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A tutela dos crimes contra o sistema financeiro internacional no Tribunal Penal Internacional

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09/06/2014 às 14:08
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3. A NECESSÁRIA TUTELA DOS CRIMES FINANCEIROS PELO TPI: OS CRIMES E CONDUTAS QUE AFETAM O SISTEMA FINANCEIRO INTERNACIONAL E AS VANTAGENS DO DIREITO INTERNACIONAL PENAL

O processo de institucionalização do novo rol de crimes para conservar a ordem econômica global não seria fácil. Primeiro é preciso estabelecer os valores internos dos países para evitar futuros problemas nas novas promulgações do Estatuto de Roma. A partir do momento que se verifica os interesses políticos e o quê os países membros realmente querem proteger, apenas posteriormente parte-se para o processo interno no TPI.

3.1. Os crimes e condutas com potencialidade de produzir o risco sistêmico do SFI

Por óbvia constatação, verifica-se que as condutas que devem ser tuteladas pelo TPI são os crimes internacionais, objetos do direito internacional penal (3.2). Portanto, proveitosa a tutela dos crimes internacionais que invistam, de alguma forma, contra o sistema financeiro internacional, sendo este um conjunto de sistemas financeiros nacionais. Assim, para haver uma maior segurança jurídica nas transações financeiras internacionais, ou na própria economia globalizada (evitando o estopim do risco sistêmico), o TPI (com toda a sua reconhecida legitimidade para julgar indivíduos individualmente) poderá punir aqueles que atentarem contra o sistema financeiro internacional, garantindo, deste modo, a manutenção da ordem econômica (e social/pública) global.

Partindo dessa retrospectiva teórica, resta verificar alguns exemplos de crimes e condutas que poderiam ser tipificadas pelo Tribunal Penal Internacional. Desde logo, já se tem a ideia de que o TPI poderia punir os crimes financeiros que, não só causem um desequilíbrio ou a crise do sistema financeiro internacional (risco sistêmico), mas, dentre estes, os que causarem danos à humanidade e à ordem internacional, competência ainda mais amplificada pelo preâmbulo do Estatuto de Roma que esclarece a intenção de adotar medidas para coibir os crimes graves que ameacem a paz, a segurança e o bem-estar da humanidade, ou que afetam a comunidade internacional no seu conjunto (2.1).

Exemplo mais emblemático de crime capaz de causar uma considerável quebra de confiança no mercado financeiro internacional, construindo uma insegurança jurídica, é o caso Madoff. Restaurando o antigo esquema da “Pirâmide de Ponzi”, o ex-presidente da Nasdaq Bernard Madoff, por meio de sua empresa de investimentos Bernard L. Madoff Investment Securities, administrava recursos financeiros de terceiros sem obter lucros verdadeiros através de fundos de hegde[98]. Assim, com a crise de 2008, quando os seus clientes desejaram retirar o dinheiro investido (pedidos de sete bilhões de dólares) alguns não conseguiram, pois os investimentos novos eram usados para pagar os mais antigos. O esquema fraudulento só foi desvendado porque, acuado, o infrator confessou todo o esquema a família e esta prestou queixa às autoridades. O déficit, como afirma a ISTOÉ Dinheiro, foi de aproximadamente cinquenta bilhões de dólares perdidos por pessoas em quarenta países[99].

Nos Estados Unidos da América, Bernard Madoff foi condenado por onze crimes, incluindo lavagem de dinheiro, perjúrio e fraude. Entendendo a gravidade dos crimes para a economia, o juiz da Corte Federal de Manhattan aplicou a pena de cento e cinquenta anos, rejeitando a tentativa de redução para doze anos de prisão proposta pela defesa devido à confissão[100]. No Brasil, as condutas praticadas por Bernard Madoff estão tipificadas pela Lei nº 7.492 de 1986. A primeira é o crime de gestão fraudulenta (Art. 4º), onde o administrador ou correlato (crime próprio) gere fraudulentamente (de forma enganadora - dolosa), ou temerariamente (de forma arriscada, impensada – também dolosa) uma instituição financeira[101], o que no caso Madoff foi um fundo de hedge. É evidente o ataque ao bom funcionamento do sistema financeiro e seus elementos, como afirma Ali Mazloum sobre o objeto jurídico do crime em tela:

