo, publicado em abril de 2009, mas também no RE 351.750-3/RJ, julgado pela 1ª Turma em 17 de março de 2009, com publicação no DJe em 25 de setembro de 2009[6].

Este julgamento, concluído em 2009, traz, no conteúdo dos votos dos seus ministros, uma série de pontos para debate, que serão tratados a seguir, como uma forma de lançar luz sobre o tema sob o aspecto constitucional.

O primeiro ponto diz respeito ao alcance do art. 178 da CF/88, no que tange à sua aplicabilidade à relação consumidor-transportador aéreo internacional.

O Ministro Carlos Aires Britto, em voto proferido neste julgamento, manifestou sua opinião no sentido de restringi-lo, chegando a afirmar que o art. 178 da CF/88 refere-se somente à ordenação do transporte internacional, a qual deve ser entendida como “providências alusivas à higiene, à salubridade, à segurança, à manutenção das aeronaves, ao tempo de uso, à duração de voo (...). Não para negar direitos do consumidor, que têm matriz constitucional”.

A nosso sentir, o previsto no art. 178 não traz em seu bojo qualquer restrição e abrange às questões atinentes à relação entre o transportador e o consumidor, decorrentes de contrato de prestação de serviço de transporte, pois o mesmo se constitui em atividade fim deste ramo de mercado, que se constitui de serviço da mais alta relevância.

O conceito de atividade-fim é essencial para diluir a questão, pois os outros aspectos citados pelo ilustre Ministro, como duração do voo, por exemplo, envolvem também o referido contrato de prestação de serviço.

Ademais, independente do fato do consumidor ser parte nesta relação, pois a ordem jurídica constitucional prevista do artigo 170 da Carta Magna o protege, o faz também, em patamar de igualdade e no mesmo artigo, em relação à livre iniciativa.

Acrescente-se que, no tocante ao transporte aéreo, busca-se, por parte daquele que atua em tal seguimento e assume os riscos desta atividade custosa e complexa e de altíssima relevância social, o mínimo de segurança jurídica que garanta sua viabilidade.

Conclui-se, então, que a proteção ao consumidor não deve se dar de forma absoluta, mas deve-se buscar sua harmonização, com a previsão do art.170 da CF/88, aos tratados internacionais sobre transporte aéreo (art. 178 da CF/88).

O segundo ponto diz respeito ao critério da especialidade, previsto no art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. º 4.657/1942), descrito abaixo:

Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

A pergunta que se coloca é a seguinte: diante do princípio da especialidade, como critério de resolução de antinomias, deve-se considerar como lei especial, e, portanto, com prevalência sobre lei geral, o CDC ou a Convenção de Varsóvia?

Para dirimir a questão, como bem asseverado pelo Ministro Eros Grau[7], trata-se de verificar que uma lei trata do consumidor de forma geral, e a outra, de relações atinentes a determinado segmento da economia (aviação civil internacional), que abarca, inclusive, as relações de consumo, como exposto abaixo:

 Não há incompatibilidade entre os textos normativos considerados, porque um é geral em relação ao outro: a primeira trata da defesa do consumidor [compreensão menor e extensão maior]; as segundas, da relação entre os agentes econômicos e seus clientes em determinado mercado [setor da economia], disciplinando, inclusive, aspectos atinentes a sua defesa enquanto consumidores. Assim, temos: uma lei geral, sobre a defesa dos consumidores e textos normativos específicos que encerram, entre outras, disposições sobre a defesa do consumidor em determinado mercado [setor da economia].

Em realidade, como muito bem exposto na manifestação da IATA como amicus curiae, não poderia haver inconstitucionalidade na própria Carta Maior, atentando para os princípios da força normativa e da unidade da constituição.

A aplicação do método hermenêutico-clássico, propugnado por Savigny é ainda utilizada nos dias atuais, convivendo com os critérios da moderna hermenêutica, o que demonstra a importância de se considerar a constituição como um conjunto sistemático.

Portanto, doutrinariamente, tem respaldo a interpretação que considera o Código de Defesa do Consumidor como lei geral quando tratar de matéria de transporte internacional, fazendo prevalecer as Convenções internacionais pertinentes.

2.3.2 ASPECTO INTERNACIONAL

O segundo é relativo ao direito internacional, especialmente o Direito dos Tratados, partindo-se da premissa da existência de regras internacionais, voluntariamente aceitas por cada Estado, e cuja conduta de obediência à suas disposições reflete positivamente na comunidade internacional.

A Convenção de Viena de 1969 assevera, em seu art. 27, que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.

