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A tutela dos crimes contra o sistema financeiro internacional no Tribunal Penal Internacional

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09/06/2014 às 14:08
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2. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E SUA RELEVÂNCIA PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

O Tribunal Penal Internacional (TPI) goza de competência jurídica, credibilidade e praticidade suficientes para punir individualmente os infratores que, em empreitadas criminosas, causem danos à sociedade global. O Estatuto de Roma, o qual deu origem ao TPI, expõe de maneira clara a intenção dos países membros (que ratificaram o Estatuto) por uma construção de proteções e garantias contra os crimes que causam danos sérios à estrutura da sociedade internacional e sua condição humana, aspectos estes que se enquadram exatamente na natureza e efeitos das condutas que hoje assolam a economia mundial, pois desta depende o “delicado mosaico” o qual se refere o próprio instrumento originário daquela Corte Internacional.

2.1. O TPI, suas competências e seus procedimentos

 

2.1.1. A formação do TPI e sua competência ratione materiae

Anteriormente, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, as nações sentiram a necessidade de julgar os crimes políticos, oriundos de conflitos armados internos ou externos, e outras condutas consideradas ilícitas por vários países (principalmente os ocidentais). Em 1945, fui instituído o Tribunal de Nuremberg pelos vencedores da guerra mundial, uma corte de exceção fabricada as pressas para julgar os envolvidos em crimes cometidos nesse conflito, todos eles ligados de alguma forma ao Terceiro Reich[45]. A denominação “tribunal de exceção” atribuído ao órgão temporário revela suas irregularidades. Sua forma, o procedimento dos julgamentos, as penas, seus componentes, tudo a seu respeito é construído após os fatos que serão julgados. Tal característica vicia de maneira extremamente temerária sua imparcialidade, efetividade e, consequentemente, sua legitimidade.

Para sanar um erro tão fundamental (ausência de imparcialidade) ao que entende a maioria dos países ocidentais um ataque ao Devido Processo Legal, foi instituído o Tribunal Penal Internacional (TPI), ou Corte Penal Internacional, sendo este o primeiro órgão supranacional permanente. Um órgão que não faz parte das Nações Unidas, mas está vinculado aos seus princípios e objetivos (ou propósitos), assim sendo, ligado à manutenção da paz e segurança internacionais, à amizade e cooperação entre as nações com uma relação de igualdade, dentre outros princípios norteadores[46]. Em 17 de julho de 1998, o Estatuto de Roma, instrumento que deu origem ao Tribunal, foi ratificado por 120 países convencidos de sua necessidade após a criação dos tribunais para Ruanda e ex-Iuguslávia em 1990. Entrando em vigor em 01 de julho de 2002, ano da ratificação pelo Brasil (Decreto nº 4388/2002), um dos 60 novos países que o aderiram[47]. O Preâmbulo do Estatuto de Roma estabelece os objetivos do TPI:

Os Estados Partes no presente Estatuto, conscientes de que todos os povos estão unidos por laços comuns e de que suas culturas foram construídas sobre uma herança que partilham, e preocupados com o fato deste delicado mosaico poder vir a quebrar-se a qualquer instante, tendo presente que, no decurso deste século, milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade, reconhecendo que crimes de uma tal gravidade constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade, afirmando que os crimes de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto, não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas em nível nacional e do reforço da cooperação internacional, decididos a por fim à impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim para a prevenção de tais crimes, (...) decidimos a garantir o respeito duradouro pela efetivação da justiça internacional, convieram no seguinte[48].

Alguns aspectos selecionados têm importância fundamental para o tema. O preâmbulo estabelece os objetivos do Estatuto e, consequentemente, do TPI, sendo o seu principal escopo a proteção da comunidade internacional e sua estabilidade duramente construída, ou seja, a segurança jurídica global e a crença nesta, com relação nevrálgica com o equilíbrio da economia mundial (o qual depende de crença). Em seguida o prelúdio define a categoria e as características dorsais dos crimes acolhidos e combatidos pelo Tribunal Penal Internacional. Alude o preâmbulo que tais crimes possuem uma maior gravidade suficiente para ameaçar a "paz, a segurança e o bem-estar da humanidade", e que estes "afetam a comunidade internacional no seu conjunto". A associação entre essas características e os danos causados pelo risco sistêmico (1.3.) é inegável e de clareza solar. Assim, apenas por esse motivo, a tutela dos crimes contra o sistema financeiro internacional pelo TPI seria perfeitamente cabível.