O bem que se quer tutelar é o Sistema Financeiro Nacional, cuja regularidade depende da solidez de seus alicerces, quais sejam organização do mercado, segurança nos negócios e confiança, que podem ser gravemente atingidos com a violação dessa norma. Atividades fraudulentas ou temerárias de gestão de instituição financeira, tais como escritas contábeis ilusórias, operações simuladas ou demasiadamente arriscadas, omissão na tomada de decisões importantes para a salvaguarda de interesses da instituição, dentre outras diversas formas de gestão contraveniente à ordem jurídica podem, de fato, abalar os mencionados alicerces. Tratando-se de crime pluriofensivo, a proteção penal abarca, também, a higidez do patrimônio de terceiros (a própria instituição financeira, acionistas, poupadores, investidores etc.)[102].

Interessante notar que a pena de gestão fraudulenta no Brasil é de reclusão de três a doze anos, e a pena para gestão temerária é de reclusão de dois a oito anos. Portanto Bernard Madoff, por esse crime apenas responderia, no máximo, pela pena de doze anos de reclusão[103]. Além disso, e o que mais interessa ao presente trabalho, o operador, no caso, não ataca apenas o Sistema Financeiro Nacional Norte-americano, e sim os bens, valores, segurança e confiança de pessoas e instituições em quarenta países diferentes[104], atacando vários sistemas financeiros nacionais interligados (ou o sistema financeiro internacional), portanto seria muito proveitoso que o infrator em questão respondesse pelo crime no TPI, se, por ventura não fosse condenado nos EUA, impunidade esta que mais facilmente aconteceria no Brasil devido à brandura da pena, das demais características do direito penal brasileiro.

Com os mesmos efeitos internacionais, sendo que todas as informações prestadas pelo operador eram ilusórias, com o intuito de enganar o Estado, instituições[105] e pessoas, o agente, se praticasse a conduta no Brasil, também estaria cometendo (se não configurasse crime mais grave) o crime de indução a erro (Art. 6º da Lei em tela), já que induziu (ou poderia apenas manter) em erro repartição pública e investidores, construindo uma realidade falsa[106] de que estava investindo os recursos no mercado financeiro, quando, na verdade, pagava as novas aplicações com as antigas (Pirâmide de Ponzi), atacando a crença no mercado financeiro. Devido ao caráter especial da Lei 7.2492/86, havendo conflito aparente de normas, no Brasil, para a conduta em questão, são afastados os Artigos 117, §1º, 297, §2º, 298 e 299, todos do Código Penal Brasileiro, e o Artigo 3º, X da Lei nº 1.521 de 1951, e Artigos 10 e 21 da própria Lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional[107].

Continuando os casos exemplificativos dos crimes que podem afetar o sistema financeiro internacional, ainda usando o caso Madoff, existe ainda o crime brasileiro de fraude à fiscalização (contra o Estado – Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários e as Bolsas de Valores -, e investidores), tipificado no Art. 9º da mesma lei[108], dentre outras condutas não tipificadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, como o perjúrio[109]. Importante notar, no caso, o relevante crime de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613 de 1998), pois o administrador do fundo de investimento, além de cometer o crime de fraude (dentre outros), ocultou a origem, localização, disposição, movimentação e propriedade de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, dos crimes contra o sistema financeiro nacional (crime previsto no Art. 1º, VI, da Lei nº 9.613 de 1998).