E, conforme acertadamente asseverado pelo ilustre André de Carvalho Ramos[8]:

Logo, para o direito internacional, os atos normativos internos (leis, atos administrativos e mesmo decisões judiciais) são expressões da vontade de um Estado, que devem ser compatíveis com seus engajamentos internacionais anteriores, sob pena de ser o Estado responsabilizado internacionalmente. Consequentemente, um Estado não poderá justificar o descumprimento de uma obrigação internacional em virtude de mandamento interno, podendo ser coagido (com base na contemporânea teoria da responsabilidade internacional do Estado a reparar os danos causados). Tal entendimento deve estar nas mentes de todos os operadores do direito interno, em especial os membros dos órgãos de cúpula do Estado brasileiro.

Ademais, vale ressaltar o espírito dos parlamentares brasileiros ao justificar a aprovação do Projeto do Decreto Legislativo n.º 20, de 2006 (expresso no Parecer n.º 272, de 2006) que introduziu em nosso ordenamento jurídico a Convenção de Montreal, a qual, apesar de não estar em vigor à época do fato objeto do RE 636.331/RJ, cuja incidência era da Convenção de Varsóvia e guardadas as devidas modificações, reproduziu o sistema de limitação de danos em comento.

Vejamos abaixo:

(...)II- Análise :

 A Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) foi criada em 1944 com o objetivo de promover o desenvolvimento seguro e ordenado da aviação civil em todo o mundo. Trata-se de instituição especializada da Organização das Nações Unidas e tem por competência produzir normas e regulamentos internacionais necessário à segurança, eficácia e regularidade do transporte aéreo. Atualmente a organização conta com mais de 180 Estados-membros e contribui para a cooperação no âmbito da aviação civil.           

O tratado em apreço tem por objetivo principal a unificação de regulamentos já existentes relacionados ao transporte aéreo internacional. Seu texto envolve normas sobre documentação e obrigações das Partes relativas a transporte de passageiros, bagagens e cargas; responsabilidade e medidas de indenização em caso de morte e lesão de passageiros, danos a bagagens e a cargas e atrasos na prestação dos serviços de transporte aéreo.Trata, ainda, de questões referentes a reclamações,cláusulas contratuais, jurisdição e ações contra companhias aéreas, dentre outros aspectos fundamentais para as relações comerciais e de consumo envolvendo a aviação civil.

No caso do Brasil, país com importante frota aérea civil, o tratado em apreço vai ao encontro dos interesses brasileiros, ao inserir o País em um regime mais moderno de regulamentação do transporte aéreo de cargas e passageiros.

A exposição de motivos acima, num trecho específico, reconhece, de forma explícita, que a Convenção de Montreal, trata, sim, das relações de consumo quando assevera: “Trata, ainda, de questões referentes a reclamações, cláusulas contratuais, jurisdição e ações contra companhias aéreas, dentre outros aspectos fundamentais para as relações comerciais e de consumo envolvendo a aviação civil”- o que não pode ser negado pelo Estado Brasileiro, pelo princípio da boa-fé que deve reger as relações internacionais.

Na hipótese do Brasil não ter vislumbrado a aplicação de tal norma em relações de consumo, para que não houvesse conflito com o CDC, o qual prevê a reparação integral do dano, deveria ter se utilizado do instituto da reserva, que “significa uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado; a fim de restringir a aplicabilidade de alguns dispositivos”, conforme prevê o art. 2º, 1, d, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados(1969), o que não ocorreu.

Por derradeiro, sob a égide do direito internacional, a Convenção de Varsóvia é plenamente aplicável ao caso em estudo, por versar sobre responsabilidade civil do transportador aéreo internacional por extravio de bagagem, em consonância com o citado art. 178 da Constituição Federal.

2.3.3 ASPECTO DAS FONTES DO DIREITO AERONÁUTICO

O terceiro deles, que merece uma análise especial, é a necessidade de se observar tal caso sob as lentes do direito aeronáutico, dotado de autonomia e que, possuindo estreita conexão com vários outros ramos jurídicos, não tem sido foco de aprofundamento teórico suficiente pelos operadores do Direito, que propicie a adequada compreensão de seus institutos.

