A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, especializada no julgamento de processos criminais, aprovou três novos enunciados (a propósito, o enunciado é a súmula de um entendimento consolidado no órgão julgador, que é adotado em todos os julgamentos que tratam da mesma matéria, servindo de orientação para todos os órgãos do Poder Judiciário no país, de primeira e segunda instância).
Os três enunciados tiveram as teses fixadas anteriormente em julgamento de recurso especial sob o rito dos representativos de controvérsia, estabelecido no artigo 543-C do Código de Processo Civil.
O primeiro deles diz respeito ao benefício previsto no art. 155, 2º., do Código Penal, in verbis: “Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.” Eis um direito subjetivo público do réu!
O Enunciado 511 permite a aplicação do benefício em caso de furto qualificado, com seguinte texto: "É possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do Código Penal nos casos de crime de furto qualificado, se estiverem presentes a primariedade do agente, o pequeno valor da coisa e a qualificadora for de ordem objetiva." (Recurso Repetitivo: REsp 1193194http://www.stj.jus.br/webstj/processo/justica/jurisprudencia.asp?tipo=num_pro&valor=REsp1193194).
Como qualificadoras de ordem objetiva consideramos aquelas previstas nos incisos I, II (escalada), III e IV. Nada obstante, não aceitamos a razão da limitação do enunciado apenas em relação às qualificadoras de natureza objetiva, mesmo porque o que importa para gozar do benefício legal é a primariedade e o pequeno valor da coisa subtraída, pouco importando se foi com abuso de confiança, ou mediante fraude ou destreza. Uma coisa não tem nada que ver com a outra!
Aqui, parece-nos importante uma observação: não podemos confundir "furto privilegiado" com crime de bagatela (que não é crime, pois não há tipicidade em razão do princípio da insignificância). Como ensina Cezar Roberto Bitencourt, “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico.”[1]
Estamos diante do velho adágio latino minima non curat praetor , que fundamenta o princípio da bagatela, cunhado por Claus Roxin, na década de 60. Francisco de Assis Toledo ensina que Welzel considerava que “o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo que estamos defendendo. Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas."[2]
Aliás, atentemos que “em tempo de pensar a gestão e a estrutura do Poder Judiciário, notadamente após a Emenda Constitucional 45, e face ao acúmulo de processo que gera insuportável morosidade aos jurisdicionados, o princípio da insignificância representa sofisticado mecanismo obstaculizador de demandas cujo custo é injustificável.”[3]
Ademais, é sabido desde há muito que a norma penal “existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a penal.”[4] Logo, alguém só “pode ser responsabilizado pelo fato cometido quando tenha causado uma concreta ofensa, ou seja, uma lesão ou ao menos um efetivo perigo de lesão para o bem jurídico que constitui o centro de interesse da norma penal.”[5] É a aplicação do princípio da ofensividade[6], segundo o qual nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria. É de Luigi Ferrajoli a seguinte lição: “La necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como ‘lesión’, ‘daño’ y ‘bien jurídico’ son claramente valorativas.”[7]
Ora, se a conduta do agente não lesa (ofende) o bem jurídico tutelado, não causando nenhum dano, ou, no máximo, um dano absolutamente insignificante, não há fato a punir por absoluta inexistência de tipicidade, pois “la conducta que se incrimine ha de ser inequivocamente lesiva para aquellos valores e intereses expresivos de genuínos ‘bienes juridicos’.”[8]
Relembre-se que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, ou seja, a sua intervenção só será aceitável em casos de ataques relevantes a bens jurídicos tutelados pelo Estado. Paulo Queiroz, por exemplo, explica o inexpressivo sentido jurídico penal de determinadas condutas, nada obstante típicas abstratamente: “É que não tem o legislador, em face das limitações naturais da técnica legislativa e da multiplicidade de situações que podem ocorrer, o poder de previsão, casuística, das hipóteses efetivamente merecedoras de repressão. Noutros termos, falta-lhe o poder de prever em que grau e em que intensidade devem tais ações merecer, in concreto, castigo. Não lhe é possível, enfim, ao prever tipos abstratos, ainda que se atendo àquelas lesões mais significativas, fixar, segundo o caso concreto, em que intensidade a lesão deve assumir relevância penal efetiva. Com bem assinala Maurach, nenhuma técnica legislativa é tão acabada a ponto de excluir a possibilidade de que, em alguns casos particulares, possam ficar fora da ameaça penal certas condutas que não apareçam como merecedoras de pena. Vale dizer, a redação do tipo legal pretende certamente só incluir prejuízos graves à ordem jurídica e social , porém não impede que entrem também em seu âmbito os casos mais leves, de ínfima significação social. Enfim, o que in abstrato é penalmente relevante pode não o ser verdadeiramente, isto é, podem não assumir, in concreto, suficiente dignidade e significado jurídico-penal.”[9]