Relevante ainda constatar que o crime de lavagem de dinheiro, pode, além de ocultar o produto das infrações contra o sistema financeiro nacional e internacional, encobrir atividades de criminosos que cometem crimes de genocídio, tortura (crime contra a humanidade) ou outras condutas previstas pelo TPI (2.1). Como exemplo da hipótese, em investigação do Senado Norte-Americano, no ano de 2005, foi averiguado o montante de aproximadamente treze milhões de dólares operacionalizados pelo prestigiado Riggs Bank, oriundos de atividades praticadas pelo ditador Augusto Pinochet (incluído genocídio, torturas e desaparecimentos), reprovadas pelo TPI e outras várias convenções internacionais[110]. Fato este enraíza ainda mais de legitimidade uma possível pretensão de incluir o crime de lavagem de dinheiro, também conhecido como branqueamento de capitais, no rol do TPI. E não é só, legitima não apenas a previsão do crime de lavagem de dinheiro no Tribunal Penal Internacional, mas, sobretudo, dos crimes financeiros que acobertem, ou mesmo produzam os mesmos efeitos fabricados pelas condutas já tipificadas pela Corte, o quê, como já mencionado, é o caso de todos os crimes financeiros que afetam a ordem internacional (3.2).

Um caso particular, também de gigantesca notoriedade, revela outras questões a serem observadas, incluindo fragilidades na tipificação interna dos Estados. Em 2008 a Société Générale divulgou prejuízos de 4,9 bilhões de euros provocados pelo operador francês Jérôme Kerviel (1.3). Diante da apresentação pela Société Gérérale da queixa-crime acusando-o de “faux en écritures bancaires” (registros bancários falsos) e “intrusion informatique” (em tradução livre, acesso ilegal a computadores ou “hacking”), e outra queixa-crime por um grupo de acionistas de Paris, atribuindo a ele as condutas de “escroquerie, abus de confiance et faux” (fraude, abuso de confiança e, em tradução livre, falso)[111], o operador alegou que tentou negociar para 2007 um bônus de 600 mil euros e seu chefe do banco “deu a entender” que ele não poderia esperar mais de 300 mil euros; por isso, “em sua avaliação de final de ano (momento em que os operadores recebem os bônus), o “trader”, que havia especulado na Eurex, a Bolsa alemã que atua no mercado de derivativos, declarou somente 55 milhões de euros de lucro (sobre o 1,4 bilhão de euros que teoricamente fez ganhar a Société Générale, depois de fazê-la perder 1,5 bilhão seis meses atrás, e antes que a ‘descoberta’ pelo banco dessas transações ilícitas e sua liquidação resultassem em uma perda líquida de 4,9 bilhões de euros)”[112].

O jornal Le Figaro, pelo ineditismo do fato na justiça francesa, afirma que advogados, avaliando a situação fática, alegaram não haver acompanhamento jurisprudencial anterior sobre o caso Kerviel[113]. O trader foi condenado a cinco anos de prisão, dos quais três em regime fechado, além do pagamento de 4,9 bilhões de euros. Em sua primeira teoria defensiva, Kerviel aduziu que foi usado pelo banco para assumir todo o encargo da autoria pelas perdas internas na crise de 2008 (dos subprimes), numa espécie de “complô”. Em recurso, com novo advogado, a tese de defesa foi menos agressiva, afirmando que os seus superiores sabiam de sua conduta temerária, que, inclusive, é comum a vários outros operadores da instituição financeira francesa[114]. Em análise à legislação brasileira, v.g., o operador responderia apenas pelos crimes dos Art. 4º e 6º da Lei nº 7.492/86, sendo atípico no Brasil o resto das condutas previstas na França. Haveria, contudo, no caso, a possibilidade de “rebaixar” a ação do trader ao grau de simples participação, e configurar a conduta dos dirigentes da Société Générale como uma autoria de escritório, chamada por Zaffaroni e Pierangeli de uma autoria mediata que pressupõe uma verdadeira máquina de poder[115], teoria que deveria ser aceita se o comportamento de Kerviel for realmente comum a todos os operadores e /ou estimulado pela instituição financeira.