Mas, como manda a boa técnica penal, existe no Estatuto as tipificações criminosas[49]. Assim, em seguida, o art. 5º do diploma legal restringe o que estava estabelecido no preâmbulo a um rol taxativo de crimes, são eles o crime de genocídio, agressão, os delitos contra a humanidade e de guerra. O crime de genocídio caracteriza-se como qualquer ato que tenha o objetivo de ofender, transferir, ou eliminar, total ou parcialmente uma etnia ou grupo social. São os crimes contra a humanidade, o homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população, prisão de natureza grave, tortura, agressão sexual e correlatos, perseguição de um grupo, apartheid, desaparecimento e outros atos desumanos que causem “grave sofrimento” (2.2). Por fim, é necessário explicitar que o grupo de crimes de guerra foi retirado da Convenção de Genebra de 1949, sendo que esse rol de crimes transcritos ao Art. 8º (pertencente às Convenções ou não) tem como sentido central a proteção dos indivíduos já fragilizados pelos conflitos armados e a prevenção às condutas extremadas de grupos bélicos oficiais ou paramilitares[50].

A intenção do Tribunal exposta no preâmbulo do Estatuto de Roma, bem como a natureza de todos os crimes tutelados pela Corte, considera a proteção da humanidade e a ordem internacional como a finalidade de sua existência, mas, hoje inexistem os crimes contra sistema financeiro internacional no rol do TPI. Todavia, mesmo com o entrave, a competência pode ser estabelecida a partir, primeiramente, dos objetivos principais do TPI, quais sejam a tutela da paz, da segurança e o bem-estar da humanidade, em face dos crimes que "afetam a comunidade internacional no seu conjunto”, e, também, em sua competência para julgar os crimes contra a humanidade, infrações estas que se assemelham em muito com as ações e omissões que desestabilizam o SFI, o que poderia abrir um precedente valorativo para uma futura inclusão definitiva dos crimes financeiros no TPI.

Importante lembrar que o princípio da intervenção mínima o qual molda a tipicidade penal no decorrer do tempo e inúmeras mudanças de valores sociais[51], pode fundamentar permanentemente a inclusão dos crimes contra o sistema financeiro internacional no TPI, pois é de fácil compreensão a extrema periculosidade de proporção global das referidas condutas, ou mesmo a dedução da inexistência de outra infração mais devastadora do que aquelas com potencialidade para afetar o SFI, a sociedade globalizada e, deste modo, a humanidade e seus direitos inerentes. E é no sentido de proteção da humanidade que a tipificação dos crimes arrolados no Estatuto de Roma é ampliada, abrangendo todo e qualquer ataque grave aos povos.

2.1.2. O procedimento de ratificação do Estatuto de Roma e as demais competências do TPI

Aprovadas quais as condutas ofendem o sistema financeiro internacional pelos poderes legislativos dos países e, posteriormente, convencionadas por todos os Estados-partes, parte-se para a ratificação pelos interessados. Desta forma, em relação à competência rationae temporis (em razão do tempo), apenas a partir do novo ato de ratificação[52] e da entrada em vigor do Estatuto de Roma[53], reformado com os novos crimes, os cidadãos presentes em todos os territórios se submeterão a jurisdição do TPI[54]. Daí se percebe um aspecto importante, a competência rationae personae (em razão da pessoa)[55] do Tribunal. O TPI só julga pessoas naturais e não Estados, aliás, este é um dos diferenciais da Corte em toda a ordem internacional e um motivo importante para que os juízes desta julguem os crimes em questão, já que o dinamismo do Tribunal se amolda perfeitamente a natureza dessas infrações econômicas pelas seguintes questões: primeiramente a nacionalidade do réu é irrelevante para o julgamento, apenas bastando que o cometimento do crime tenha sido no território de um dos Estados-membros ou de um país que tenha aceitado a jurisdição do TPI (ou a partir de representação do Conselho de Segurança da ONU[56]); e, outra razão que qualifica a Corte para o árduo trabalho é a possibilidade de julgar, não só autores e coautores, mas também partícipes, incluindo quem facilitou, encobriu ou contribuiu para um crime (Art. 25, par. 3, do Estatuto de Roma)[57]

Ainda a respeito da competência rationae personae, como afirma Paulo Henrique Gonçalves Portela, “a competência do TPI abrange as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional”[58], requisito este que se enquadra perfeitamente à possibilidade de tornar o Tribunal oficialmente apto para proteger a ordem econômica global, pois as crises financeiras configuram uma das maiores catástrofes mundiais hoje (3.2). Já em razão do lugar, competência rationae loci, obviamente, o TPI exerce jurisdição nos territórios (incluindo navios e aeronaves) de qualquer Estado Parte que firmou o Estatuto de Roma, ou por acordo especial[59], ou “a partir de determinação do Conselho de Segurança da ONU”[60]. Restando sobre a competência do Tribunal apenas a já tratada jurisdição rationae materiae (em razão da matéria), ficam expostos no Art. 5º do Estatuto de Roma, os crimes julgados pela Corte, quais sejam, os crimes de genocídio, agressão, de guerra e crimes contra a humanidade, todos estas, infrações que causam sérios danos à ordem internacional. Sendo constatado anteriormente que todos os crimes previstos no TPI e as condutas contra o sistema financeiro internacional causam danos à humanidade e, quanto aos efeitos, guardam imensa similaridade entre si (3.2). Reconhecidos como crimes internacionais, objetos do direito internacional penal (3.3), depois de ratificadas as novas infrações financeiras, eventuais crimes contra o SFI seriam primeiramente punidos pelos Estados.

