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Críticas ao caráter absoluto da imunidade parlamentar material brasileira

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29/06/2014 às 09:28
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Este artigo demonstra que há equívocos na atual jurisprudência dominante do STF, segundo a qual a imunidade parlamentar material brasileira seria absoluta, sempre que exercida dentro do recinto do Parlamento, o que deve ser revisto.

RESUMO: A atual jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal considera de caráter absoluto a imunidade parlamentar material, prevista no art. 53, caput, da Constituição Federal de 1988, sempre que as manifestações de pensamento do parlamentar (opiniões, palavras e votos) forem proferidas dentro do recinto da respectiva Casa Legislativa. Esse posicionamento, por implicar a perda de proteção judicial dos direitos fundamentais consagrados no art. 5º, X, da mesma Constituição, está embasado em premissas jurídicas equivocadas, devendo, pois, ser revisto pela Corte, na tentativa de resgatar sua antiga jurisprudência, conforme a qual, mesmo naquela hipótese, imprescindível é a realização do exame judicial do nexo de causalidade entre as manifestações do parlamentar e o exercício do respectivo mandato legislativo, para efeito de reconhecimento da mencionada prerrogativa constitucional.

PALAVRAS-CHAVE: inviolabilidade parlamentar, recinto, parlamento, natureza absoluta, críticas, tutela, direitos fundamentais.


            A imunidade parlamentar brasileira está consagrada no art. 53 da Constituição Federal, assim redigido:

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

§ 1º [...].

§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

§ 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

§ 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

§ 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

§ 6º [...].

§ 8º As imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

As imunidades acima consagradas pelo texto constitucional são de duas espécies: material e formal.

A material, objeto do presente artigo, está definida no caput do citado artigo 53 e objetiva resguardar o parlamentar quando, no exercício de seu mandato ou em função dele, vier a externar suas opiniões, palavras e votos, os quais, assim externados, estarão imunes a qualquer tipo de responsabilidade, inclusive na esfera civil. Ela é conhecida também como inviolabilidade.

Já a imunidade formal diz respeito à prisão por crime inafiançável e ao processo criminal que eventualmente vier a ser ajuizado em face do parlamentar, delineada nos §§ 2º a 5º do referido artigo 53.

Com relação à imunidade parlamentar material, o Supremo Tribunal Federal consagrou, em sua atual jurisprudência, o seu caráter absoluto, sempre que as manifestações de pensamento do congressista ocorrerem dentro da Casa Legislativa a que estiver vinculado, ainda que suas opiniões, palavras e votos não tenham absolutamente nada a ver com o exercício do respectivo mandato, o que nos parece equivocado, sob o ângulo constitucional, especialmente em virtude da necessidade de o Poder Judiciário, notadamente o guardião da Constituição, ser o maior encarregado da defesa da integridade dos direitos fundamentais.

Esse posicionamento, hoje prevalecente no STF, começou a ser delineado em precedente do qual foi redator do acórdão o Min. Ayres Britto, cuja ementa tem o seguinte teor:

EMENTA: INQUÉRITO. DENÚNCIA QUE FAZ IMPUTAÇÃO A PARLAMENTAR DE PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A HONRA, COMETIDOS DURANTE DISCURSO PROFERIDO NO PLENÁRIO DE ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA E EM ENTREVISTAS CONCEDIDAS À IMPRENSA. INVIOLABILIDADE: CONCEITO E EXTENSÃO DENTRO E FORA DO PARLAMENTO. A palavra "inviolabilidade" significa intocabilidade, intangibilidade do parlamentar quanto ao cometimento de crime ou contravenção. Tal inviolabilidade é de natureza material e decorre da função parlamentar, porque em jogo a representatividade do povo. O art. 53 da Constituição Federal, com a redação da Emenda nº 35, não reeditou a ressalva quanto aos crimes contra a honra, prevista no art. 32 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Assim, é de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento. Somente nessas últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento é de se perquirir da chamada "conexão como (sic) exercício do mandato ou com a condição parlamentar" (INQ 390 e 1.710). Para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa. No caso, o discurso se deu no plenário da Assembléia Legislativa, estando, portanto, abarcado pela inviolabilidade. Por outro lado, as entrevistas concedidas à imprensa pelo acusado restringiram-se a resumir e comentar a citada manifestação da tribuna, consistindo, por isso, em mera extensão da imunidade material. Denúncia rejeitada. (Inq 1958, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2003, DJ 18-02-2005 PP-00006 EMENT VOL-02180-01 PP-00068 RTJ VOL-00194-01 PP-00056). (negrito nosso).

