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Educação: é possível a construção de um conceito?

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3. A educação em Kant

Kant, assim como Rousseau, dedicou uma obra – Sobre a Pedagogia - especialmente à questão da educação. A abordagem dos dois autores é muito parecida do ponto de vista metodológico,  ambos procurando tratar mais especificamente a questão pedagógica, ou seja, qual é o melhor meio de educar.

Segundo Kant, somente o ser humano precisa ser educado, ou seja, a educação é característica exclusiva do gênero humano. “Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação. Conseqüentemente, o homem é infante, educando e discípulo.” [32]

No entender deste autor, a disciplina é a forma que impede ao homem o desvio de sua humanidade em razão das inclinações animais presentes em sua natureza. O motivo para se recorrer, desde cedo, à disciplina é a inclinação do homem à liberdade. A disciplina visa submeter o homem aos preceitos da razão.

  A disciplina é negativa já que visa impedir ao homem a selvageria (independência de qualquer tipo de lei), sendo a instrução a parte positiva da educação.

Kant se aproxima de Rousseau quando afirma que a educação materna não deve ser super-protetiva, ou seja, a criança deve conhecer os sofrimentos menos dolorosos cedo, com o intuito de evitar sofrimentos maiores nas fases posteriores da vida, compreensão hoje considerada, de acordo com a leitura psicológica, como aspectos positivos da frustração.

A educação é característica que define o conceito de homem. O homem é fruto da educação que recebeu.  “O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” [33]

A pedagogia kantiana é toda baseada na transmissão de conhecimento adquirido de geração em geração, ou seja, educar  significa repassar à geração seguinte toda a experiência adquirida ao longo da vida. Nestes termos: “... somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida  em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual lhes acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe segue.” [34]

A educação deve ter por base um projeto cosmopolita e isto implica que o bem geral nunca pode prejudicar o bem particular. Além disso, durante o processo pedagógico, deve preponderar uma visão otimista  de um estágio da humanidade melhor do que aquele que os sujeitos da educação estão vivendo. A educação, portanto, deve privilegiar um estado ideal da humanidade. A partir de tal pressuposto Kant enuncia:

“Um princípio de pedagogia, o qual principalmente os homens que propõem planos para a arte de educar deveriam ter ante os olhos, é: não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da sua inteira destinação.” [35]

É realmente notável que num ser humano se encerre a historicidade de toda a humanidade. Hoje, sobretudo em se tratando das questões oriundas de toda pesquisa relacionada com o patrimônio genético, a teoria ética de Kant tem sido retomada: “Age como se a máxima de tua ação deverá tornar-se , por tua vontade, lei universal da natureza”[36]e continua “Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio.”[37]

Assim, cada um de nós estabeleceremos um elo de responsabilidade com as futuras gerações.

Na educação kantiana, o homem deve alcançar quatro aspectos:

1.Tornar-se disciplinado: a educação, através da disciplina, deve controlar a animalidade humana;

2.Tornar-se culto: através da instrução e da aquisição de outros conhecimentos;

3.Tornar-se prudente: a prudência caracteriza a civilidade;

4.Tornar-se moral: referência à escolha de boas finalidades. São boas aquelas finalidades que, ao mesmo tempo, são aprovadas por todos e que podem ser as finalidades de cada um.

Kant entendia que  o processo pedagógico não é axiologicamente neutro. Durante a educação, é muito importante mostrar ao educando a importância de pensar por si próprio e de basear sua conduta por princípios claros. As seguintes passagens expressam muito bem este entendimento: “Entretanto, não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam  a pensar. [...] A educação e a instrução não  devem  ser puramente  mecânicas,  mas devem apoiar-se em princípios.” [38]

No que se refere ao tempo que deve durar a educação, Kant se aproxima de Rousseau pois ambos acreditam que a educação deve terminar quando o homem está pronto para ser pai e em condições de passar de educando a educador. A diferença é que Rousseau estabelece esta idade em torno dos vinte anos e Kant em torno do dezesseis anos.

