O positivismo é expressão de um momento histórico em que se procurava tudo verificar com ares de cientificidade objetiva. Neste sentido, era necessária a ruptura com as imposições seculares, as várias fontes de poder legitimadas em um ente divino e, forte, romper com o jusnaturalismo, que buscava sua sustentação justamente nas orientações seculares e divinizadas, ou na ideia de uma natureza humana imutável (também atrelada à origem divina).
Não somente porque o jusnaturalismo tinha suas raízes em orientações mais filosóficas e religiosas, mas também porque isso propiciava legitimações difusas e às vezes incongruentes de poder, pode-se dizer que a resposta científica e objetiva almejada contrapunha-se ao jusnaturalismo.
Existem (ou existiram), na verdade, várias formas de positivismo, que, muitas vezes, são confundidas, como o positivismo exegético – teoria segundo a qual o juiz é a “boca da lei”, e em que sobreleva a “proibição de interpretar” – e o positivismo normativista (Kelsen) – em que não há proibição de interpretar, apenas não há preocupação com isso, porque o ato aplicativo envolve uma razão prática de difícil manuseio.
O positivismo exegético (Escola da Exegese) pode ser remetido à França do século XIX e a todas as circunstâncias políticas que ali existiam.[1] Pugnava-se a separação entre direito e moral, além de confundir texto e norma, lei e direito, pois se tratava, como mencionado, da crença em torno da proibição de interpretar.[2]
Depois surgiu o positivismo normativista, já no século XX, o qual, segundo Streck: “[...] seguido das mais variadas formas e fórmulas que – identificando (arbitrariamente) a impossibilidade de um ‘fechamento semântico’ do direito – relegou o problema da interpretação jurídica a uma ‘questão menor’.”[3]
Conceituar positivismo jurídico é tarefa árdua, que talvez possa ser melhor desempenhada, por definição a contrario sensu, ou mediante a elucidação de suas características, relativamente a que se vai buscar auxílio em Streck:
Entre tantas concepções acerca do tema, poder-se-ia acentuar algumas teses centrais, isto é, os principais aspectos que constituem o positivismo:
1-que a existência (vigência e validade) do direito em uma dada sociedade depende das práticas dos membros dessa sociedade; são, pois, as fontes sociais do direito;
2-que a validade de uma norma independe de sua “validade” moral; trata-se, pois, da separação entre direito e moral (secularização), cuja discussão central reside na discussão do papel desempenhado pela razão prática no contexto d(e um)a teoria do direito. Ora, as teorias do direito positivistas haviam recusado fundar suas epistemologias numa racionalidade que desse conta do agir propriamente dito. Como alternativa, estabeleceram um princípio fundado em uma razão teórica pura: o direito deveria, a partir de então, ser visto como um objeto que seria analisado segundo critérios emanados de uma lógica formal rígida. Isto significa dizer que para o positivismo pouco importava colocar em discussão – no campo de uma teoria do direito – questões relativas à legitimidade da decisão tomada nos diversos níveis do poder estatal (legislativo, executivo ou judicial). No fundo, operou-se uma cisão entre validade e legitimidade, sendo que as questões de validade seriam resolvidas através de uma análise lógico-semântica dos enunciados jurídicos, ao passo que os problemas de legitimidade – que incluem uma problemática moral – deveriam ficar sob os cuidados de uma teoria política que poucos resultados poderiam produzir, visto que esbarravam no problema do pluralismo de idéias presente num contexto democrático, o que levava inexoravelmente a um relativismo filosófico;
3-que as normas jurídicas de um ordenamento não “cobrem” todas as hipóteses de aplicação; isto quer dizer que haverá “casos difíceis” que não serão solucionáveis pelas normas jurídicas existentes; daí o recurso à discricionariedade, poder “delegado” aos juízes (é neste ponto que o positivismo se liga umbilicalmente ao sujeito solipsista – Selbstsüchtiger – da modernidade). Tais questões, de um modo ou de outro, estão presentes em Kelsen e Hart, que constituem, assim, o “ovo da serpente do positivismo contemporâneo”, embora realistas jurídicos, como Alf Ross, tenham, sob outro viés, parcela significativa de responsabilidade nesse affair. Kelsen “desiste” de enfrentar o problema dos “casos difíceis” (embora deles não fale, na especificidade), deixando a cargo dos juízes tal solução, a partir de um “ato de vontade” (daí se falar do “decisionismo kelseniano”). Já Hart confia plenamente nos juízes para a resolução dos casos difíceis, desde que tal “escolha” se dê no interior da zona de penumbra da norma. Ao transferir o problema da normatividade kelseniana para a decisão judicial, Ross conforma aquilo que se pode denominar de positivismo fático (o sentido da norma se da na decisão). Mas em todos eles está presente a indissociabilidade entre “discricionariedade/arbitrariedade e o sujeito do esquema sujeito-objeto”.[4] (grifos nossos).