Essa nova postura da Corte foi muito bem resumida em voto proferido pelo Min. Luiz Fux, no AgR RE n. 576.074-RJ, j. 26.04.2011, Primeira Turma, DJe n. 98 de 25.05.2011, no qual sua Excelência assentou o seguinte:

Com efeito, o âmbito de abrangência da cláusula constitucional de imunidade parlamentar material, prevista no art. 53 da Constituição, tem sido construído por esta Corte à luz de dois parâmetros de aplicação. Quando em causa atos praticados no recinto do Parlamento, a referida imunidade assume contornos absolutos, de modo que a manifestação assim proferida não é capaz de dar lugar a qualquer tipo de responsabilidade civil ou penal, cabendo à própria Casa Legislativa promover a apuração, interna corporis, de eventual ato incompatível com o decoro parlamentar. De outro lado, quando manifestada a opinião em local distinto, o reconhecimento da imunidade se submete a uma condicionante, qual seja: a presença de um nexo de causalidade entre o ato e o exercício da função parlamentar [...].[1]

Com a devida vênia, já na ementa do primeiro precedente acima transcrito, o STF revelou certa contradição ao consignar no final o entendimento ora combatido, porque, em seu início, ficou registrado que “tal inviolabilidade é de natureza material e decorre da função parlamentar, porque em jogo a representatividade do povo”. Ora, se a imunidade material decorre da função parlamentar, como, em seguida, desvinculá-la do exercício dessa função, pelo simples fato de as palavras, opiniões e votos serem proferidos no interior da Casa Legislativa, tornando-a, apenas por isso, de caráter absoluto? Onde o amparo constitucional para se chegar a tanto?

Curioso notar que, em defesa de seu voto, o Min. Ayres Britto chegou a afirmar que de dentro da Casa Legislativa o parlamentar estaria livre para cometer crimes contra a honra alheia, dado o caráter absoluto da imunidade material nesse local, em decorrência justamente da desnecessidade de se apurar, em sede judicial, se haveria ou não qualquer tipo de nexo entre as manifestações suspostamente criminosas do parlamentar e o exercício de seu mandato.

O Min. Carlos Velloso, por sua vez e de forma contrária, em seu voto isolado e vencido, reiterou posicionamento anterior já declinado no sentido de que “as palavras dos parlamentares que não tenham sido proferidas no exercício e nem em consequência do mandato [...] não estão abrangidas pela imunidade material. É dizer, há de existir, entre a atividade parlamentar e as declarações atribuídas ao congressista, nexo causal”. (negrito nosso).

Desse modo, o objetivo do presente artigo é demonstrar que o Supremo Tribunal Federal, no indispensável exercício de seu relevante papel de defensor da higidez constitucional dos direitos fundamentais, conduziu-se mal ao adotar o posicionamento ora questionado, considerando de caráter absoluto a imunidade parlamentar material, sempre que o objeto de sua tutela se exteriorizar dentro do espaço físico da respectiva Casa Legislativa.