“Quanto tempo deve durar a educação? Até o momento que a natureza determinou que o homem se governe a si mesmo, ou até que nele se desenvolva o instinto sexual; até que ele possa tornar-se pai e seja obrigado, por sua vez, a educar: até aproximadamente a idade de dezesseis anos.” [39]

A pedagogia ou doutrina da educação é dividida por Kant em física e prática. A educação física consiste no cuidado com o corpo. Já a educação prática está voltada à personalidade e visa a cultura do homem, a fim de que este viva plenamente sua liberdade.

3.1. A educação física

Quanto à educação física, Kant parece repetir vários preceitos indicados por Rousseau ao seu pupilo Emílio. Exemplos: não enfaixar crianças; alimentá-la, de preferência, com o leite materno; não adquirir nenhum hábito durante a infância; deixar a criança chorar sem atender prontamente a todos os seus desejos... Nesse sentido,  Kant propõe o seguinte conceito: “A educação física consiste propriamente nos cuidados materiais prestados às  crianças ou pelos pais, ou pelas amas de leite,  ou pelas  babás.” [40]

A disciplina não deve tratar as crianças como escravas, mas deve fazer com que elas tenham sempre consciência de sua liberdade e entendam que não podem desrespeitar a liberdade alheia. A função da disciplina, neste caso, é mostrar que a liberdade pessoal encontra limite na liberdade do outro. Contudo, a disciplina não significa recusar tudo aos filhos para dar-lhes paciência; as crianças necessitam receber aquilo que precisam para sobreviver.

Outro aspecto importante da pedagogia kantiana relacionado à educação física é o trabalho. O homem é o único ser que necessita do trabalho para sobreviver. Segundo Kant, o trabalho deve fazer parte da vida do homem já enquanto criança. Vejamos:

“É de suma importância que as crianças aprendam a trabalhar. O homem é o único animal obrigado a trabalhar.[...]

Prejudica-se à criança, se se a acostuma a considerar tudo um divertimento. Ela deve certamente ter seu tempo de recreio, mas também as suas horas de trabalho.” [41]

Este entendimento, felizmente, tem sido objeto de um ardoroso trabalho, tanto em termos de construção jurídica, com a proibição do trabalho infantil (no caso brasileiro, já consagrado no ordenamento constitucional e infra-constitucional); quanto em termos de uma nova mentalidade no corpo social, de que a criança ao penetrar no mundo do trabalho, que é essencialmente o mundo do adulto, terá comprometido o seu sadio desenvolvimento. O lugar da criança é junto à escola, à família, aos brinquedos, ao lazer; esta é a infância que desejamos.

Quando se está educando, o educador deve estar preocupado em relacionar a sabedoria e a capacidade. Kant indica a matemática como a melhor ciência para alcançar este escopo.

A finalidade global da educação pode ser dividida em:

1.Aspectos gerais da índole: diz respeito à habilidade e ao aperfeiçoamento para fortificar a índole. Será:

·Física: depende da prática e da disciplina. É cultura passiva já que não depende propriamente do educando para se concretizar.

·Moral: depende do educando. É preciso que este tenha capacidade para enxergar sempre o fundamento e a conseqüência de sua ação, partindo de seu conceito de dever.

2.Aspecto particular da índole: “Aqui têm lugar a inteligência, os sentidos, a imaginação, a memória, a atenção e a espirituosidade, o que também diz respeito às potências inferiores do entendimento.” [42]

Estes aspectos da índole são fundamentais no momento em que a criança começar a distinguir o bem do mal. Tal distinção deve começar a ser feita pela criança já pequena. Importante salientar que a punição não pode servir de base para noções de bem e mal. “Deve-se procurar desde cedo inculcar nas crianças, mediante a cultura moral, a idéia do que é bom ou mau. Se se quer fundar a moralidade, não se deve punir.” [43]

 São três as características que devem ser levadas em conta na formação das crianças: a obediência, a veracidade (o exemplo é fundamental e pode construir ou destruir tudo o que foi ensinado) e a sociabilidade.