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Porém, as condutas com capacidade de gerar danos podem, além de não estarem ainda tipificadas e criminalizadas, serem absolutamente permitidas pelas normas nacionais e internacionais. É o que acontece com os sistemas de negociações paralelas às bolsas regulares, como a diretiva Mercado de Instrumentos Financeiros (multilateral trade facilities – MIF), adotada em 2004 e investida de força de lei a partir de 1º de novembro de 2007 (momentos antes da crise dos subprimes).  Os MIFs são responsáveis pela criação das dark pools e crossing networks no mercado financeiro internacional, permitindo que os operadores transacionem sem revelarem a quantidade e preço do montante operacionalizado, e dando maior liberdade aos bancos para que estes possam relacionar diretamente as ordens, de compra e venda, de seus clientes. A medida diminuiu a regulamentação do mercado financeiro internacional e a frequência das transações nas bolsas regulares para menos da metade das transações do mundo[116]. Além das dark pools e crossing networks, existem muitas outras “estratégias” no mercado aberto que ainda não foram criminalizadas, mas, porém, causam claramente a maximização do risco sistêmico, como o ato doloso de fazer o mercado pensar que algumas ações têm um valor consideravelmente alto, quando, na verdade, elas são irrisórias. O procedimento e seus efeitos são descritos pelo sociólogo Paul Lagneau-Ymonet e pelo economista Angelo Riva:

Uma das manipulações mais simples lembra a pesca de anzol com isca viva. Ao passar uma grande quantidade de ordens de compra, você ‘ativa’ o índice de mercado de um título do qual quer se desfazer. Isso atrai os compradores, e então, em frações de microssegundos, você anula as ordens de compra e vende seus títulos aos ‘trouxas’, a um preço artificialmente inflado. Além das possibilidades multiplicadas de manipulação dos preços, as transações de alta frequência aumentam o risco de crise sistêmica. Em 6 de maio de 2010, nos Estados Unidos, o índice Dow Jones caiu mais de 9% num único dia, e as ações da Procter & Gamble e da consultoria Accenture, em especial, desabaram em poucos minutos. Depois de cinco meses de investigação, os dois reguladores norte-americanos da bolsa conseguiram refazer o encadeamento dos acontecimentos. O algoritmo de um operador do Kansas gerou automaticamente 75 mil contratos futuros sobre as variações de um índice da Bolsa. Em seguida, sua execução automática, sem limites de preços, semeou o pânico entre os outros supercomputadores dos bancos e fundos de investimento: em quatorze segundos, os contratos mudaram de mãos 27 mil vezes, precipitando a queda brutal dos índices[117].

Nessa realidade, diante do dinamismo dos crimes financeiros cometidos em regra por pessoas extremamente qualificadas, a tipificação poderia ser facilmente ultrapassada por condutas lícitas novas e mais engenhosas. O problema revela-se letal à efetividade do Tribunal sediado em Haia para julgar os novos crimes financeiros, pois todas as constantes alterações teriam que ser ratificadas e promulgadas pelos Estados-partes, como assevera o Art. 2º do Decreto nº 4.388/02[118], o que depende da vontade dos mesmos, daí a necessidade de tipificação ampla para os casos concretos. Assim, é evidente a existência de condutas que causam sérios danos à ordem econômica que ainda não foram tipificadas, e, devido a seu dinamismo, teriam um acolhimento difícil no TPI, pois, antes, devem ser reconhecidas pelos poderes legislativos nacionais para só depois serem ratificadas pela Corte Internacional.

Mas, por outro lado, mesmo sendo comum nos crimes contra o SFI o ataque à ordem internacional, existem alguns crimes previstos na Lei nº 7.492/86 que, claramente, não fomentam prejuízos relevantes ao sistema financeiro internacional, apenas restringindo seus efeitos aos limites do País. É o caso do crime de evasão de divisas, previsto no Art. 22 da citada lei, que atribui a pena de reclusão de dois a seis anos, e multa, contra os indivíduos que efetuem operação de câmbio não autorizada (pelo Banco Central do Brasil), com o fim de promover evasão de divisas do país. A não adequação ao possível rol de crimes contra o sistema financeiro internacional, punidos pelo TPI, acontece porque o objeto jurídico da evasão de divisas ataca diretamente a estabilidade da moeda nacional e o bom funcionamento das reservas cambiais internas[119], o quê, obviamente, não atingiria as reservas cambiais estrangeiras, muito pelo contrário. A mencionada perda de interesse é comum aos crimes contra a ordem tributária. Para esclarecer a questão, salutar a lição de Aurora Tomazini de Carvalho:

Considerando sob o prisma constitucional, o bem jurídico tutelado pelas normas penais tributárias seria o ‘bem-estar social’ (...). Mas esse é um direito subjetivo muito amplo, que caracteriza a própria finalidade buscada com a constituição do mundo jurídico. Assim vamos pensar constitucionalmente, mas especificadamente no direito protegido pelas normas penais tributárias. O sistema tributário é constituído para que toda a sociedade contribua, arrecadando receitas, cuja finalidade é o financiamento de atividades sociais do Estado. O descumprimento de certas condutas prescritas pela ordem tributária contribui para a diminuição da arrecadação de receitas e, consequentemente, prejudica a finalidade para as quais foram instituídos os tributos, qual seja, o financiamento das atividades do Estado[120].

Como visto, é extremamente forte nos crimes contra a ordem tributária, a intenção de proteger a economia interna do Estado (brasileiro), já que o que é tutelado é uma ordem sempre interna, sustentada por tributos, que, não pagos, não ofendem a ordem tributária de outros países, nem mesmo a ordem econômica interna ou externa. Fatos que diferem do que se constata na maioria dos crimes contra o sistema financeiro nacional, onde o mencionado sistema, quando atacado, causa efeitos na ordem econômica, que é, por sua vez, internacionalizada (ordem internacional) (3.2). Cristalino, desse modo, o possível rol de condutas que poderia ser incluído no artigo de crimes do Tribunal Penal Internacional, qual seja, um novo conjunto de comportamentos que causem verdadeiramente danos a suposta ordem econômica global, sendo crimes contra o sistema financeiro ou não, ou tipificados pelos Estados-membros ou não.

3.2. A conduta contra o SFI como crime contra a humanidade

Considerando os danos causados à população mundial, aqueles “que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”[121], existe uma imensa similaridade entre os efeitos produzidos pelos crimes financeiros (e demais condutas não criminalizadas) e os crimes contra a humanidade (no sentido amplo da tipificação no TPI), aproximando os objetos de ambos os conjuntos de condutas.

Como afirmado em algumas passagens anteriores (1.1.1.), a economia mundial é um conjunto de instituições, Estados, pessoas físicas e jurídicas, consumidores e produtores, fortemente interligados entre si, a ponto de sofrerem todos por um único ato contra esta aglomeração. Portanto, configura-se a economia mundial um sistema, o sistema financeiro internacional, conjunto este que pode sofrer crises generalizadas. As analogias entre corpo e sistema, crise e doença, são aplicadas pelo filósofo Bento Itamar Borges:

A especificidade da crise econômica não apaga do termo crise as acepções mais primitivas, inclusive aquelas da dramaturgia grega, de onde o termo herda etimologia. Mais próximas do senso-comum são as aplicações do termo crise a estágios patológicos, seja, por exemplo, como sinônimo de colapso de funções orgânicas ou comportamentos, seja como equivalente ao ‘ponto crítico’ de, por exemplo, um processo infeccioso, quando o ciclo virótico atinge um turning point e, em seguida, a doença se resolve, com o restabelecimento da saúde ou com a morte. A metáfora é inevitável e revela simetrias entre sistemas, como, no caso, o organismo animal e o sistema capitalista[122].