Para tanto, é preciso observar, de início, ser intuitivo que a Constituição Federal, ao definir o rol de prerrogativas em favor dos parlamentares, o fez não em razão de um suposto prêmio especial às pessoas que pudessem alcançar esses cargos de destacada posição estatal, mas para assegurar a plenitude e total independência de seus titulares no exercício das funções inerentes aos referidos cargos.[2]

Não é por outra razão que o Min. Marco Aurélio averbou que:

O objetivo maior do preceito [art. 53 da Constituição Federal] é viabilizar a atuação equidistante, independente, sem peias, no exercício do mandato [...]. De modo algum, tem-se preceito a viabilizar atuação que se faça, de início, estranha ao exercício do mandato, vindo o Deputado ou Senador a adentrar, sem consequências jurídicas, o campo da ofensa pessoal, talvez mesmo diante de descompasso na convivência própria à vida gregária. A não se entender assim, estarão eles acima do bem e do mal, blindados, a mais não poder, como se o mandato fosse um escudo polivalente, um escudo intransponível. Cumpre ao Supremo, caso a caso, perquirir a existência de algum elo entre o que se espera no desempenho do mandato parlamentar e o que veiculado, principalmente quando isso aconteça fora da casa legislativa, em entrevista dada à imprensa.[3]

Além disso, a Constituição Federal, como qualquer outro corpo de leis, é um sistema normativo que, necessariamente, deve ser interpretado como um todo, em respeito claro à unidade constitucional.

Assim, impõe-se ao intérprete fazer com que convivam em harmonia – porque consagrados na mesma Carta da República – a norma que estabelece a imunidade parlamentar material e as que consagram os direitos fundamentais relativos à intimidade, privacidade, imagem e honra das pessoas, conferindo a estas, em caso de inequívoca ofensa, o direito à devida reparação.[4]

Por esse peculiar aspecto, fica muito evidente que considerar a imunidade parlamentar material de natureza absoluta, pela mera circunstância de as manifestações do parlamentar serem proferidas no recinto do Parlamento, mesmo não tendo absolutamente nada a ver com o exercício do mandato (englobando, dessa forma, toda sorte de abusos e desvios), quebra essa convivência harmônica entre as citadas normas constitucionais, retirando dos direitos fundamentais mencionados qualquer eficácia jurídica de tutela jurisdicional, esvaziando-os por completo, o que é inaceitável diante da garantia constitucional de ampla acessibilidade ao Poder Judiciário, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.

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Esse alcance sistemático, aliás, foi muito bem destacado pela Min. Cármen Lúcia, no precedente por último citado (Inq 2.813/DF), ao dizer o seguinte em seu voto: “Como a Constituição é sistema, se lê no conjunto, o artigo 53 usa a expressão “são invioláveis”. Entretanto, usa rigorosamente a mesma expressão na espinha dorsal da Constituição, que é o art. 5º, ao afirmar que: Art. 5º [...] X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas [...]”.

E, complementando essa ideia, a mesma Ministra asseverou, em outra oportunidade:

Não seria possível admitir que ela [a Constituição Federal de 1988] tivesse inoculado alguns com a intangibilidade da mão da Justiça e com a inaplicação total do Direito, de tal modo que ficassem alguns intocáveis para a observância do próprio sistema jurídico. Nem os princípios nem os fins a que se destina a norma de direito prestam-se a tal interpretação e aplicação.[5]

Ainda de acordo com a Min. Cármen Lúcia:

A Constituição não diferencia o parlamentar para privilegiá-lo. Distingue-o e torna-o imune ao processo judicial e até mesmo à prisão para que os princípios do Estado Democrático da República sejam cumpridos; jamais para que eles sejam desvirtuados. Afinal, o que se garante é a imunidade, não a impunidade. Essa é incompatível com a Democracia, com a República e com o próprio princípio do Estado de Direito.

E, mais adiante, arremata:

Imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio. E esse, sabe-se, é mais uma agressão aos princípios constitucionais, ênfase dada ao da igualdade de todos na lei.[6]

Daí porque não vemos nenhuma razão plausível para que o STF considere a imunidade parlamentar material como sendo de caráter absoluto, pela mera circunstância de as manifestações de pensamento do parlamentar terem sido externadas na sede da Casa Legislativa a que ele pertencer. Cabe aqui indagar se esse fator de discrímen, qual seja o espaço físico em que localizado o Parlamento, é ou não constitucionalmente justificado para efeito de legitimar o tratamento diferenciado ora impugnado.