Assim, impõe-se a aplicação do princípio da insignificância, pois somente as condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens jurídicos efetivamente relevantes carecem dos rigores do Direito Penal. Seu aparecimento “recomenda a aplicação do Direito Penal apenas nos casos de ofensa grave aos bens jurídicos mais importantes (principio bagatelar próprio).”[10] Já o seu fundamento “está, também, na idéia de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime. Nos casos de ínfima afetação ao bem jurídico o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste nenhuma razão para o pathos ético da pena, de sorte que a mínima pena aplicada seria desproporcional à significação social do fato.”[11]
Aliás, como dissemos acima, “el origen del estudio de la insignificancia se remonta al año 1964, cuando Claus Roxin formuló una primigenia enunciación, la que fuera reforzada – desde que se contemplaba idéntico objeto – por Claus Tiedemann, con el apelativo de delitos de bagatela.”[12]
Como ensina Luiz Flávio, “pequenas ofensas ao bem jurídico não justificam a incidência do direito penal, que se mostra desproporcionado quando castiga fatos de mínima importância (furto de uma folha de papel, de uma cebola, de duas melancias etc.). Dogmaticamente falando, já não se discute que o princípio da insignificância (ou da bagatela, como lhe denominam os italianos, assim como Tiedemann) exclui a tipicidade, mais precisamente a tipicidade material.” Para ele, hoje, “já praticamente ninguém nega a relevância do princípio da insignificância (ou da bagatela) no direito penal. Não há dúvida que é um princípio de política criminal, mas adotado e aplicado diariamente pelos juízes e tribunais.”[13]
Também restou pacificado o entendimento da Terceira Seção e pelas duas Turmas a ela vinculadas, Quinta e Sexta, de que a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas. Portanto, "a redução de um sexto a dois terços da pena para réus primários, de bons antecedentes e que não integrem organização criminosa não decorre do reconhecimento de uma menor gravidade da conduta praticada, nem da existência de uma figura privilegiada do crime. Trata-se de um favor legislativo ao pequeno traficante, ainda não envolvido em maior profundidade com o mundo do crime, como forma a propiciar-lhe uma oportunidade mais rápida de ressocialização."
O verbete mantém, portanto, o caráter hediondo do crime de tráfico, mesmo em caso de redução da pena: "A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas." (Recurso Repetitivo: REsp 1329088http://www.stj.jus.br/webstj/processo/justica/jurisprudencia.asp?tipo=num_pro&valor=REsp1329088). Acertado tal entendimento.
Por fim, o terceiro enunciado diz respeito à abolitio criminis, prevista na Lei 10.826/2003, conhecida como o Estatuto de Desarmamento, que fixou prazo de 180 dias, a partir de sua publicação, para registro dessas armas. Os prazos foram prorrogados diversas vezes por leis posteriores. Coube à Terceira Seção estabelecer qual o prazo final da abolição criminal temporária para o crime de posse de armas sem identificação e sem registro.
Assim, em julgamento de recurso repetitivo, "a Seção decidiu que é crime a posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, praticada após 23 de outubro de 2005. Segundo a decisão, foi nesta data que a abolitio criminis temporária cessou, pois foi o termo final da prorrogação dos prazos previstos na redação original dos artigos 30 e 32 da Lei 10.826/2003.
Eis a redação do Enunciado 513: "A abolitio criminis temporária prevista na Lei n. 10.826/2003 aplica-se ao crime de posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, praticado somente até 23/10/2005." (Recurso Repetitivo: REsp 1311408http://www.stj.jus.br/webstj/processo/justica/jurisprudencia.asp?tipo=num_pro&valor=REsp1311408).
Obviamente que este enunciado contraria o disposto na Lei nº. 11.922/2009 que, em seu art. 20 prorrogou para o dia 31 de dezembro de 2009 os prazos de que tratam o § 3o. do art. 5o. e o art. 30, ambos da Lei nº. 10.826, de 22 de dezembro de 2003.
Notas
[1] Manual de Direito Penal - Parte Geral - Ed. Revistas dos Tribunais - 4a ed., p. 45.
[2] Princípios Básicos de Direito Penal - Ed. Saraiva - 4a ed. - 1991 - p. 132.
[3] Artigo escrito coletivamente por Salo de Carvalho, Alexandre Wunderlich, Rogério Maia Garcia e Antônio Carlos Tovo Loureiro intitulado Breves Considerações sobre a Tipicidade Material e as Infrações de Menor Potencial in AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de e CARVALHO Salo de (organizadores). A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de administração da Justiça Criminal. Sapucaia do Sul – RS: Notadez, 2006, p. 144.
[4] Luiz Flávio Gomes, Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 18.
[5] Idem, p. 15.
[6] Sobre o assunto, conferir a recente obra de Luiz Flávio Gomes, “Princípio da Ofensividade no Direito Penal”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[7] Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 467.
[8] Antonio Garcia-Pablos, Derecho Penal – Introducción, Madrid: Servicio Publicaciones Facultad Derecho Universidad Complutense Madrid, 1995, 265.
[9] Paulo de Souza Queiroz - Do caráter subsidiário do direito penal – Lineamentos para um direito penal mínimo, Editora Del Rey, Belo Horizonte – 1998, p.122
[10] Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira, O princípio da insignificância ou bagatela - conceito, classificação hodierna e limites, Revista Jurídica Consulex – Ano VIII – N. 186 – 15 de outubro/2004, p. 62.
[11] José Henrique Guaracy Rebelo, Princípio da Insignificância, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 38.
[12] Enrique Ulises García Vitor, La Insignificancia en el Derecho Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 20.
[13] Site: ultimainstancia.com.br – terça-feira, 9 de novembro de 2004.