Convém salientar que Kant não descarta a punição quando a criança transgride uma ordem, quando desobedece. No entanto, faz a seguinte advertência:

“De nada servem os castigos aplicados com raiva. Nessas ocasiões as crianças os vêem apenas como conseqüências, e a si mesma como objeto da paixão de outra pessoa. Em geral, é preciso agir de modo que as próprias crianças percebam que o fim das punições aplicadas é o seu aprimoramento. É absurdo pretender que a criança punida agradeça, beije as mãos, etc; é insensato e faz dela um escravo. Quando os castigos físicos são repetidos freqüentemente, formam caracteres obstinados e intratáveis e, se os pais castigam os filhos por sua obstinação, não fazem mais que torná-los mais obstinados ainda.” [44]

3.2. A educação prática

A educação prática é composta pela habilidade, pela prudência e pela moralidade. Esta segunda modalidade pedagógica é responsável pelo ensinamento daquilo que Kant denomina “deveres a cumprir” [45]. Estes deveres devem ser repassados através de exemplos e regras e são os seguintes:

·Deveres para com a própria pessoa: referem-se à dignidade pessoal enquanto ser humano. É a obrigação de ninguém negar a si próprio a dignidade intrínseca da natureza humana.

·Deveres para com os outros: as crianças devem, desde cedo, aprender a respeitar os direitos humanos e, além disso, procurar colocá-los em prática.

Como esta parte da educação está diretamente relacionada à questão moral que perpassa o ensaio kantiano sobre a pedagogia, é importante discutir aqui a moralidade como característica imanente ou não da natureza humana. Segundo Kant, o homem não é mau ou bom por natureza mas sua moralidade será adquirida quando estiver pronto a sujeitar sua razão aos ditames do dever ser. A educação é, neste contexto, muito importante pois manifesta-se com o meio pelo qual o homem  é capaz de, racionalmente, seguir as leis do dever moral. “Pergunta: o homem é moralmente bom ou mau por natureza? Não é bom nem mau por natureza, porque não é um ser moral por natureza. Torna-se moral apenas quando eleva a sua razão até os conceitos do dever e da lei.” [46]

No que se refere à questão religiosa, Kant afirma que a melhor forma de se agradar a Deus é tornar-se cada vez melhor. Este aspecto pode resumir, de certa forma, a possibilidade de educar bem: a educação depende da escolha de bons princípios e de sua aceitação por parte dos educandos. Poderia se afirmar que a aplicação concreta dos bons princípios aprendidos representa uma possibilidade concreta de melhora da  natureza humana.

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Tanto Rousseau quanto Kant entendem que a educação é uma realidade bastante abrangente: inclui a educação física, a educação moral e sexual e a educação para a vida em sociedade.

Finalmente, Kant coloca a necessidade que cada ser humano tem de refletir e analisar quotidianamente o modo de conduzir a própria vida: “É preciso, por fim, orientá-los sobre a necessidade de, todo dia, examinar a sua conduta, para que possam, ao fim da vida, fazer uma apreciação do valor da mesma.” [47]


4.  A educação na concepção Marxiana

A concepção da educação na análise marxiana é, como todo o trabalho de Marx, voltada à questão da tomada do poder pelo proletariado com a finalidade de instituir uma nova ordem social completamente oposta ao capitalismo.

O que importa afirmar que Marx se preocupa mais com a questão da instrução e do ensino da classe oprimida do que com questões educacionais ou pedagógicas. O ensino é dividido em três aspectos principais:

1.Ensino intelectual;

2.Educação física;

3.Adestramento tecnológico.