Nesse prisma, cabe enfatizar que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, examinando a constitucionalidade das chamadas “cláusulas de barreira” em concursos públicos, procedeu à seguinte análise sobre o alcance do princípio da isonomia:

Como se sabe, nem todas as distinções implicam quebra de isonomia. Desde Aristóteles, compreendemos muito bem que o postulado da igualdade subentende o dever de tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Segundo Alexy, essa fórmula clássica implica um mandado de tratamento desigual, isto é, o princípio da igualdade deve ser interpretado no sentido de uma norma que, prima facie, exige um tratamento igual e só permite um tratamento desigual se esse tratamento desigual puder ser justificado com razões suficientes. Assim, o enunciado sobre o mandado de tratamento desigual adquire a seguinte estrutura: Se há uma razão suficiente para ordenar um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento desigual (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales; 2001) .

A exigência de razões suficientes para o tratamento desigual impõe uma carga de argumentação ao legislador ou àquele que emite a norma que implica tratamento desigual. Há diversas formas de fundamentação dos juízos de valor sobre igualdade e desigualdade que podem justificar um tratamento desigual. De toda forma, há que se levar em conta que a igualdade é, em termos gerais, um tipo de relação que se pode estabelecer entre dois ou mais seres ou objetos, tendo em vista uma ou várias características ou circunstâncias.

Por isso, o conceito de isonomia é relacional por definição. O postulado da igualdade pressupõe pelo menos duas situações, que se encontram numa relação de comparação. (Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung, W.Weber, p. 345 (354).

Essa relatividade do postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a uma inconstitucionalidade relativa (relative Verfassungswidrigkeit). Inconstitucional não se afigura a norma A ou B, mas a disciplina diferenciada conferida pela norma (die Unterschiedlichkeit der Regelung) (Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung, W.Weber, p. 345 (354).

A diferenciação estabelecida pela norma deve ser fundada em razões suficientes para o tratamento desigual. Assim, tem-se como relevante o que a doutrina tem chamado de razoabilidade qualitativa, que exige que a antecedentes iguais sejam imputadas, pela norma, consequências iguais, sem que haja exceções arbitrárias. Isso significa que a lei, para ser razoável, deve tratar igualmente os iguais em circunstâncias iguais. Nas palavras do constitucionalista argentino Ricardo Haro, “é inegável que o ordenamento jurídico deve estabelecer lógicas e razoáveis distinções e classificações em categorias que a discricionariedade e a sabedoria o inspirem, e que se baseiem em objetivas razões de diferenciação”. (HARO, Ricardo. La razonabilidad y las funciones de control. In: El control de constitucionalidad. Buenos Aires: Ed. Zavalia; 2003, p. 209.)[7] (destaques no original).

Para melhor compreensão da legitimidade constitucional ou não do fator de discrímen utilizado pelo STF para considerar a imunidade parlamentar material de natureza absoluta – o mero espaço físico da Casa Legislativa a que pertencer o parlamentar – é preciso trabalhar alguns exemplos de situações extravagantes, mas de fácil ocorrência na vida real, suscitados pelo próprio STF nos autos do Inq 1.710/SP, rel. Min. Sydney Sanches, unânime, Plenário, DJ de 28.06.2002.