Tal constatação é asseverada por José Gabriel Assis de Almeida, que, em sua obra intitulada “Jurisprudência Brasileira sobre Transporte Aéreo” [9], expôs o seguinte:

Porém, surpreendentemente, a popularização do transporte aéreo internacional não foi acompanhada da divulgação das regras jurídicas que regulam esta atividade. Basta considerar que no Brasil o único livro contendo a legislação aplicável ao transporte aéreo está esgotado há quase uma década. E a doutrina, salvo raras e honrosas exceções, também não tem demonstrado maior interesse quanto ao direito aeronáutico. A estes aspectos, soma-se o fato do direito aeronáutico não ser matéria obrigatória na esmagadora maioria das Faculdades de Direito. O resultado deste desconhecimento da matéria jurídica aeronáutica é uma errática aplicação das normas de direito por parte dos nossos tribunais, desvirtuando a natureza, o conteúdo e os objetivos das normas sobre transporte aéreo.

A obra do nobre jurista foi editada em 2000, motivo pelo qual deve ser contextualizada no âmbito temporal, no entanto, suas palavras encontram eco na atualidade, pois o cenário relatado acerca da literatura jurídica no campo aeronáutico sofreu pouca evolução, ao passo que o incremento do transporte aéreo internacional tem sido muito significativo, especialmente nas duas últimas décadas.

Deve-se enriquecer este debate, com o estudo das fontes do direito, tanto materiais, quanto formais, definidas por Paulo Dourado de Gusmão[10]:

(...) passemos, à primeira questão: que se deve entender por fontes materiais do direito?São as constituídas por fenômenos sociais e por dados extraídos da realidade social, das tradições e dos ideais dominantes, com as quais o legislador, resolvendo questões que dele exigem solução, dá conteúdo ou matéria às regras jurídicas, isto é, às fontes formais do direito (lei, regulamento etc.).

O instituto das fontes, emergente da teoria geral do direito, nos remete a análise pré-jurídica, aos fatos sociais que ensejaram a criação das normas e que se denota da mais extrema relevância para que possamos entender a real motivação social, que deve ser descortinada e que servirá de guia para a interpretação das regras emanadas do Estado.

Neste caso, vale visitar os meandros do direito aeronáutico, sem o qual não é possível compreender a fonte formal, ou, seja, a norma em si mesma, e determinar sua aplicabilidade ou não diante da possível prevalência de outras normas.

No que tange às fontes formais, cumpre-nos recorrer ao art. 1º do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA):

Lei n. 7565/86: Art. 1º O Direito Aeronáutico é regulado pelos Tratados, Convenções e Atos Internacionais de que o Brasil seja parte, por este Código e pela legislação complementar.

Depreende-se, que foi dada enorme importância por parte do legislador às normas internacionais, pois no direito aeronáutico, em especial, estas exercem um papel primordial.

Cabe a estas normas a regulação das relações entre o transportador e os destinatários de seus serviços, seja no transporte de pessoas cargas ou mala postal, efetuados por aeronave, mediante remuneração, porém não são limitadas a este aspecto.

A Convenção de Haia de 1970, por exemplo, trata do tema da Pirataria Aérea, já a Convenção de Montreal de 1971, trata da repressão de atos ilícitos contra a segurança da aviação civil, apenas para citar alguns exemplos.

Percebe-se, então, que neste ramo do Direito as convenções internacionais são importantes porque, exige-se, em transporte aéreo, determinada uniformidade de procedimentos.

 O Direito aeronáutico expressou-se primeiro internacionalmente, para depois ser paulatinamente inserido nos ordenamentos jurídicos internos, consistindo num sistema integrado de normas jurídicas que abrangem diversas dimensões como infraestrutura aeroportuária, rotas aéreas de navegação, aeronaves, tripulação, contrato de transporte aéreo, responsabilidade civil, infrações administrativas, e muitos outros.

O transporte aéreo internacional geraria então, por suas características intrínsecas, tratamento diferenciado no ordenamento jurídico?

Verificou-se que sim, que a limitação indenizatória por danos materiais em sede de responsabilidade civil seria necessária à sua viabilidade econômica e operacional, diante de sua vital importância social.

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Sobre a autora
Lilian de Paula Soares Acacia

Mestranda em Ciências Aeroespaciais pela Universidade da Força Aérea (UNIFA). Pós-Graduada em Direito Civil pela Escola Superior de Advocacia – OAB/RJ. Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA). Primeiro-Tenente da Força Aérea Brasileira da Reserva. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ACACIA, Lilian Paula Soares. Convenção de Varsóvia x Código de Defesa do Consumidor - o Recurso Extraordinário 636.331 /RJ e sua repercussão em matéria de responsabilidade civil no transporte aéreo internacional . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3986, 31 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29039. Acesso em: 18 dez. 2024.

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