O positivismo normativista kelseniano acreditava na relatividade dos sistemas morais, de forma que esta, então, não poderia ser utilizada como parâmetro para uma abordagem jurídico-científica. A renomada obra de Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, bem pode exemplificar essa circunstância, pois, mediante ao manuseio do direito em uma espécie de metalinguagem, preocupava-se com o acertamento de validade lógico-deôntica das normas jurídicas, para, com isso, alcançar suposta cientificidade.
Mediante a utilização de apenas uma razão teórica, o positivismo objetivava agregar segurança ao direito, expurgando de sua esfera questões morais e questões de natureza prática. Importava para a ciência jurídica não o acertamento ou desacertamento moral de seu objeto, mas o seu conhecimento e a sua descrição. Questões de natureza prática, como o julgamento pelos Tribunais, eram relegadas a um segundo plano. Por isso, em Kelsen, a interpretação que um cientista do direito realiza consiste em um ato de conhecimento, ao passo que a interpretação que o Judiciário realiza é um ato de vontade[5].
Além disso, para Kelsen, uma norma não pode trazer em si todas as hipóteses de sua aplicação. Portanto, ela poderá formar, no máximo, um quadro ou moldura, no interior do qual o intérprete encontrará uma variedade de respostas[6]. Kelsen parte do pressuposto de que há uma relativa indeterminação do ato de aplicação do Direito, por isso afirma que “[...] mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.”[7]
Observa-se que, mantendo-se vinculado apenas a uma razão teórica, relegou-se a um segundo plano tanto as questões morais quanto às questões práticas de aplicação judicial da lei, ou do ato interpretativo.
Sustentou-se a possibilidade/necessidade de preenchimento da moldura da lei pelo julgador, o que acaba por sobrelevar a discricionariedade judicial a um patamar quase que sem limites[8], até mesmo porque, de acordo com Kelsen, não há necessariamente apenas uma resposta correta na norma individual – que é a sentença. Podem existir várias, dentre as quais o julgador deverá escolher uma.[9] Esse entendimento dessume-se, a contrario sensu, das palavras de Kelsen:
A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo.[10]
Por irônico que pareça, a tentativa desse positivismo de cientificização e estabilização do direito acaba dando lugar a uma discricionariedade fulminante desses propósitos, na medida em que o tratamento do ato judicial como algo de menor importância cede espaço a multivariados entendimentos jurídicos, a minar o desígnio de segurança jurídica.
Linear a discricionariedade em que fundamentado o ato – interpretativo – decisional no positivismo: da opção entre quais são os casos que se encontram latentes no interior da regra, até o próprio conteúdo do ato de vontade consistente no julgamento, são exemplos claros de tal característica. Essa possibilidade de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa acaba por atestar a própria impossibilidade e ausência de controle, e, ao fim, de legitimidade, das decisões judiciais calcadas em postura positivista.
E a prevalência desse sujeito solipsista, que se basta por si mesmo, assujeitador do mundo, é ainda presente na dogmática jurídica contemporânea, e endossada por algumas teorias argumentativas cunhadas pós-positivistas (que, na verdade, possuem continuidade positivista), que mantêm essa possibilidade de distinção entre easy cases e hard cases – nota que sobrevive no seio de algumas teorias contemporâneas, como a de Alexy[11] – contribuindo para a sobrelevação do sujeito solipsista da filosofia da consciência.