A característica de unidade corporal atribui ao sistema financeiro uma ideia de que o mesmo pode sofrer danos à sua integridade, podendo os ataques causar prejuízos ao seu funcionamento normal levando-o à crise ou ao seu colapso (gerados pelo risco sistêmico).  Os ataques (incluído os crimes) para danificarem o sistema, bastam destruir um elemento que o sustenta: a confiança, a crença no mercado, nas instituições financeiras, no Estado, nos pagamentos, nos gastos, e na saúde financeira geral e individual, e, consequentemente, na integridade de todos (ou do todo, de todo o sistema). Para exemplificar o objeto jurídico tutelado pelos crimes contra o sistema financeiro, é imperioso o resgate do bem protegido pela Lei nº 7.492 de 1986 (Lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional), qual seja o próprio sistema financeiro (e a ordem econômica), descrito de forma magistral por Ali Mazloum:

Tendo em vista a análise empreendida, pode-se afirmar que os vários aspectos do Sistema Financeiro Nacional, organização do mercado, regularidade de seus instrumentos, confiança e segurança nos negócios, entrelaçam-se e formam um todo harmônico, de modo que, atingindo-se um ou mais dos precitados aspectos, afeta-se o Sistema Financeiro Nacional, bem jurídico tutelado pela Lei. A confiança, no entanto, é o aspecto mais frágil e de maior relevo, porquanto sua existência depende da normalidade dos demais. Assim, não se poderá falar em confiança em um mercado que não esteja devidamente organizado. A confiança depende da regularidade dos instrumentos de mercado[123].

Sem os elementos do sistema financeiro, que devem estar presentes concomitantemente, se têm as grandes crises econômicas, e como qualquer outro fato que produz colossal desordem, constroem um cenário de insatisfação geral, podendo levar os homens a considerarem a hipótese da guerra para disputar os recursos naturais ou o controle, que quase sempre se perde na desordem causada pela crise. Portanto, os crimes contra o sistema financeiro nacional (e internacional) afetam a ordem econômica, sendo que desestabilizada esta pela conduta criminosa, se prejudica a ordem social, a paz, e por fim, diretamente, a integridade física dos homens, pois, por vezes, em desordem social, o homem enfrenta sempre a própria espécie. Assim, os bens atacados, não só pelas infrações contra o sistema financeiro, mas também por todos os crimes econômicos, abrangem todo o conjunto de coisas, pessoas, valores e princípios que participam da economia, e, é claro, a toda sociedade. Neste sentido de abrangência, afirma Andrei Zenkner Schmidt:

O art. 168 do Código Penal é um crime contra o patrimônio, fazendo parte do direito penal primário e de sua sistemática própria; o art. 5º da Lei n. 7.492/86, pelo contrário, por ser um crime contra o Sistema Financeiro Nacional, se submete a um exame de ofensividade que lhe é peculiar. O exame desta peculiaridade é que nos interessa, dentro de um rigor metodológico arbitrariamente posto, porém racionalmente controlável. O objeto do DPE[124], nesse sentido é a ordem econômica enquanto planificação estatal de ordenação econômica da vida social. Escapam de seu alcance – pelo menos enquanto proteção jurídica direta – todos direitos públicos subjetivos, ‘econômicos’ ou sociais, porque já tutelados através de outras áreas especificas da parte especial do direito penal[125].

Diante dos vários conceitos, é vista com clareza a grande vastidão do sistema financeiro, abrangendo toda a sociedade e seu funcionamento, dependente da existência da ordem econômica. Pois bem. É, justamente, para a proteção da ordem que todas as convenções e tratados internacionais acolhem a proteção aos direitos humanos, pois, como visto, o homem precisa de equilíbrio para estabelecer-se em sociedade ordenada. Segundo Sidney Guerra “o mais fundamental dos direitos da humanidade” é a ordem internacional, elencada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Art. 28, onde o mesmo determina “que todo homem tem direito a uma ordem social e internacional, em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”[126]. Afirma ainda Guerra que a partir daí os direitos humanos deixam de ser objeto de interesse nacional, passando a ser um direito internacional[127].