Com efeito, ao fundamentar o seu voto condutor, com o objetivo de afastar a imunidade parlamentar material no caso, o Min. Sydney Sanches afirmou que:

[...] não se compreenderia estar coberta pela imunidade material a conduta de um parlamentar que, por exemplo, como condômino de um prédio, em uma reunião do condomínio, viesse a emitir palavras ofensivas ao Síndico. Ou que, num acidente de trânsito, com seu veículo particular, viesse a ofender o motorista do outro veículo. Ou, então, quando, durante uma briga de rua, inteiramente estranha a sua atividade parlamentar, viesse a ofender seu desafeto.[8]

Se as ofensas verbais assacadas nessas situações não são abrangidas pela imunidade parlamentar material, justamente por não terem a mínima relação com o exercício do respectivo mandato, será que constituiria uma razão suficiente para a incidência dessa imunidade, sob o ângulo do princípio da isonomia, a mera circunstância de essas mesmas ofensas serem externadas de dentro do recinto do Parlamento?

Entendemos que não, por um singelo motivo: o espaço físico em que instalado o Parlamento, por si só, não tem o condão de realizar o elo jurídico – que deve ser sempre averiguado pelo Poder Judiciário – entre essas ofensas e o exercício do mandato eletivo. Ou seja, as ofensas mencionadas pelo Min. Sydney Sanches acima continuariam desprovidas de qualquer vínculo com o mandato parlamentar, ainda que externadas dentro do prédio ou demais dependências do Parlamento.[9] Basta para tanto imaginar, no primeiro exemplo, que as ofensas dirigidas ao síndico, na condição de simples condômino, fossem pronunciadas pelo parlamentar ao fazer uso da tribuna de sua Casa Legislativa, em nítido abuso de uma prerrogativa constitucional.

O próprio Min. Ayres Britto – maior defensor do caráter absoluto da imunidade material nesse contexto – asseverou, em dada oportunidade, que “o que interessa em matéria de reconhecimento da inviolabilidade – inviolabilidade material, naturalmente – não é o local em que proferida a suposta ofensa, mas é a natureza da matéria, é a matéria em si”.[10]

Se não fosse assim, estar-se-ia transformando a sede física do Parlamento em um lugar imune à incidência da Constituição Federal no que ela tem de mais importante (sua espinha dorsal, como dito pela Min. Cármen Lúcia), que é o rol dos direitos fundamentais, dentre os quais os direitos à intimidade, à privacidade, à imagem e à honra das pessoas (art. 5º, X, da CF de 1988). Ora, em um Estado Democrático de Direito e Republicano como o nosso, essa opção é simplesmente inadmissível.

Importante consignar que essa compreensão do tema tem estreita relação com o que se costuma chamar de princípio da proibição de abuso de direito fundamental[11] (aqui, no caso, de direito fundamental de natureza institucional do parlamentar, relativo à prerrogativa da imunidade material).

Com efeito, a moderna doutrina ensina que:

[...] esse princípio estabelece que nenhum direito fundamental deve ser interpretado no sentido de autorizar a prática de atividades que visem à destruição de outros direitos ou liberdades. Em outras palavras: o exercício de direitos fundamentais não pode ser abusivo a ponto de acobertar práticas ilícitas/criminosas cometidas em detrimento de outros direitos fundamentais ou de valores constitucionais relevantes.

[...] o que se conclui é que os direitos fundamentais não podem ser utilizados para fins ilícitos, até porque eles existem para promover o bem-estar e a dignidade do ser humano e não para acobertar a prática de maldades que possam ameaçar esses valores.[12]

Nesse sentido, o próprio STF já deixou registrado que:

A jurisprudência desta Corte consagrou o entendimento de que o princípio constitucional da inviolabilidade das comunicações (art. 5º, XII, da CF) não é absoluto, podendo o interesse público, em situações excepcionais, sobrepor-se aos direitos individuais para evitar que os direitos e garantias fundamentais sejam utilizados para acobertar condutas criminosas.[13] (negrito nosso).

