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A constitucionalidade da Lei nº 9.637/1998 - Lei das Organizações Sociais

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Análise da constitucionalidade da Lei Nº 9637/1998

As dificuldades começam ao se verificar que jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não possui um conceito sistematizado de serviços públicos, variando as interpretações de acordo com a situação exposta no caso concreto.

Tramita no Supremo Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1923/DF, de autoria do Partido dos trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista, em face da Lei Nº 9.637/1998.

Houve o julgamento da medida Cautelar nessa Ação, encerrado em 2007, com o indeferimento, por maioria, do provimento jurisdicional liminar, nos seguintes termos:

EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 9.637, DE 15 DE MAIO DE 1.998. QUALIFICAÇÃO DE ENTIDADES COMO ORGANIZAÇÕES SOCIAIS. INCISO XXIV DO ARTIGO 24 DA LEI N. 8.666, DE 21 DE JUNHO DE 1.933, COM A REDAÇÃO CONFERIDA PELA LEI N. 9.648, DE 27 DE MAIO DE 1.998. DISPENSA DE LICITAÇÃO. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 5º; 22;23; 37; 40; 49; 70; 71; 74, §1º E 2º; 129;169, §1º; 175, CAPUT; 194; 196; 197; 199, §1º; 205; 206; 208, §1º E 2º; 211, §1º; 213; 215, CAPUT; 216; 218, §§ 1º, 2º, 3º E 5º; 225, §1º, E 229. INDEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR EM RAZÃO DE DESCARACTERIZAÇÃO DO PERICULUM IN MORA. 1. Organizações Sociais - pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, direcionadas ao exercício de atividades referentes a ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde. 2. Afastamento, no caso, em sede de medida cautelar, do exame das razões atinentes ao fumus boni iuris. o periculum in mora não resulta no caso caracterizado, seja mercê do transcurso do tempo - os atos normativos impugnados foram publicados em 1.998 - seja porque no exame do mérito poder-se-á modular efeitos do que vier a ser decidido, inclusive com a definição de sentença aditiva. 3. Circunstâncias que não justificam a concessão do pedido liminar. 4. Medida cautelar indeferida.

O ministro Ayres Britto ressaltou que "[...]o Poder público, atuando como agente normativo e regulador , exerce, em regra, funções de fiscalização, incentivo e planejamento (art. 174 da CRFB/1988)".

A ordem constitucional admite a participação de particulares na execução de atividades ligadas ao fornecimento de benefícios e serviços à sociedade, com atuação assegurada de forma expressa na CRFB/1988:

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I - cumprimento das normas gerais de educação nacional;

II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e sem fins lucrativos.

§2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

§ 3º - É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no país, salvo nos casos previstos em lei."

Por ocasião do julgamento da Ação direta nº 1.923/DF, o Ministro Luiz Fux se posicionou: "[...] a doutrina caracteriza os serviços públicos sociais como públicos compartidos, serviços públicos não privativos ou serviços públicos não exclusivos."

O ministro Ilmar Galvão, ao proferir seu voto, no mesmo julgamento, asseverou que "[...] as organizações sociais não passam, portanto, de simples instrumento técnico de que se utiliza o Estado para gestão de seus próprios serviços; por ele criado, utilizado e, quando for o caso, extinto por via da desqualificação."

A Advocacia-Geral da União manifestou-se pela improcedência da ação – defendendo, portanto, os atos impugnados. A Procuradoria-Geral da República, por seu turno, emitiu parecer de mérito pela procedência parcial do pedido, declarando a inconstitucionalidade da expressão “quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social”, constante do art. 2º, II, da Lei nº 9.637/98; da dispensa de licitação prevista no art. 24, XXIV, da Lei n. 8.666/93, e de toda a interpretação dos dispositivos impugnados que pretenda qualquer tipo de redução na atividade dos órgãos de controle típicos - notadamente na ação do Ministério Público e do Tribunal de Contas.

Concluiu o Ministro Ayres Britto, relator da ação, pela parcial procedência da ação, a fim de seja declarada a inconstitucionalidade: a) das expressões “quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social” - contida no inciso II do art. 2º - e “com recursos provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao exercício de função temporária de direção e assessoria” - constante do § 2º do art. 14 – ambos da Lei n° 9.637/98; e b) dos artigos 18 a 22 da Lei n° 9.637/98. Nesse aspecto, ressaltou que a decisão deve refletir no sentido de que as organizações sociais que “absorveram” atividades de entidades públicas extintas até a data do julgamento deverão continuar prestando os respectivos serviços.

Ainda atribuiu aos artigos 5º, 6º e 7º da referida Lei e ao inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93 interpretação conforme a Constituição, para deles afastar qualquer entendimento excludente da realização de um peculiar processo competitivo público e objetivo para a qualificação de entidade privada como organização social e a celebração de “contrato de gestão”.