Essa preponderância do sujeito solipsista, criador de seu próprio objeto de conhecimento, denota uma das faces da crise em que se encontra o direito: crise de paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, e a não superação, pela dogmática jurídica, do paradigma da prevalência da lógica do sujeito cognoscente.[12]
O sujeito, assujeitador das coisas e do mundo, que se basta a si mesmo, ainda é prevalente na dogmática jurídica. A linguagem, por conseguinte, ainda não alcançou a posição privilegiada que assume em Heidegger e Gadamer, com o giro linguístico-ontológico, onde passa a realizar uma intermediação entre sujeito-sujeito, como condição de possibilidade da existência do próprio mundo.
Visível ainda a não superação desse paradigma, na medida em que não é raro observar decisões judiciais em que consta a afirmação segundo a qual se está julgado de acordo com a própria consciência ou sentimentos em relação à causa[13].
Daí cristalina a prevalência desse modelo de fazer/aplicar/interpretar o direito, em que a subjetividade é tão profunda que assujeita o objeto com o qual tem contato, resultando, possivelmente, tantas e tão distintas decisões quantas forem e quão distintas as subjetividades que tomarem conhecimento desse mesmo objeto.
Outra face da crise em que se encontra o direito é representada pela crise do paradigma liberal-individualista de produção de direito. Com isso se quer manifestar, por exemplo, o deficiente tratamento legislativo e judicial quanto a questões que envolvam conflitos transindividuais.
A dogmática jurídica, assim como o corpo legislativo e a atuação judicial, encontram-se arraigados em uma tradição liberal-individualista, em que prevalecem as relações intersubjetivas simples, contendas entre mais de dois, ou apenas alguns sujeitos nos polos da demanda.
Ocorre que os compromissos assumidos pelo Estado Democrático de Direito implicam também comprometimento com classes de – novos – direitos. Coletivos[14], difusos[15], individuais homogêneos[16], enfim, direitos transindividuais, emergem de uma sociedade de relações complexas, sedentos por proteção e concretização. O Direito, como fenômeno social, não pode(ria) assumir papel alheio às mutações sociais e consequentes necessidades impostas por essas transformações. Que respostas (ou a ausência delas), então, a nova matriz de produção/aplicação do direito oferece a esse quadro de demandas sociais é o questionamento/problema que se impõe a uma segunda face da referida crise.
O que se pode constatar quanto ao processo civil é que o “legislador brasileiro”, imerso no paradigma de natureza liberal-individualista de produção de direito, não se apercebeu (ou não quis se aperceber) de tais reclames sociais, tampouco da nova configuração que respeita ao paradigma de Estado e de Direito inscritos na Constituição Federal de 1988, e suas inafastáveis implicações.[17]
Exemplificativamente, o Código Processual Civil brasileiro, legislação editada em 1973, e sucessivamente remodelada (dentro de um mesmo molde!) encontra-se estreitamente vinculado aos ideais liberais, em que o individualismo (e os direitos individuais) é o carro-chefe da produção legiferante.[18] Essa crise do modo de produção do Direito pode ser atribuída à dogmática jurídica, que, nas palavras de Streck, em “[...] plena sociedade trans-moderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos”.[19]
Sem meias-palavras, Hommerding afirma que “[...] a situação do processo civil, na ‘era das massas’, é precária. Idealizado para uma sociedade cuja historicidade era outra, o Direito Processual não resistiu à sua finitude.”[20] Ovídio A. Baptista da Silva, no mesmo sentido, asseverou que para o direito processual civil a história parou no século XIX: “Daí porque não devemos depositar demasiada esperança na ‘Reforma do Poder Judiciário’, se não estivermos dispostos a repensar os fundamentos do sistema, superando os ideais do Iluminismo.”[21]
Voltado para a resolução de conflitos individuais lineares, deixou ao léu situações em que a contenda não envolva apenas dois – ou mais, mas não uma coletividade, determinada ou não de – sujeitos. O Poder Judiciário e a legislação por ele aplicável quedam imobilizados diante de tais situações. No Brasil, segundo Streck, ainda predomina “[...] o modo de produção de Direito instituído/forjado para resolver disputas interindividuais, ou, como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício ou onde Caio é o agente/autor e Tício (ou Mévio), o réu/vítima.”[22] Ao que parece, apenas Caio e Tício (e quiçá também Semprônio!) são destinatários das normas processuais civis, que apenas as relações entre eles travadas podem ser verdadeiramente jurídicas, e tão-somente elas podem adquirir condição de litígio judicial.