Esse mesmo entendimento – que reprime, de forma correta e justa, eventuais abusos cometidos pelos titulares de direitos fundamentais –[14] não pode deixar de ser aplicado no caso de abusos eventualmente praticados pelo parlamentar ao externar suas opiniões, palavras e votos, ainda que o faça dentro do recinto do respectivo Parlamento, sob pena de se admitir a transformação de uma prerrogativa institucional em odioso e lamentável privilégio, pois, como se sabe, “o que a Constituição proíbe não é o tratamento diferenciado em si, mas o tratamento discriminatório destituído de justificativa constitucionalmente aceitável”.[15]

É bem verdade que o Min. Ayres Britto, em defesa de sua convicção pessoal e jurídica de que a imunidade parlamentar material ou inviolabilidade é absoluta, dentro dos muros da Casa Legislativa, chegou a pontuar que seria um mito acolhido pela própria Corte Suprema a inexistência de direitos absolutos na Constituição Federal.

Deveras, sua Excelência citou, para demonstrar seu argumento, os seguintes exemplos que desmitificariam essa concepção: o direito de o brasileiro nato não ser extraditado; o direito de não ser compelido a se filiar ou permanecer filiado; o direito de não sofrer pena cruel ou tratamento desumano;[16] e o direito de a pena não passar da pessoa do delinquente.[17]

Ocorre, porém, que entre esses direitos fundamentais e a prerrogativa constitucional da imunidade parlamentar material há diferenças enormes de natureza jurídica que não podem ser ignoradas pelo intérprete constitucional, embora não tenham sido elas aventadas por qualquer outro integrante da Suprema Corte brasileira.

A primeira distinção reside na circunstância de que, em relação aos direitos fundamentais apontados pelo Min. Ayres Britto, o beneficiário da respectiva norma constitucional encontra-se sempre em uma posição passiva em relação a uma agressão de terceiros (incluído o Estado, na imposição de penas, por exemplo), a qual pode ser de natureza física, mental, psicológica ou simplesmente jurídica (como no caso da extradição de brasileiro nato), de modo que esse beneficiário nunca poderá abusar do direito conferido por essas normas, justamente porque a teleologia delas revela que sua única função é colocar a pessoa beneficiada a salvo dessas diversas agressões (sintonia total com o princípio basilar da dignidade humana).

Já a imunidade parlamentar material, por outro lado, permite ao parlamentar que dela se beneficia a prática de abusos e agressões indevidas aos direitos fundamentais de terceiros,[18] porque lhe é possível assumir uma posição ativa capaz de atingir ilicitamente esses direitos, sempre que assim o fizer de forma absolutamente divorciada do exercício de seu mandato.

A segunda distinção entre essas diversas normas constitucionais parece residir na diferença que há entre uma regra e um princípio, espécies do gênero norma jurídica, tal como sustentado pelo doutrinador alemão Robert Alexy, nos seguintes termos:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.[19] (destaques no original).

Aplicando-se essa lição aos direitos de natureza absoluta mencionados pelo Min. Ayres Britto, percebe-se que eles têm uma nota especial em comum: a estrutura de regras e não de princípios. A norma de direito fundamental contida no art. 5º, LI, da Constituição Federal, por exemplo, conforme a qual nenhum brasileiro nato será extraditado é uma determinação definitiva no sentido de que sempre que se tratar de brasileiro nato não poderá ser concedida, jamais, a sua extradição, não comportando, portanto, nenhum questionamento quanto a uma eventual variação em sua satisfação, se maior ou menor, a depender dessa ou daquela situação fática ou jurídica. Ou seja, nessa hipótese, não há que se cogitar desse tipo de questionamento.

O mesmo se pode afirmar quanto ao direito fundamental definido no art. 5º, XX, da mesma Constituição, segundo o qual “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”. Aqui, em se tratando do ser humano, esse tipo de constrangimento está absoluta e definitivamente afastado ou proibido por essa norma, não comportando a sua estrutura qualquer possibilidade de um grau maior ou menor de satisfação. O mesmo raciocínio vale para os outros dois direitos expressamente citados pelo Min. Ayres Britto, acima indicados.