Relativamente às razões do voto, merece destaque o fato de que o relator considerou inconstitucional a permissão prevista nos §§ 1° e 2°, do art. 14, da Lei n° 9.637/98, a qual possibilita que a pessoa jurídica privada pague vantagem pecuniária a servidor público sem lei anterior e específica que a autorize, por considerar que os servidores públicos estão sujeitos a remuneração fixada por lei.

Também afirmou que os artigos 18 a 22 da Lei n° 9.637/98 são inconstitucionais, tendo em vista que representam a criação de um programa de privatização (Programa Nacional de Publicização), no qual os órgãos e entidades públicos seriam extintos ou desativados, na medida em que o Estado transferiria para a gestão das organizações sociais (iniciativa privada) toda a prestação de serviços públicos que lhe são privativos, de acordo com vedação constitucional implícita. Igualmente considerou inconstitucional o fraseado “quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social”, contido no inciso II do art. 2º da Lei n° 9.637/98.

O Ministro reconheceu a constitucionalidade do inciso XXIV do art. 24 da Lei n° 8.666/93, por considerar que é dispensável a realização de um processo licitatório para a celebração de contrato de gestão, pois este – em linhas gerais – trata-se de um convênio moldado por interesses recíprocos.

Entretanto, ressaltou que a dispensa do processo licitatório não afasta o dever de observância dos princípios da publicidade, impessoalidade e eficiência através de um processo objetivo de qualificação das entidades como organizações sociais e sua específica

habilitação para determinado contrato de gesta – razão pela qual atribuiu aos artigos 5° a 7° da Lei n° 9.637/98 interpretação conforme os dispositivos constitucionais pertinentes.

Rejeitou, ademais, as alegações de inconstitucionalidade dos incisos V, VII e VIII do art. 4°, inciso II do art. 7° e do art. 14 da Lei n° 9.637/98.

Após o voto do Ministro Ayres Britto, pediu vista dos autos o Ministro Luiz Fux – tendo este julgado parcialmente procedente o pedido, apenas para conferir interpretação conforme à Constituição da Lei n. 9.637/98 e do art. 24, XXIV, da Lei n.º 8.666/93, para observância aos princípios do caput do art. 37 da Constituição, bem como para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas da União, da aplicação de verbas públicas.

A argumentação utilizada pelo Min. Fux, traz excelentes lições sobre o papel do Terceiro Setor na sociedade brasileira. Em contraposição ao pensamento do Min. Ayres Britto, o Min. Luiz Fux afirma que “o texto constitucional é expresso em afirmar que será válida a atuação indireta, através do fomento, como o faz com setores particularmente sensíveis como saúde (...) e educação (...), mas que se estende por identidade de razões a todos os serviços sociais”.

Concorda com o Relator, todavia, no que se refere a não caracterização do contrato de gestão como “contrato” no sentido próprio do termo, ante a inexistência de contraposição de interesses, bem como relativamente à constitucionalidade da ausência de licitação nesse verdadeiro procedimento de qualificação – o qual se trata, materialmente, de atividade de credenciamento, a ser conduzida com observância aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.

Por fim, diz que os empregados das Organizações Sociais não são servidores públicos, mas sim empregados privados – razão pela qual sua remuneração dispensa a previsão em lei, bem como sua contratação dispensa os rigores de um concurso público.

Quanto ao tratamento dos servidores públicos cedidos, por fim, também não vislumbra qualquer violação à Constituição, já que a lei impugnada preserva a remuneração a que o cargo faz jus no órgão de origem – sendo esta a que servirá como paradigma para o sistema previdenciário, mesmo porque sobre eventuais verbas pagas transitoriamente pelas Organizações Sociais não há previsão da incidência de contribuição patronal (a qual é indispensável para a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial que deve presidir o regime próprio de previdência dos servidores públicos).

Considera que exigir que haja previsão em lei para pagamento de verbas aos servidores cedidos, que jamais serão incorporadas à sua remuneração de origem - e que, se provenientes de contrato de gestão, serão apenas adicionais relativos ao exercício de função temporária de direção e assessoria – consubstanciaria “uma verdadeira autarquização das organizações sociais, afrontando a própria lógica de eficiência e flexibilidade”. Nessa toada, atentou para o fato de que é o núcleo essencial dos direitos constitucionais que norteiam a Administração Pública aquele que tem de ser respeitado.

Merece ainda destaque a resposta do Excelentíssimo Luiz Fux à alegação, feita na petição inicial, de que a Lei em comento incorreria em violação à liberdade de associação. Lembrou o Ministro que “a interferência na atuação das associações, inclusive com o percentual de representantes do poder público do Conselho de Administração, é apenas um requisito para um benefício a ser obtido voluntariamente através da parceria entre o setor público e a organização social (...). Assim, a intervenção na estrutura da entidade é condicionada, e instituída no benefício da própria organização, que apenas se submeterá a ela se assim o desejar.”


A ADI 1923 aguarda julgamento no STF.

A Administração Pública tem se deparado com crescentes demandas por serviços, qualidade e eficiência. Tais demandas motivaram uma série de iniciativas na área de planejamento e gestão, inclusive a adoção de novos arranjos institucionais.