2.1.3. Os procedimentos inquisitorial e judicial do TPI

Coagidos pelos seus governos os indivíduos efetivamente punidos não poderiam ser julgados pelo TPI, pois a dupla condenação seria um evidente ferimento ao princípio do ne bis in idem[61], valor comum a vários ordenamento jurídicos, incluindo o brasileiro. Todavia, surge um dos maiores trunfos do papel da Corte na ordem internacional, mesmo depois da sentença transitada em julgado em um poder judiciário nacional, o TPI tem a competência subsidiária para julgar pessoas naturais às quais foram rés em um processo que “tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça” (Art. 20, par. 3, a e b, do Estatuto de Roma). Assim, as questões nacionais ficam mais tolhidas diante do interesse supranacional, qual seja, a proteção do sistema financeiro internacional e, consequentemente, a humanidade.

Diante da ausência de julgamento ou com a existência de uma condenação ineficiente, habilitado está o Tribunal Penal Internacional para receber os supostos fatos hipoteticamente embrenhados por condutas criminosas (observados os requisitos de admissibilidade do Art. 17)[62]. Segundo o Art. 13, a, b e c, do Estatuto de Roma, o Estado Parte ou o Conselho de Segurança da ONU, podem requerer ao procurador da Corte a abertura do inquérito com base em indícios da ocorrência dos crimes da competência do TPI, ou mesmo o próprio procurador do Tribunal pode abrir por sua iniciativa o inquérito com base em informações que indiquem vestígios dos prováveis crimes (Art. 15 do Estatuto de Roma). A independência funcional do procurador para iniciar o inquérito é fundamental para a eficácia da penalidade dos crimes financeiros, já que existem características internas das nações que constroem entraves à efetividade das punições das condutas dessa natureza (3.1). A grandiosa serventia do Tribunal é ainda mais ressaltada pela existência da possibilidade de representação pelas vítimas exclusivamente no juízo de instrução (Art. 15, par. 3, do Estatuto de Roma).

Reconhecidos os fundamentos de fato e de direito (incluindo os do Art. 17), analisando desde logo sobre a admissibilidade[63], o inquérito será aberto e conduzido obrigatoriamente pelo Procurador, a menos que esse, em seu juízo de valor (vinculado ao disposto no Estatuto), entenda que não é proveitoso o início do inquérito, seja porque não existem indícios de autoria e materialidade, ou o mesmo carece dos já mencionados requisitos de admissibilidade, ou ainda não servirá aos interesses da justiça[64] (Art. 53, par. 1, a, b e c, do Estatuto de Roma). Não iniciando o inquérito pelos motivos expostos o Procurador deverá comunicar a decisão fundamentadamente a quem o requereu (Art. 53, par. 2, c), podendo, “a todo o momento, reconsiderar a sua decisão de abrir um inquérito ou proceder criminalmente, com base em novos fatos ou novas informações” (Art. 53, par. 4). O início da fase de instrução se dará após a entrega do acusado ou de seu comparecimento voluntário, assegurando o Tribunal a duração razoável do processo do réu preso cautelarmente (Art. 60, 76, par. 2, e 81, par. 3, a e b, do Estatuto de Roma). Logo após, realiza-se a audiência de instrução (e, se necessário, audiência suplementar)[65], onde as partes apresentam todas as provas que interessem ao processo (Art. 61); e, posteriormente a realização do julgamento, que, em resumo, é similar ao processo penal brasileiro no que diz respeito aos princípios da paridade de armas, ampla defesa e contraditório (Art. 62 e ss.).

Julgado o acusado, em primeira instância, pelos crimes que causam grande prejuízo à ordem internacional, valorar-se-á e (não havendo recurso) aplicar-se-á a pena[66]. Destarte, segundo o Art. 77 do Estatuto, as penas aplicadas pelo TPI são: prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem; multa e perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa fé. Sobre as penalidades, necessário aprofundar-se sobre as questões polêmicas das prisões.

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2.1.4. As controvérsias acerca das prisões: A prisão perpétua e prisões cautelares

Acerca da prisão sem prazo, a mesma é incompatível com ordenamento jurídico brasileiro por força do Art. 5º, XLVII, b, da Constituição Federal, mesmo prevista no Estatuto de Roma ratificado pelo Brasil. Sobre a adoção, convém a interessante ciência de que a escolha da prisão perpétua foi construída pela discussão entre os Estados Unidos, que sustentavam a adoção da pena de morte (da common law) e países ibero-americanos que defendiam a pena máxima de 30 anos[67][68]   (da civil law)[69]. Curiosamente a posição sustentada pelos latino-americanos apoiava-se nos direitos humanos, objeto maior do preâmbulo da Corte[70]. Claramente, mesmo que inicialmente, há entre o ordenamento jurídico brasileiro e o Estatuto de Roma, este conflito aparente de normas. Contrário senso da própria Carta Magna, a Emenda n.º 45, que inclui o parágrafo 4º no Artigo 5º da Constituição, submetendo o Brasil à jurisdição do TPI a cuja criação tenha manifestado adesão[71]. Quanto ao conflito, tratando do instituto da extradição, existia um entendimento jurisprudencial tradicional do Supremo Tribunal Federal que apoiava a desnecessidade da comutação da pena de prisão perpétua em pena privativa de liberdade limitada ao prazo de 30 anos. Entendimento este alterado pelo julgamento de Extradição nº 855 do STF, entendendo agora pela necessidade da comutação[72].