Aliás, o caráter absoluto da regra é destacado pelo próprio Alexy quando, mais adiante, naquela mesma obra, ele assevera que “não é o princípio que é absoluto, mas a regra, a qual, em razão de sua abertura semântica, não necessita de limitação em face de alguma possível relação de preferência”.[20]

Virgílio Afonso da Silva, tradutor da mencionada obra de Alexy, em seu artigo intitulado “Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção”, apresenta, por sua vez, como exemplo de regra (e não princípio) de direito fundamental a norma constitucional, segundo a qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal).

Em suas palavras: “As regras, ao contrário dos princípios, expressam direitos e deveres definitivos, ou seja, se uma regra é válida, então deve se realizar exatamente aquilo que ela prescreve, nem mais, nem menos. No caso dos princípios, o grau de realização pode, como visto, variar”.[21]

Pelo que se extrai da definição de princípios, por outro lado, verifica-se que as possibilidades jurídicas para a sua realização ou satisfação vão depender da presença ou não de outros princípios colidentes, que, por também reclamarem máximo grau de realização ou de satisfação, provocarão a necessidade de um sopesamento, a fim de que a solução para essa colisão de princípios alcance um resultado ótimo.

Na dicção de Virgílio Afonso da Silva:

Visto que para se chegar a um resultado ótimo é necessário, muitas vezes, limitar a realização de um ou de ambos os princípios, fala-se que os princípios expressam deveres e direitos prima facie, que poderão revelar-se menos amplos após o sopesamento com princípios colidentes.[22]

Em seguida, esse autor cita a liberdade de expressão como exemplo de princípio, consignando que ela:

[...] consiste, prima facie, na liberdade de exprimir o que se deseja por meio da forma que se deseja. Esse direito só pode ser um direito prima facie, já que não é difícil imaginar que o exercício dessa liberdade poderá colidir com outros direitos, principalmente com a honra e a privacidade. Em cada caso ou grupos de casos, aquele direito prima facie poderá revelar-se, então, menos amplo.[23]

Ora, é muito fácil perceber que a imunidade parlamentar material está ligada justamente ao direito de liberdade de expressão do parlamentar,[24] no desempenho de seu mandato, porque objetiva tutelar (realizar ou satisfazer), no maior grau possível, as palavras, opiniões e votos do mandatário político, de maneira que essa prerrogativa possui, por isso mesmo, inequívoca natureza de princípio constitucional.

Daí porque é natural que essa inviolabilidade entre em rota de colisão, em diversos casos concretos, com os direitos fundamentais relativos à intimidade, privacidade, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X, da Constituição Federal), os quais inegavelmente ostentam também a estrutura normativa de verdadeiros princípios.

Havendo uma colisão desse tipo, será inevitável o recurso à técnica de sopesamento (e ao princípio da proporcionalidade) com o objetivo final de harmonizar ao máximo (concordância prática) a satisfação concomitante, sempre que possível, dos princípios colidentes.[25]

Interessante notar que um grande esforço de harmonização entre a imunidade parlamentar material e o direito fundamental à honra é colhido de importante precedente do Supremo Tribunal Federal, assim ementado:

CRIME CONTRA A HONRA - ELEMENTO SUBJETIVO - O DOLO - INVIOLABILIDADE PARLAMENTAR - RETORSÃO - ALCANCE. Tratando-se de hipótese a revelar prática inicial coberta pela inviolabilidade parlamentar, sentindo-se o titular do mandato ofendido com resposta formalizada por homem público na defesa da própria honra, único meio ao alcance para rechaçar aleivosias, cumpre ao órgão julgador adotar visão flexível, compatibilizando valores de igual envergadura. A óptica ortodoxa própria aos crimes contra os costumes, segundo a qual a retorsão é peculiar ao crime de injúria, cede a enfoque calcado no princípio constitucional da proporcionalidade, da razoabilidade, da razão de ser das coisas, potencializando-se a intenção do agente, o elemento subjetivo próprio ao tipo - o dolo - e, mais do que isso, o socialmente aceitável. Considerações e precedente singular ao caso concreto. (Inq 1247/DF, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/1998, DJ 18-10-2002 PP-00026 EMENT VOL-02087-01 PP-00075) (negrito nosso).