Portanto, em resumida constatação lógica, quando se protege toda a ordem econômica mundial, se está tutelando ao mesmo tempo a ordem pública (ou social) mundial, já que, como demonstrado, uma depende da outra. Por conseguinte, considerando que a ordem econômica mundial se sustenta em um bom funcionamento do sistema financeiro globalizado, se está tutelando, com o combate aos crimes financeiros internacionais (e ao risco sistêmico), a própria existência da ordem econômica/pública internacional e do próprio direito internacional (e sua unidade).  Desse modo, com a desestabilização do direito internacional, ataca-se, por fim, a ordem global e os direitos humanos, pois, como afirmado por Sidney Guerra, a ordem internacional é um direito humano per si. No mesmo sentido, mesmo existindo uma prevalência da prevenção das guerras quando o direito internacional aduz sobre os crimes contra a humanidade (em interpretação restritiva), as leis internacionais que tentam proteger os homens dos futuros conflitos devem caminhar também para a proteção da ordem econômica global, pois a destruição desta pode levar a sociedade à guerra. Deste modo, a legitimidade do Tribunal Penal Internacional de cuidar dos crimes financeiros internacionais pode ser indiscutivelmente aceita. Restando, depois de verificada a possível legitimidade, as probabilidades de futuras tipificações de crimes internacionais contra a ordem econômica internacional.

3.3. Atos de cooperação do direito penal internacional x Atos de coação do direito internacional penal: as vantagens do TPI em face dos acordos internacionais

Constatando que as condutas que causam danos ao sistema financeiro nacional poderiam ser tuteladas pelo TPI, pergunta-se: diante de uma interligação entre países por meio de um grande número de acordos internacionais, por que a tipificação dos crimes contra o sistema financeiro internacional no Tribunal Penal Internacional se faz realmente necessária? Andrei Zenkner Schmidt, aduzindo sobre a mitigação do princípio da legalidade nos assuntos relativos à ordem econômica, sem pretensão acaba por explicar a razão máxima da transferência de titularidade diante de uma possível ineficiência nas punições dos crimes em questão, submetendo-se assim os Estados aos hipotéticos ditames do Tribunal Penal Internacional:

O peculiar da ordem econômica é que, num Estado que tenha a função constitucional de conjugar liberdade de mercado com prestatividade social, incumbe ao Poder Legislativo a programação genérica e, ao Executivo, a tomada de posição específica acerca dos rumos das políticas econômica e social. A velocidade e a volatilidade de uma economia inserida no mercado globalizado, assim como as constantes mudanças por prestatividade social, exigem respostas rápidas capazes de prevenir/superar crises econômicas e de adequar as contingencias da situação às possiblidades de atuação positiva do Estado. Consequentemente, o processo legislativo revelar-se-ia demasiadamente moroso para tanto, além de, com frequência, sobrepor interesses políticos nacionais e efêmeros às diretrizes globais do desenvolvimento econômico[128].

Diante de tantas negociações, as protelações e o descompromisso (para com a ordem econômica global) causados pelas autoridades dos Estados, evidentemente, desaguariam isoladamente em um eventual risco sistêmico. Mas não são apenas os legisladores as autoridades que se amoldam aos interesses políticos, sendo também os administradores públicos, mesmo com seus atos mais rápidos (às vezes discricionários), culturalmente dependentes de vários fatores nacionais em desconformidade com a sustentação da economia globalizada.

Outra plausível razão para o uso do TPI com a finalidade de proteger o sistema financeiro internacional é a ineficiência das simples cooperações internacionais para esse fim. O direito penal internacional visa “promover a cooperação internacional contra a criminalidade”, com tratados bilaterais e multilaterais, construindo um corpo de Estados combatendo os crimes (nacionais) que os atingem de alguma forma[129]. Portanto, o direito penal internacional trata sempre de cooperação entre Estados, muito diferente do direito internacional penal, que se ocupa dos “crimes internacionais”, “ofensas a valores basilares da convivência internacional”[130], sendo estes os tutelados pelo TPI. Observa-se que os crimes sob a guarda da Corte internacional em questão, não são objeto de cooperação e sim puro combate a crimes reconhecidos pela comunidade internacional como crimes internacionais. Em constatação lógica, o instituto da entrega não é uma simples cooperação, e sim um combate, sendo este já positivado, com esperada segurança jurídica.