Todavia, o TPI não trata de extradição, esta inviável contra brasileiros natos (e naturalizados exceto em alguns casos) por força do Art. 5º, LI, da Carta Magna, e sim, de entrega (Art. 102, a, do Estatuto de Roma). Sobre a diferença entre os institutos jurídicos, Eugênio Pacelli explica que, “André de Carvalho Ramos (2000, p. 270) anota, ainda, que não haveria óbice constitucional, na medida em que a extradição implica a entrega de nacionais a Estados Soberanos, enquanto a medida prevista no art. 89 do TPI determina a entrega a um organismo internacional, cuja normatização é aceita pelo país. Estamos de acordo, sobretudo em relação ao fato de se estar entregando um nacional não a outro Estado, mas a uma organização internacional, de quem se espera o efetivo cumprimento do devido processo legal (Arts. 65, 66, 67, do Estatuto de Roma). De se acentuar, mais, que, no caso da extradição, não há aceitação prévia das normas jurídicas do Estado solicitante pelo Estado concedente, em face da soberania de ambos. Na entrega, ao contrário, além de não se cuidar de outro Estado – mas de organismo internacional -, a normatividade a ser aplicada ao caso concreto há de ser previamente admitida e aceita pelo Estado que a realiza (entrega). A diferença entre as situações é sensível”[73].

Mas o problema da inconstitucionalidade continua, pois o Art. 5º, XLVII, b da Constituição é uma garantia individual, como explica o Juiz Saulo José Casali Bahia:

E esta previsão pátria sequer pode ser alterada por emenda constitucional, ante a cláusula pétrea inserida no § 4º do artigo 60 da Carta Magna: [‘Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) IV- os direitos e garantias individuais.’]. E o problema pode parecer incontornável, considerando que o Tratado de Roma não admite a sua ratificação, assinatura ou adesão com reservas feitas pelos países (art. 120: ‘Não se admitirão reservas ao presente Estatuto’)[74] .

O jurista, mesmo diante da cláusula pétrea, admite haver apenas um conflito aparente de normas, pois a Constituição reconhece a pena de morte em caso de guerra, penalidade essa mais grave que a prisão perpétua (Art. 84, XIX da CF), entendendo ainda que a guerra[75] faz parte da áurea dos crimes punidos pelo TPI, que preservam a integridade da humanidade. Importante ainda apresentar a resolução do problema pelos italianos (pais do civil law) para contornar a encruzilhada jurídica, salientando os mesmos a possibilidade de revisão da pena perpétua quando transcorridos 25 anos de clausura (Art. 110). No caso do Brasil, propõe Bahia:

         (...) poder-se-ia entender ser viável a imposição de pena perpétua, fixada ao condenado pelo Tribunal Penal Internacional, desde que deva ser cumprida no estrangeiro, por força de decisão do Tribunal internacional. Ou seja, a execução da pena perpétua eventualmente imposta seria impossibilitada tão apenas se o seu cumprimento devesse ocorrer no país, já que, nesta hipótese, o condenado deveria ser posto em liberdade tão logo ultrapassado o tempo máximo de cumprimento de pena previsto pelas leis nacionais. Desse modo, cumpriria tão somente ao Tribunal Penal Internacional, para fazer valer o seu julgado e evitar expor o Brasil ao descumprimento flagrante do Tratado de Roma, determinar que o cumprimento da pena se dê em outro país qualquer, compatibilizando-se, assim, as normas do Tratado de Roma e da Constituição Federal brasileira[76]

Concatenado de maneira coerente, viável é o entendimento que reconhece o cumprimento da pena perpétua no estrangeiro, já que o necessário encarceramento estaria protegido pelo espírito da Constituição quando esta reconhece a possibilidade da aplicação da pena de morte em considerada situação analógica à intenção da criação do TPI, à ratificação do Estatuto de Roma e proteção dos crimes de guerra (contra a humanidade) pela Corte. Sem esgotar a questão, que ainda patrocina discussões acaloradas acerca da constitucionalidade do parágrafo 4º, do Artigo 5º da Constituição Federal, introduzido pela Emenda nº 45, o qual submete o Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, necessário o prosseguimento do tema do presente trabalho.