Nesse precedente, cuidava-se de uma queixa-crime ajuizada por um Deputado Federal em face de um Ministro de Estado, cuja honra havia sido intensa e abusivamente agredida em discurso proferido da tribuna da Câmara dos Deputados.

Como esse discurso estava blindado pela imunidade material – a despeito do expresso reconhecimento do abuso cometido pelo Deputado –, o Tribunal admitiu como legítima a defesa da própria honra, mediante retorsão exercitada pelo Ministro de Estado, em resposta que fez publicar em alguns veículos da imprensa nacional, poucos dias após o referido discurso parlamentar.

Fica evidente, nesse caso, a colisão entre a prerrogativa da imunidade parlamentar material e o direito fundamental à honra, bem como a tentativa do Tribunal em harmonizá-los da melhor forma possível, de tal modo que algum grau de satisfação pudesse alcançar ambos os princípios constitucionais.

Dessarte, o Min. Ayres Britto, com a devida vênia, equivocou-se ao equiparar a natureza jurídica dos direitos fundamentais do art. 5º da Constituição Federal, por ele mencionados naquele voto acima referido, à norma constitucional que prevê e consagra a imunidade parlamentar material, para efeito de considerar esta como uma norma de igual caráter absoluto.

Como visto, as primeiras são regras, enquanto que a segunda, relativa à imunidade parlamentar material, constitui autêntico princípio, desprovida, por isso mesmo, de qualquer conotação absoluta.[26]

Por conseguinte, em decorrência de todos os argumentos acima apresentados, torna-se imperioso concluir que o entendimento atualmente prevalecente no Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a imunidade parlamentar material é absoluta quando o seu objeto de tutela for exercido dentro dos muros da Casa Legislativa, deve ser revisto e alterado o mais breve possível, porque constitui, na realidade, um grau absurdo e inaceitável de reverência à sede do Poder Legislativo, conferida sob o alto e perigoso preço do aniquilamento de importantes direitos fundamentais do ser humano, especialmente os que estão consagrados no art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988.

Como destacado pela doutrina: “[...] a missão por excelência das Cortes Constitucionais é a defesa dos direitos fundamentais e das regras do regime democrático, mais do que a mera guarda ritualística e asséptica das regras previstas na Constituição”.[27]

Nesse contexto, é sempre necessário ter em mente a judiciosa advertência do Min. Celso de Mello, quanto à relevância do STF no quadro político e jurídico-institucional do país:

Já o disse, certa vez, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal - que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do poder constituinte - não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se esta Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas.[28]

Enfim, para que não fiquem gravemente comprometidos os direitos fundamentais elencados no art. 5º, X, de nossa Constituição de 1988, é fundamental que o Supremo Tribunal Federal faça – também a propósito da suposta incidência da imunidade parlamentar material, mesmo nas hipóteses em que as manifestações de pensamento do parlamentar ocorram dentro do recinto de sua Casa Legislativa – o imprescindível exame do nexo de causalidade (por mínimo que seja) entre tais manifestações (opiniões, palavras e votos) e o exercício de seu respectivo mandato popular.[29]

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Sobre o autor
Eliseu Antônio da Silva Belo

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás-UFG. Ex-servidor da Justiça Federal em Goiás. Promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás desde agosto de 2004. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Autor do livro "O artigo 41 da Lei Maria da Penha frente ao princípio da proporcionalidade", pela Editora Verbo Jurídico, 2014. Atualmente, titular da Promotoria de Justiça de Cocalzinho/GO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELO, Eliseu Antônio Silva. Críticas ao caráter absoluto da imunidade parlamentar material brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4015, 29 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29608. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

O presente artigo foi originalmente publicado na Revista do Ministério Público do Estado de Goiás, Goiânia, ano XVII, n. 27, p. 9-30, jan./jun. 2014.

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