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O rio torto da democracia à juristocracia.

Os meandros da relação entre a atividade legiferante e a interpretação criativa do Supremo Pretório Federal

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16/01/2015 às 12:11
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4. A desembocadura inesperada: as feições construtivas da hermenêutica jurídica em terrae brasilis.

Onde couber bem, a democracia deve ser louvada. Seu ideal permanece no mundo das ideias, nunca sendo revelado aos mortais, mas, onde couber bem, a democracia deve ser louvada. A eleição de representantes, processo necessário à sua existência, significa um desfalque em sua perfeição, mas, onde couber bem, a democracia deve ser louvada.

Um ordenamento jurídico que seja escrito por mãos eleitas democraticamente, mas que seja operado por um judiciário que deturpe o texto normativo, de nada serve à segurança jurídica. Ora, em países de modernidade tardia, onde se enquadra o Brasil, a crise de representatividade – fenômeno observado quando os cidadãos, enquanto povo, não conseguem expor sua vontade nos Parlamentos através de seus representantes eleitos – parece ser mais acentuada e mais grave, o que leva juristas como o Ministro Barroso a afirmar que a “eventual atuação contramajoritária do Judiciário em defesa dos elementos essenciais da Constituição dar-se-á a favor e não contra a democracia.”[38]

Provavelmente o exemplo que mais reverberou na história recente da interpretação expansiva do Supremo Tribunal Federal foi o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, o pedido impetrado pelo Governador do Rio de Janeiro em favor do reconhecimento da união estável homoafetiva, citando o princípio da isonomia e da dignidade humana, entre outros.

A ADPF 132 foi o atalho para a conquista do direito, uma vez que dezenas de projetos de lei com conteúdo similar estavam parados no Congresso Nacional aguardando apreciação e outros projetos já haviam sido barrados em alguma das Casas Legislativas.

O ponto fulcral reside na indagação sobre a democracia presente – ou ausente – no ativismo da Corte Constitucional nesse caso – e em tantos outros casos semelhantes. Afinal, a Constituição, escrita por representantes democraticamente eleitos permanece dizendo, em seu artigo 226, § 3º, que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”(grifo nosso) [39] e não há processo hermenêutico que consiga enxergar no citado texto a abertura para entender que o constituinte quis reconhecer também a união homoafetiva, uma vez que o texto especifica os entes a serem agasalhados no conceito de união estável, sendo ela heterossexual e monogâmica, nos termos da Constituição Federal. Ainda o Código Civil de 2002, na regulação da questão do casamento, expressa: “Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados".

A ADPF 132, apresentada ao Supremo no dia 25 de Fevereiro de 2008, tinha por pedido principal a interpretação segundo a Constituição do artigo 1723 disposto no Código Civil, que vigora com o seguinte texto: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” (grifo nosso) [41]O objetivo do pedido era a aplicação analógica do dispositivo de modo a estender o reconhecimento às uniões entre pessoas do mesmo sexo. E o pedido foi concedido pelo Supremo Tribunal Federal, que acabou por, para fins práticos, legislar, sendo este o fim de todo ativismo judicial.

O instituto da família sempre foi – e continua sendo – tratado com cautela pelo legislador ordinário, o que pode ser visto na obra do grande político conservador Rui Barbosa, quando ele escreve que “é mais sério tocar na família que no Estado” [42] e que, sendo assim não se pode alterar “a substância do casamento, a maior das instituições civis, sagrada matriz da família e, pela família, a matriz da sociedade” [43]. Um bom exemplo disso é a questão do divórcio, cujas primeiras propostas legislativas constam já do fim do século XIX, mas que só veio a ser aceito pelo ordenamento em 1977, por meio daquela que ficou conhecida como Lei do Divórcio[44], e só veio a existir com a feição atual – mais rápida e sem grandes empecilhos – pela Emenda Constitucional de nº 66, promulgada em 2010[45].

Aqueles que defendem a posição ativista do Supremo no caso afirmam que se tratava de um caso em que o Legislativo permanecia inerte de forma proposital, por motivos históricos, religiosos e morais, e que, se assim não fosse – pelo atalho da Jurisdição Constitucional – a questão levaria anos, quiçá décadas, para que viesse a ser devidamente legalizada.

Um olhar mais demorado e mais preocupado sobre o caso mira um sistema que ostenta à plena luz do dia as suas deficiências. Um Legislativo inerte e que se revela um canal obstruído da vontade do povo. Um Executivo popularesco e pouco expressivo na prática. Um Judiciário que se enxerga como o salvador da pátria, invadindo espaços de outros Poderes, por vê-los como terrenos improdutivos e, portanto, disponíveis para a desapropriação.