Além da ausência de ilegalidades, o Tribunal Internacional ainda apresenta algumas vantagens em relação à natureza dos crimes financeiros. Primeiramente, o artigo 27 do Estatuto prevê a irrelevância da função oficial (incluindo Chefes de Estado e de Governo) para efeito de responsabilização criminal ou diminuição de pena pelo Tribunal Penal Internacional, assim, imunidades, normas especiais e foros privilegiados são desconsiderados diante da magnitude da Corte, tanto de sua importância em si, como da gravidade dos crimes punidos por ela. Dessa forma os indivíduos condenados por crimes financeiros, que em geral são pessoas poderosas, não serão protegidos pelas legislações nacionais quando estas forem ineficientes em relação à efetividade do processo.

Mais uma proveitosa característica do Tribunal Internacional diz respeito ao instituto da prisão preventiva. O Art. 59, par. 1, do Estatuto de Roma, sobre o procedimento de detenção no “Estado da detenção”, diz que “o Estado-parte que receber um pedido de prisão preventiva ou de detenção e entrega, adotará imediatamente as medidas necessárias para proceder à detenção, em conformidade com o respectivo direito interno e com o disposto na Parte IX”. Necessário ressaltar que a primeira parte do artigo não se refere ao Estado Parte o qual o acusado é nacional, mas sim onde o réu está detido preventivamente (o Estado da detenção). Medida que flexibiliza intensamente a burocracia que pode ocorrer se um nacional, necessariamente, não puder ser detido preventivamente em um país diverso do seu, caindo assim nos intermináveis meandros de negociações internacionais promovidas pelas soberanias das várias nações. Desse modo, segundo o Estatuto de Roma, v.g., um acusado italiano detido na Suécia por força de decretação de prisão preventiva[77] pelo Tribunal, ficará detido em território sueco pelo menos até o relaxamento da prisão ou da possível liberdade provisória, ou mesmo até a sua absolvição. O caso em tela obrigaria a Itália a aceitar a detenção do seu cidadão nacional na Suécia, pois a jurisdição do TPI abrange o território de todos os Estados Partes.

Ademais, a respeito da indicada Parte IX no Art. 59, par. 1, cumpre salientar as regras de cooperação internacional e auxilio judiciário. Sobre a necessária cooperação, o Art. 86 aduz que “os Estados Partes deverão, em conformidade com o disposto no presente Estatuto, cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes da competência deste”. O termo “plenamente” amplia os efeitos dos pedidos das relações internacionais durante a instrução criminal, que deverão ser efetuados por via diplomática ou por outros meios acordados desde o momento da ratificação, aceitação, aprovação ou adesão (Art. 87 do Estatuto). Há de se fazer ainda outra consideração importante sobre o mencionado termo “direito interno”, que deve ser sopesado com o disposto na Parte IX do Estatuto internacional. No caso do Brasil, a cooperação, mesmo que não fosse obrigatória, não ofenderia o direito interno, pois a legislação nacional, teoricamente, apoia a preservação da ordem econômica. Exemplos maiores são as alterações relevantes sobre o assunto das infrações financeiras no Código de Processo Penal Brasileiro, patrocinadas pela Lei 12.403 de 04 de maio de 2011: primeiramente, o Art. 312 do mesmo Código elenca a ordem econômica como um dos requisitos da prisão preventiva; em segundo lugar, o Art. 319 do mesmo diploma legal interno considera como medida cautelar (em caso de liberdade provisória) a “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”. Ainda sobre a devida concórdia entre direito interno e a Parte IX do Estatuto, o Art. 88 do mesmo diploma internacional assevera que, desde logo “os Estados Partes deverão assegurar-se de que o seu direito interno prevê procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação especificadas neste Capítulo”. Desse modo, resta tratar do fim da ritualística do procedimento, qual seja, a execução e a fase recursal da Corte.

2.1.5. A execução da pena e a matéria recursal na Corte Internacional Penal

Outrossim, a maior utilidade do Tribunal, no que diz respeito a sua real efetividade, sendo esta de letal valor para a manutenção da ordem econômica internacional, é a imutabilidade da pena executada, sendo vinculativa, em todos os termos, a todos os Estados-partes, não sendo possível, de maneira alguma, a modificação da pena decretada, indiferentemente da legislação interna dos países que ratificaram o Estatuto de Roma. Sobre a virtude da Corte, o Art. 105, par. 1, alínea a, determina que “sem prejuízo das condições que um Estado haja estabelecido nos termos do artigo 103, parágrafo 1o, alínea b, a pena privativa de liberdade é vinculativa para os Estados Partes, não podendo estes modificá-la em caso algum”. No mesmo artigo o diploma internacional ainda preleciona que “será da exclusiva competência do Tribunal pronunciar-se sobre qualquer pedido de revisão ou recurso. O Estado da execução não obstará a que o condenado apresente um tal pedido”. Necessário ressaltar ainda que a execução de qualquer pena privativa de liberdade será submetida ao controle do TPI e às regras internacionais, ficando apenas as condições das prisões reguladas pelo Estado da detenção (da execução), respeitando, é claro, as normas supranacionais (Art. 106 do Estatuto).