Como resultado dessa crise de paradigma de produção do direito, não se consegue desvencilhar de uma perspectiva objetificante e reducionista, que subtrai a complexidade das relações sociais. Revela-se, com isso, uma prisão às amarras dos ideais do Estado e do Direito de natureza liberal, obstando a devida e necessária filtragem constitucional da produção/aplicação de direito. Essa tendência (ou tentativa), que labora para o velamento das complexidades, acaba por trair a própria razão existencial do Direito, uma vez que exclui de seu manto situações que necessitam tratamento, proteção e concretização jurídicas. De acordo com Warat: “O saber jurídico da modernidade organizou o lado masculino do imaginário do direito. Mobiliza o social negando as incertezas e o novo, impede a inscrição do direito na temporalidade.”[23]
Desde uma perspectiva do modo de produção/aplicação dentro do contexto de Estado Democrático de Direito, abre-se uma necessária mudança de conduta. O pós-positivismo, não como continuidade, mas como ruptura com o positivismo, tem como parâmetro a Constituição Federal, mostrando-se inaceitável, nessa linha, por exemplo, que direitos consagrados constitucionalmente careçam de proteção, permanecendo à margem do campo da concretização. Nas palavras de Streck:
De um lado os operadores do Direito continuam reféns de uma crise emanada da tradição liberal-individualista-normativista (e iluminista, em alguns aspectos); e, de outro, a crise do paradigma epistemológico da filosofia da consciência. O resultado dessa(s) crise(s) é um Direito alienado da sociedade, questão que assume foros de dramaticidade se compararmos o texto da Constituição com as promessas da modernidade incumpridas.[24]
E sua proteção passa também por um efetivo controle da parametricidade constitucional, mediante não apenas o recurso ao controle concentrado, por meio da iniciativa dos representantes sociopolíticos habilitados para tanto, mas, também, por intermédio de um essencial controle difuso de constitucionalidade. Como já ressaltado, no seio de um Estado Democrático de Direito, o polo de tensão passa do Executivo para o Judiciário, em razão mesmo das promessas incumpridas da modernidade. E, nesse contexto, a jurisdição constitucional ganha relevo, e olvidam-se muitos, que toda jurisdição é – ou deveria ser – jurisdição constitucional.
Além disso, na perspectiva da teoria hermenêutica filosófica, não se pode deixar de ressaltar a distinção, há muito tempo encoberta nos confins do positivismo, entre vigência e validade das normas: a vigência reclama requisitos formais, enquanto a validade importa um exame conteudístico de parametricidade constitucional. Ou seja, somente em se tratando de uma norma que se encontre em consonância com a Constituição Federal, apresentará o pressuposto de validade. Esses dois conceitos, à luz da hermenêutica filosófica, não podem mais ser entificados, como se a validade fosse o ser do ente vigência. Há uma diferença, que é ontológica, entre ambos, mas também uma mútua implicação.