As recentes decisões ativistas da Corte Constitucional do Brasil falam mais sobre a democracia exercida em terrae brasilis do que sobre a própria atuação do Supremo Tribunal Federal. Ora, as aberrações hermenêuticas vistas são frutos do casamento entre uma tripartição falida dos Poderes e um oportunismo judicial. São tempos de revisão de conceitos a fim de que não se radique nesta Terra de Vera Cruz um velho terror com novas feições: o Leviatã (agora) Judicial.


Notas

[1] BÍBLIA SHEDD. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. São Paulo: Vida Nova; Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997, p. 1295.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 47.

[3] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2003. p.37.

[4] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 3.

[5] ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 29.

[6] BARROSO, Luis Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e

Política no Brasil Contemporâneo. Disponível em: <http://www.oab.org.br/editora/revista/revista_11/ artigos/constituicaodemocraciaesupremaciajudicial.pdf.> Data de Acesso: 27/05/2014.

[7] POGREBINSCHI, Thamy. Ativismo Judicial e Direito: Considerações sobre o Debate Contemporâneo. Revista Direito, Estado e Sociedade, nº 17, agosto-dezembro de 2000. p. 2.

[8]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Data de Acesso: 27/05/2014

[9] SOARES, José Ribamar Barreiros. Ativismo Judicial no Brasil: O Supremo Tribunal Federal como arena de deliberação política. Disponível em: <http://www.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2012/10/Jose-de-Ribamar-Barreiros-Soares.pdf> Data de acesso: 27/05/2014

[10]CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1999. p. 47.

[11] LOPES, José Reinaldo de Lima; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago dos Santos. Curso de história do Direito. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p 28.

[12] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. A teoria da constituição à luz dos movimentos do constitucionalismo (moderno), do neoconstitucionalismo (contemporâneo), do transconstitucionalismo e do constitucionalismo (latino-americano) plurinacional. In: MORAES, J. L. B. de; Barros, F. de M. (Coord.) Novo constitucionalismo latino-americano: o debate sobre novos sistemas de justiça, ativismo judicial e formação de juízes. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. p. 37-64; 42.

[13] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014. p 46.

[14]Idem. Ibidem. p 1031.

[15]Idem. Ibidem. pp 40-53.

[16] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit. p. 45-48.

[17] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A Constitucionalização do Direito - Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 203-249.

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[18]Idem.Ibidem.p. 204.

[19] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 246-249.

[20] Idem. Ibidem. p. 248.

[21] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995, passim.

[22] KELSEN, Hans. Op. cit. p. 272.

[23] Idem. Ibidem. p. 389.

[24] Idem. Ibidem. p. 272.

[25] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Disponível em :http://www.geocities.ws/bcentaurus/livros/h/hessenpdf.pdf. Data de acesso: 20/06/2014

[26] SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003, passim.

[27] MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 26.

[28] WELFORT, Francisco C. (Org.) Os clássicos da política. V. 1. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 196-199

[29] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit. p. 88.

[30] BRASIL. Op. cit.

[31] MARCONDES, Danilo. Textos básicos de linguagem: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p.93-94

[32] CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 48.

[33]MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit, p. 81-82.

[34] CAMARGO, Gustavo Arantes. Sobre o conceito de verdade em Nietzsche. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 93-112, 2º Semestre/2008.

[35] STRECK, Lenio Luiz. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 45.

[36] ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón practica. Revista Doxa, Alicante, nº 05, 1988, pp. 139-151.

[37] DWORKIN, Ronald. Op. cit. pp. 55-93.

[38] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 371.

[39] BRASIL. Op. cit.

[40] BRASIL. Lei nº 10.406 (10 DE JANEIRO DE 2002). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Data de acesso: 24/06/2014

[41]Idem. Ibidem.

[42] BARBOSA, Rui. O Divórcio, As Bases da Fé e Outros Textos. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 23.

[43] Idem. Ibidem. p. 22.

[44] BRASIL. LEI Nº 6.515, DE 26 DE DEZEMBRO DE 1977. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6515.htm> Data de acesso: 24/06/2014.

[45] BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66, DE 13 DE JULHO DE 2010. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc66.htm#art1> Data de acesso: 24/06/2014

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Sobre o autor
Raul de Albuquerque

Graduando no Curso de Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); é pesquisador sobre Direito Civil, especificamente sobre o instituto do casamento pelo Programa Jovens Talentos para a Ciência da CAPES; é articulista na coluna "A Razão Singular do Segredo" do periódico eletrônico Obvious Magazine.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Raul. O rio torto da democracia à juristocracia.: Os meandros da relação entre a atividade legiferante e a interpretação criativa do Supremo Pretório Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4216, 16 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30233. Acesso em: 19 abr. 2024.

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