Assim sendo, instituto do direito penal internacional, a cooperação internacional em matéria penal surge com tratados firmados entre Estados, à exemplo da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças; a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida); o Protocolo de Medidas Cautelares do Mercosul; o Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do Mercosul; a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo); Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas; Protocolo contra a Fabricação e Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Peças, Componentes e Munições; e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais; todos em vigor no Brasil[131].

A ineficácia dos atos de cooperação surge diante dos preceitos legais particulares a cada Estado, e do exercício da soberania de cada um deles. Preocupando-se com a adequação do devido processo legal aos inesgotáveis casos internacionais de cooperação, Carolina Yumi de Souza foca o tema do devido processo legal na cooperação, na lei aplicável a cada país e o fenômeno da dupla-incriminação[132]. Quanto à lei aplicável, a jurista expõe os difíceis meandros da lex diligentiae[133],  onde para a elaboração do pedido do Estado requerido, deve ser seguida minunciosamente a lei deste, considerando-se, desde logo, todos os requisitos do Estado requerido. Os mencionados requisitos, os quais dependem as cartas rogatórias, são submetidos às decisões judiciais internas (exequatur concedido pelo STJ, v.g.), que os analisam e verificam a conformidade legal entre os dois ordenamentos, do país requerente e requerido[134]. O mesmo ocorre com a problematização do item da dupla-incriminação, quando, sem qualquer acordo anterior (diferente dos casos do TPI), o fato[135] (e não a tipificação) imputado ao extraditando é considerado como crime nas legislações dos países requerente e requerido[136]. O caso da dupla-incriminação, do mesmo modo do problema da lei aplicável, esbarra na minimização da probabilidade de haver possibilidades concretas de ocorrências de conformidade entre legislações estrangeiras, até porque os interesses são diversos nos territórios e mudam em conformidade com o rápido dinamismo da economia. Em resumo, a cooperação não é por si ineficaz, mas, diante da grande rapidez que os assuntos da economia globalizada exigem e das características dos crimes financeiros (3.1), a fugacidade do instituto da entrega torna-se muito mais adequada ao caso.

Como é conhecido, o mencionado problema da consonância legislativa se ausenta no Tribunal Penal Internacional, onde a soberania é exercida no momento da ratificação do Estatuto de Roma. Assim, verificada um das vantagens do TPI e do direito internacional penal (2.2.1.), ainda diante da diversidade de condutas que causam danos ao sistema financeiro internacional, incluindo as não tipificadas pelos Estados, o primeiro obstáculo que a Corte enfrentaria na adoção da tutela dos crimes contra o sistema financeiro internacional seria a escolha das infrações que seriam puníveis pela mesma. Valorados os comportamentos que atacam o sistema financeiro internacional e, posteriormente, criminalizadas estas condutas, os Estados-membros deveriam convencionar os novos crimes e ratifica-los, o que tipificaria automaticamente as novas infrações nos ordenamentos jurídicos internos, pois como exposto anteriormente, é coerente que ratificado o disposto por norma internacional o firmado não pode ser revogado, por força da proteção da própria unidade do Direito (2.2.2.).

Assim, depois de convencionado o que é a ordem econômica global, o sistema financeiro internacional, verificada a extrema importância dos direitos humanos sustentados pela pacificidade entre os povos, e, por fim, quais crimes podem efetivamente colocar em risco estes, o Estados-partes devem ratificar os novos conceitos e condutas criminalizadas. Reside aí, nesse momento, o exercício da soberania dos Estados, quando esses se posicionam sobre os novos efeitos das mudanças e, sobretudo, a aplicação das penas impostas pelo Tribunal Penal Internacional aos cidadãos dos países que ratificarão novamente o estatuto.

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Sobre o autor
Lucas Maia Carvalho Muniz

Bacharelando do curso de Direito na Faculdade Ruy Barbosa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUNIZ, Lucas Maia Carvalho. A tutela dos crimes contra o sistema financeiro internacional no Tribunal Penal Internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3995, 9 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29339. Acesso em: 22 nov. 2024.

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