Atravessadas as questões das execuções das penas, chega-se aos recursos. Segundo o Art. 81, par. 1, do Estatuto, o Procurador poderá interpor recurso contra a sentença quando verificar a existência de vício processual, erro de fato ou de direito. Já o condenado ou o Procurador, atuando no interesse daquele (custos legis), poderão interpor recursos pelas mesmas questões incluindo ainda os motivos suscetíveis de afetar a equidade ou a regularidade do processo ou da sentença. Cabem também recursos contra decisões interlocutórias que se posicionam a respeito de questões preliminares como a competência e admissibilidade do caso, bem como as que denegam ou deferem prisão cautelar de pessoa natural (meio de prova de inquérito), contra a decisão do Juízo de Instrução de agir por iniciativa própria, ou mesmo contra decisão que caminha contra a equidade e celeridade razoável do processo (Art. 82, par. 1, do Estatuto).

Presentes, portanto, todos estes (e outros) requisitos atinentes ao direito material penal e processual penal nacionais, o que não levaria de forma alguma o acusado a sofrer qualquer tipo de cerceamento de defesa quando este se sujeitar ao instituto da entrega. Ficam assim expostas os principais procedimentos e vantagens da adoção do Tribunal Penal Internacional para tutelar os supostos crimes contra o sistema financeiro internacional, que afetam o valor maior da ordem econômica global. Mas, todavia, ainda resta apresentar a principal relação da natureza existencial do TPI com a tutela dos crimes contra o sistema financeiro internacional, qual seja a intenção de proteger os direitos humanos inerentes à todos os indivíduos do mundo, cidadãos ou não.

2.2. O Tribunal penal internacional e os direitos humanos

O Estatuto de Roma ainda aprofunda o tema dos direitos humanos em seu Art. 7º, que coloca em tela, pormenorizadamente, os crimes contra a humanidade. Expõe assim o relevante artigo:

Artigo 7º.

1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque.

As alíneas da parte 1, especificam ainda mais os casos considerados como crimes contra a humanidade. Mas, na última alínea (K), a carta que traduz as vontades das nações aderentes faz questão de ampliar o conceito de “crime contra a humanidade” e considera ali seus efeitos, desconsiderando a natureza restritiva das tipificações passadas, quando escreve no acordo solene o termo “outros atos desumanos de caráter semelhante”. Assim expõe, o Art. 7º, par. 1, k, do Estatuto de Roma:

k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

Dada à tamanha amplitude, a única restrição do artigo em tela se revela no conceito de “ataque”. Em primeiro plano, segundo o artigo 7º um crime contra a humanidade seria, obrigatoriamente, um “ataque generalizado e sistemático”, o que pode ser interpretado não só do ponto de vista bélico, mas econômico, pois um crime financeiro não deixa de ser um ataque, generalizado (difundido, que atinge a todos, sem alvo específico) e sistemático (que se fundamenta num sistema, de forma organizada). Não bastando, posteriormente o Estatuto de Roma, com o uso do termo “outros atos desumanos de caráter semelhante”, amplia ainda mais a tipificação criminosa, abrangendo inúmeras condutas que poderiam ser aceitas como crimes contra a humanidade na perspectiva do TPI. Ocorre que, o quê em certa perspectiva pode incluir os crimes contra o SFI no conceito dos crimes contra a humanidade, de certa forma ao mesmo tempo poderia afrontar o princípio da tipicidade.

2.2.1. A tipificação criminosa dos crimes contra a humanidade no TPI x a ampla relevância dos direitos humanos para a comunidade internacional: o exemplo brasileiro

Observa-se que, para o ordenamento brasileiro, v.g., a ausência de taxatividade, restrição na tipificação criminosa, e previsão legal anterior (Art. 1º do Código Penal Brasileiro), encaminha a abstração da conduta inevitavelmente à atipicidade penal e, consequentemente à absolvição sumária (Art. 397, III do CPP)[78]. O ditame legal é confrontado pelo Art. 1º do Decreto nº 4.388/12, onde o Brasil se obriga a executar e cumprir inteiramente o Estatuto de Roma, e com o Art. 5º, § 4º da Constituição Federal.

Não é apenas a excessiva amplitude na tipificação dos crimes contra a humanidade no TPI (ferindo o princípio da tipicidade) que poderia inviabilizar a efetividade da entrega de acusados à Corte Internacional, mas também, no caso do Brasil, a ausência de tipificação dos crimes contra a humanidade na legislação penal brasileira, sendo esta previsão para o Supremo Tribunal Federal, obrigatoriamente produzida pelo Poder Legislativo[79]. Para tentar sanar o vício, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 301/2007 que “define condutas que constituem crimes de violação do direito internacional humanitário, estabelece normas para a cooperação judiciária com o Tribunal Penal Internacional e dá outras providências”[80], incluindo os crimes contra a humanidade no seu Art. 11, onde a tipificação se restringe a apenas algumas condutas, excluindo o conteúdo do item K, par. 1 do Art. 7º do Estatuto de Roma. Ficando assim construída uma maior incerteza sobre a aplicabilidade de coação às várias condutas que poderiam ser atribuídas ao rol do TPI, incluído os crimes financeiros com efeitos globais.