O mesmo se diga acerca da diferença – ontológica – entre texto e norma. Esta é o produto da interpretação daquele. Mas não há texto sem uma norma, e muito menos norma sem um texto. Clarificando a questão, Streck afirma:
[...] a partir desse (nova) hermenêutica, vigência e validade (de um texto) não podem mais ser entendidos de forma entificativa, isto é, não é mais possível pensar na equiparação entre vigência e validade, como se a vigência fosse o ente, e a validade, o seu ser. Tampouco o texto será equiparado à norma. Não! A norma será sempre o resultado da interpretação de do texto. Mas, e aqui reside o plus que a ontologia fundamental pode trazer a esse debate, o texto não subsiste separadamente da norma, d’onde é necessário não confundir a equiparação entre texto e norma, com a necessária diferença (que é ontológica) entre ambos. Vigência e validade, texto e norma não podem ser entendidos como se fossem duais (no sentido metafísico). O fato de existir uma diferença entre esses âmbitos (vigência e validade, texto e norma) não significa que possa existir a vigência como vigência ou o texto como texto. Explico: Heidegger sempre deixou bem claro – no que não recebe qualquer contestação de Gadamer – que querer compreender ente como ente é próprio da metafísica. O ente só existe no seu ser. E o ser é sempre o ser de um ente. O ente como ente é inacessível, sendo essa inacessibilidade incontornável.
Transportando essa questão para a hermenêutica jurídica [...], fica fácil perceber que, quando quero dizer que a norma é sempre o resultado da interpretação de um texto, quero dizer que estou falando do sentido que esse texto vem a assumir no processo compreensivo. A norma de que falo é o sentido do ser do ente (texto). O texto só ex-surge na sua ‘normação’, valendo o mesmo raciocínio para a ‘dicotomia’ vigência-validade. Fundamentalmente é preciso compreender que, nesse paradigma ontológico-existencial, o ser não é um ente. Portanto, simplificadamente, é possível afirmar que, quando se fala ‘da norma que ex-surge do texto’, não se está a falar de um processo hermenêutico-interpretativo realizado por partes (repetindo, assim, a hermenêutica clássica – primeiro conheço, depois interpreto, por fim aplico). É evidente que não. Eu não vislumbro primeiramente o texto para depois ‘acoplar’ a respectiva norma. A ‘norma’ não é uma ‘capa de sentido’, que existiria apartada do texto. Ao contrário disto, quando me deparo com o texto, ele já ex-surgenormado, a partir de minha condição de ser-no-mundo. Essa operação ocorre graças à diferença ontológica. É ela que faz a diferença. Por isto, repito, é impossível negar a tradição, a faticidade e a historicidade, em que a fusão de horizontes é a condição de possibilidade dessa ‘normação’.[25]
Também não se pode falar de regra sem um princípio instituidor, que lhe confere legitimidade. E, nesse viés, também é impossível deixar de destacar a importância dos princípios constitucionais, em sua carga deontológica, normativa, e não apenas axiológica, como forma de reinserção do mundo prático – afastado da racionalidade teórica – no Direito[26]. Explicita Streck da seguinte forma:
A faticidade de nossa existência mostra que sempre estamos situados no meio. Literalmente poderíamos dizer que a existência é sempre travessia. Travessia é caminho e esse caminho se torna percorrível a partir das marcas que são nele impressas pela tradição. Os princípios são, portanto, estas marcas que balizam a formação da história institucional do direito. Esta história institucional possibilita a formação legítima de algo como uma decisão judicial. Eis, portanto, o sentido que se projeta como horizonte quando falamos de princípios.
Nesse sentido, é necessário (re)afirmar o seguinte: o vínculo entre princípio e moral tem seu ponto de estofo exatamente no momento em que se percebe que a inserção do mundo prático representa um compromisso dos juízes no momento da decisão. Ou seja, – e isto é uma questão de democracia – a co-originariedade entre direito e moral, que tem seu enraizamento no todo princípio lógico da Constituição, impõe um dever de correção ao órgão judicante.[27] (grifos nossos).
Dentre as demais características do pós-positivismo, portanto, encontra-se a ingente importância dos princípios constitucionais, como forma de resgate do fático, de sua reinstalação no campo jurídico, pois os princípios constitucionais representam historicidade, integridade e coerência do Direito, a atestar que não se pode partir de um grau zero de significação.