A ausência de uma política pública consistente para o setor social que oriente e vincule o financiamento estatal é preocupante, sobretudo pelas vultosas quantias transferidas a essas entidades anualmente, um montante superior a três bilhões de reais, além dos recursos superiores a dezesseis bilhões de reais por ano, relativos às renuncias fiscais, os quais poderiam ser aplicados de forma mais produtiva pelo Estado, notadamente na previdência social pública e na melhoria da prestação dos serviços públicos de saúde, educação, previdência e assistência social.

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Com base em todo o exposto, reafirma-se as palavras de Antônio Carlos Carneiro de Albuquerque: “Cada vez mais fazem-se necessários a profissionalização, o aprimoramento e a transparência dessas organizações e de seus funcionários ou voluntários. As instituições públicas ou privadas que financiam e apóiam seus projetos ou atividades também demandam uma atuação mais qualificada.79 ”

Neste contexto, emerge uma nova realidade jurídica, administrativa e financeira marcada por incertezas quanto às limitações do seu marco legal e à relação com os órgãos de controle.

O tema dos contratos de gestão em saúde emerge, então, como parte de uma importante agenda de discussão nos cenários brasileiro e internacional na organização de serviços de saúde80 81 .

A contratualização de resultados é apontada como uma das principais estratégias da Nova Gestão Pública, uma vez que representa, dentre as opções, a que mais promoveu mudanças substantivas na qualidade dos serviços públicos82 .

Nessa lógica, os contratos de gestão podem significar um verdadeiro compromisso gerencial, surgindo para instrumentalizar a implantação de uma administração objetiva e aliada na busca inexorável por resultados na saúde pública, com vistas à obtenção de qualidade de serviços e à eficiência das organizações83 .

Entretanto, a descentralização e o governo participativo não são uma panacéia e, como em qualquer outro caso de desenho institucional, são adequados a casos específicos, não substituindo, no vazio, o poder de coordenação por parte do Estado.

O modelo de parceria entre Organizações Sociais e Estado, por exemplo, enfrenta diversas críticas quanto à possibilidade de constituir somente um mecanismo de "privatização dissimulada"84 , já que, através das parcerias, o Estado transfere a responsabilidade da prestação de serviços essenciais às OSS, o que caracterizaria diminuição da atuação efetiva do Estado.

José Roberto Pimenta Oliveira tece severas críticas, ao analisar o tema: “Observa-se, pois, em realidade, tendência a uma monumental fuga da organização administrativa através do desproporcional crescimento da atuação de entidades privadas sem fins lucrativos integradas à função administrativa do Estado. Como fenômeno social, busca amparo ideológico na Reforma (redutora) do Estado exigida pelo ideário neoliberal, em cujo bojo se pretende implantar um Estado Regulador (não mais Prestador), disseminando, em seu seio, um amplo arsenal de técnicas de privatização, sob a alegação de maior eficiência e necessidade de redução da burocracia governamental”.

Há quem afirme que a Reforma restou frustrada por ter sido concebida como um processo de produção de leis e estruturas organizacionais, sob o pressuposto de que sua existência leva, de forma espontânea, à melhoria da eficiência e da eficácia. Hoje, deve-se reconhecer que, apesar dos esforços empreendidos em mudanças, “os resultados favoráveis têm sido isolados e parciais”85 .

Verifica-se ainda, entretanto, a necessidade de forte presença do Estado na regulação e fiscalização, assim como na adequação do desenho institucional para viabilizar a operacionalização do modelo. Ou seja, o Estado terá possibilidade real de obter resultados melhores comparativamente à estrutura de mercado, caso haja uma clara definição dos papéis de cada estrutura coadjuvante, mantendo-se um mecanismo de accountability efetivo.86

O imponderável sobre a institucionalização das práticas de governança é, talvez, seu aspecto mais fascinante: "trata-se de apostar, a longo prazo, na capacidade que certas iniciativas, por perdurarem no tempo e terem efeitos multiplicadores, terão de gerar maior capital social, favorecendo uma perspectiva de recuperação do papel do Estado a partir de uma ótica descentralizada"87 .

Assim, "uma vez que parecem inscrever-se num processo de causação circular, práticas de governança têm tanto maior chance de vingar, quanto mais forte for o Estado e a própria sociedade civil. Em caso contrário, isto é, na dificuldade de sua generalização ao longo do espectro social, as práticas de governança e participação correm o risco de se constituírem em alternativas fadadas ao insucesso para os que delas mais necessitam: os desorganizados e destituídos de recursos. E, em vez de propiciarem a redefinição dos recortes Estado/sociedade em bases mais pluralistas, podem terminar por se constituírem num mecanismo seletivo de conferir aos ricos as políticas, aos pobres o mutirão; a quem pode, o poder, a quem não pode, a participação88 ."

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Sobre a autora
Adriana Reis Veríssimo de Lima

Médica e graduanda da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Adriana Reis Veríssimo. A constitucionalidade da Lei nº 9.637/1998 - Lei das Organizações Sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4036, 20 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30311. Acesso em: 23 abr. 2024.

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