Todavia, o conflito entre as legislações primeiramente é confrontado pela razão do direito penal e seus princípios. O Princípio da Fragmentariedade[81], fundamentado nos princípios da lesividade, da adequação social e da já falada intervenção mínima (2.1), cuida dos valores mais importantes, amplos e frágeis, os quais devem ser tutelados pelo direito penal. Assim, o direito penal deve proteger “os bens de maior relevo que merecem a especial atenção”[82] da ultima ratio, estabelecer “quais são as condutas que não poderão sofrer os rigores da lei penal”[83], e “restringir o âmbito de abrangência do tipo penal, limitando a sua interpretação, e dele excluindo as condutas consideradas socialmente adequadas e aceitas pela sociedade”[84]. Como se percebe, os ataques contra os povos por meio do SFI não podem ser deixados à margem do direito penal, visto que diante da indiscutível gravidade dos danos causados pelas crises financeiras, as condutas e crimes financeiros se adequam perfeitamente aos princípios internacionais penais. Assim, diante de uma conjectural efetividade do TPI, sobretudo para a coação dos crimes financeiros cometidos no Brasil ou em países com carência de previsão legal, seria proveitosa a adoção subsidiária e ampla das condutas contra a humanidade (previstos no Estatuto de Roma) para incluir as condutas e crimes financeiros no rol de crimes punidos pelo Tribunal Penal Internacional.

Não só os benefícios práticos na ampliação da tipificação devem ser considerados, mas também a indubitável estima aos direitos humanos, pois, mesmo com tantos entraves legislativos, considerando a valoração moral internacional hodierna, o direito humanitário é visto, há muito, com destaque no direito internacional, constituindo até uma verdadeira limitação às soberanias nacionais. A elevação dos direitos humanos aconteceu justamente depois dos sucessivos massacres ocorridos nas grandes guerras mundiais, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, com o repúdio à ideologia nacional-socialista, e a criação dos órgãos internacionais, incluído a ONU (2.2)[85]. Por temor a repetição do terror vivido anteriormente pela população mundial, os direitos humanos ganharam um status superior para a comunidade internacional, “um núcleo de direitos insuscetíveis de serem derrogados em qualquer tempo, condição ou lugar”[86], elevando o homem a condição de sujeito internacional, prestígio este, segundo o sempre lógico Ministro José Celso de Mello Filho, reconhecido pelos seguintes fatores:

A própria dignidade humana, que leva a ordem jurídica internacional a lhe reconhecer direitos fundamentais e procurar protege-los; e a própria noção de Direito, obra do homem para o homem. Em consequência, a ordem jurídica internacional vai se preocupando cada vez mais com os direitos do homem, que são quase verdadeiros direitos naturais concretos[87].

Ainda há de se constatar que, lembrando ainda o imenso poder de influência dos sujeitos da chamada terceira ordem jurídica (fonte do direito internacional econômico) (1.1.2.), existe na prática uma prevalência dos direitos relativos ao mercado internacional, em face dos direitos humanos. Segundo Delmas-Marty, há um conflito entre direitos mercantis e direitos humanos no limitado espaço normativo mundial, e, sobretudo, os valores do mercado são mais bem trabalhados, estudados e protegidos do quê o direito humanitário (questão que, diante da “internacionalização do mercado”, “não poderia ser tratada unicamente pelo direito nacional”[88]). O sistema jurídico do mercado internacional, mesmo sem vinculação obrigacional com Estados nacionais, recebe atenção especial objetivando a manutenção da ordem econômica internacional. Assim, a doutrinadora afirma:

Ao contrário, no espaço mundial, a forte assimetria dos processos de internacionalização parece incentivar sistematicamente os valores mercantis. De um lado, o princípio da livre circulação, imposto pelo Acordo Geral sobre as Tarifas e o Comércio (GATT), depois Organização Mundial do Comércio (OMC), sob o controle quase jurisdicional do Órgão de Regulamentação das Disputas (ORD), facilita sua difusão espacial (e a extensão de sua definição) impondo aos Estados a eliminação de barreiras comerciais (internacionalização do comércio), enquanto a emergência da lex mercatoria permite selecionar as normas jurídicas mais favoráveis ao comércio mundial. Por outro lado, a resistência dos valores não mercantis foi enfraquecida pela complexidade das interações em um espaço normativo muito mais fragmentado e pela ausência de uma Corte Mundial de Direitos Humanos. (...) Do lado do mercado - OMC e Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) - o direito das patentes mostra a dificuldade, especialmente em campos como a biotecnologia que, evidentemente, põe em questão não apenas os valores mercantis, mas também os não mercantis. Sua aparente neutralidade - pois a patente não confere autorização, apenas o monopólio da exploração - incentivou a extensão das patentes, ao campo da biotecnologia. Admitida nacionalmente (Estados Unidos e China) e regionalmente (portaria da União Européia de 1998), esta extensão foi mundialmente consagrada pela assinatura, em 1994, do Acordo Sobre os Direitos da Propriedade Intelectual relativos ao Comércio Internacional (Adpic), que obriga os Estados a se dotarem de uma legislação para proteger as invenções "em todos os campos", sem discriminar as tecnologias utilizadas[89].