Para Marx o ensino dado ao proletariado e aos filhos do proletariado é meio capaz de  aprimorar  a luta de classes e transformar a sociedade burguesa em sociedade socialista. “A união do trabalho produtivo remunerado, ensino intelectual, exercício físico e adestramento politécnico elevará a classe operária acima das classes superiores e médias.” [48]

 Apesar de destinado à classe dos proletários, o ensino preconizado por Marx poderia ser válido para crianças de todas as classes sociais. Segundo a pedagogia marxiana, ensino e trabalho produtivo são termos inseparáveis (relação definida nas Instruções)  .

O Capital – obra mater  do pensamento de Karl Marx - continua  relacionando trabalho produtivo e ensino, afirmando que tal relação, além de proporcionar um aumento na produção social, é o único método que permite ao homem alcançar seu pleno desenvolvimento. Muito plausível este entendimento já que, para Marx, a mais valia do proletário era sua força de trabalho.

A concepção marxiana da educação está voltada para a politecnia, ou seja, para que o trabalhador consiga viver dignamente e não seja explorado por aqueles que detêm os meios de produção é necessário conhecer todos os aspectos teóricos e práticos da produção. Daí sua preocupação em fazer com que o ensino sirva para transformar  a população operária unilateral em “onilateral”, ou seja, capaz de conhecer todos os aspectos do modo de produção e não apenas um deles.

“Mas, parece-nos, principalmente que o ‘politecnicismo’ sublinha o tema da disponibilidade para os vários trabalhos ou para as variações dos trabalhos, enquanto a ‘tecnologia’ sublinha, com sua unidade de teoria e prática, o caráter de totalidade ou onilateralidade do homem, não mais dividido ou limitado apenas ao aspecto manual ou apenas ao aspecto intelectual (prático – teórico) da atividade produtiva.” [49]

No entender de Marx, todas as crianças deveriam trabalhar com a seguinte intensidade:

·De 09 a 12 anos: duas horas por dia;

·De 12 a 15 anos: quatro horas por dia;

·De 16 a 17 anos: seis horas por dia.

Na obra Crítica ao Programa de Gotha, de 1875, Marx  - apud Manacorda - se expressa nestes termos:

“ ‘Proibição [geral] do trabalho das crianças ... Sua efetivação – se fosse possível – seria reacionária porque, ao regulamentar severamente a duração do trabalho segundo as várias idades e ao tomar outras medidas preventivas para a proteção das crianças, o vínculo precoce entre o trabalho produtivo e o ensino é um dos mais potentes meios de transformação da sociedade atual.’ ” [50]

Finalmente, para Marx, era importante a existência de escolas técnicas com duplo caráter: teórico e prático. Já a escola formal deveria ser abolida visto que só servia  como instrumento de manutenção da ordem burguesa preestabelecida.

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Sobre os autores
Josiane Rose Petry Veronese

Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente, da Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora em Direito. Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUC/RS. Coordenadora do Curso de Direito da UFSC. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente e sub-coordenadora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade CCJ/UFSC. Autora de vários livros e artigos na área do Direito da Criança e do Adolescente.

Cleverton Elias Vieira

Mestre em Direito pela UFSC. Professor substituto do Curso de Graduação em Direito da UFSC. Pesquisador do Nejusca – Núcleo de Estudos Jurídicos-sociais da Criança e do Adolescente/CCJ/UFSC . Advogado. Consultor Jurídico da Secretaria de Estado de Coordenação e Articulação – Santa Catarina. Membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA/SC. Autor de artigos na área do Direito à educação e do livro: Limites na educação: sob a perspectiva da Doutrina da Proteção Integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Florianópolis: OAB/SC editora, 2006 (em co-autoria com Josiane Rose Petry Veronese).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERONESE, Josiane Rose Petry ; VIEIRA, Cleverton Elias. Educação: é possível a construção de um conceito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4101, 23 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29399. Acesso em: 23 abr. 2024.

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