Mesmo que o mercado mundial tenda a uma universalização, ele não favorece diretamente aos interesses coletivos e, de acordo com Delma-Marty, “em caso de conflito, os valores não mercantis, que não têm equivalente e não são substituíveis, deveriam ser superiores”. A razão da preferência pelos direitos humanos (ou a dignidade humana), em face dos mercantis, com um auxílio do pensamento kantiano[90], seria a manutenção da paz (positiva) e regulação de disputas. Porém, na prática, segundo a doutrinadora, “o futuro parece ainda mais incerto porque o espírito do mercado não só ganhou o direito das pessoas através da finalidade de indenização, mas ainda, mais profundamente, por seu próprio modo de expressão, a negociação, que parece agora atingir o núcleo duro e irredutível da pessoa através dos direitos da personalidade”[91].

Ademais, ainda que em perspectiva mais tecnicista, desconsiderando a importância dos direitos humanos, é necessário ressaltar que o Brasil já ratificou o Estatuto de Roma e suas disposições, sendo o caso de retirada (Art. 127 do Estatuto de Roma)[92] e não revogação, caso o governo brasileiro não deseje mais cumprir o quê a ele foi vinculado, seja por previsão legal interna ou interesse nacional soberano. Mas, mesmo se fosse o caso de revogação de lei internacional, a medida não seria plausível como afirma Celso D. de Alburquerque Mello, usando o exemplo de tratado:

Parece-nos que toda esta matéria tem por base o equívoco que advém da afirmação de que o tratado tem efeito de lei. Contudo, o tratado não é uma lei, pelo contrário, ele tem uma natureza própria que o coloca acima da lei. Quando se diz que o efeito é de uma lei, quer apenas se dizer que ele é no mínimo tão obrigatório quanto uma disposição legislativa e apenas isso. Negar o primado da norma jurídica internacional perante o direito interno é negar a própria existência do DIP[93]. A jurisprudência dos tribunais internacionais é pacífica ao afirmar a não-revogação da norma internacional pelo direito interno. Seria impossível existirem, em última análise, duas ordens jurídicas contraditórias e válidas ao mesmo tempo. Seria negar a unidade do Direito[94].

Com a afirmação de Celso de Albuquerque Mello, se constata o risco da dissolução da unidade do Direito, quando não internalizada a validade do direito internacional. A ideia de unidade de Direito é evidenciada ainda mais quando se tem a ciência que o direito internacional público e o direito penal, estão, ambos, em uma das grandes classes do Direito, o direito público (e não o privado), regendo-se pelos mesmos princípios comuns, como as relações entre Estados, e entre homens e Estados, predominando sempre o interesse coletivo[95] (considerando os direitos individuais). Assim, quando um Estado desfaz o conceito de crimes contra a humanidade, positivado anteriormente por tratado (o qual integra o Direito uno), tratando-se de direitos públicos (coletivos), a destruição da segurança jurídica fica mais evidenciada.

Com o esfacelamento da tipificação ampla dos crimes contra a humanidade, ou uma hipotética desconsideração da legitimidade da entrega, ou seu desrespeito reiterado, se tem então o risco da desvalorização da segurança jurídica internacional com a perda da unidade do direito, verdadeira catástrofe, portanto. O compromisso com o respeito às normas internacionais, e consequente garantia da existência das mesmas, é reforçado pelo Brasil e vários Estados das Américas quando os mesmos assinam a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), que dispõe em seu Art. 3º, b, o seguinte princípio: “El orden internacional está esencialmente constituido por el respeto a la personalidad, soberanía e independencia de los Estados y por el fiel cumplimiento de las obligaciones emanadas de los tratados y de otras fuentes del derecho internacional”[96].

Portanto, a ampliação da tipificação dos direitos humanos deve ser aceita, não só pelo alto preço do direito humanitário, mas por respeito à ordem jurídica internacional positivada pelos instrumentos de vinculação dos Estados às obrigações convencionadas em tratados, convenções e estatutos. Diante de todo o exposto, considerando as razões da extrema importância dos direitos humanos e sua incontestável proteção, resta elencar mais profundamente a relação dos mesmos direitos com o ataque ao sistema financeiro internacional (objeto da ordem econômica global), pois, hoje as dificuldades enfrentadas pela população, incluído a miséria, fome e doenças, não mais surgem exclusivamente das grandes guerras. Atualmente os pequenos conflitos armados disputam com as crises financeiras os índices de sérios danos aos povos[97].

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Sobre o autor
Lucas Maia Carvalho Muniz

Bacharelando do curso de Direito na Faculdade Ruy Barbosa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUNIZ, Lucas Maia Carvalho. A tutela dos crimes contra o sistema financeiro internacional no Tribunal Penal Internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3995, 9 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29339. Acesso em: 22 dez. 2024.

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