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Da (in)convencionalidade da norma que estabelece o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de setenta anos

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01/10/2014 às 14:50
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4. Do regime obrigatório de separação de bens e da (des)proporcionalidade da restrição

A imposição do regime obrigatório, na hipótese em análise, ademais de ferir o princípio da não-discriminação que informa o Direito Internacional dos Direitos Humanos, é desproporcional.

Segundo Virgílio Afonso da SILVA, a regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão, tendo uma estrutura racionalmente definida, com sub-elementos independentes, quais sejam, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido-estrito, que são aplicados em uma ordem pré-definida e de forma subsidiária, conferindo à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade. (2002, p. 30).

A adequação consiste em que o objetivo pretendido pela limitação imposta pela norma seja alcançado ou pelo menos fomentado. Desse modo, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido. (SILVA, 2002, p. 37). Assim, verifica-se que a imposição do regime da separação obrigatória de bens aos maiores de 70 anos pode ser tida como adequada, pois a sua utilização contribui para a proteção ao patrimônio dessas pessoas.

A necessidade, por sua vez, indica que um ato estatal será tido por necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido. (SILVA, 2002, p. 38-9) Aqui, tampouco enxergamos a ausência da necessidade, uma vez que a proteção ao patrimônio da pessoa maior de 70 anos não poderia ser promovida, com a mesma intensidade, através de outra limitação.

“Ainda que uma medida que limite um direito fundamental seja adequada e necessária para promover um outro direito fundamental, isso não significa, por si só, que ela deve ser considerada como proporcional.” Necessário é, ainda, o exame da proporcionalidade em sentido estrito, “que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”. (SILVA, 2002, p. 41). Aqui, portanto, reside a desproporcionalidade da norma que se extrai do art. 1.641, II, do Código Civil, já que os motivos que fundamentam a adoção da restrição – de cunho eminentemente patrimonial – não tem peso suficiente para justificar a restrição a direitos fundamentais como a igualdade, a liberdade e a própria dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, a imposição da separação obrigatória aos maiores de 70 anos afronta o próprio critério da proporcionalidade, em sua faceta da proporcionalidade em sentido estrito, o que corrobora, mais uma vez, o caráter desarrazoado da restrição.


Conclusão

Como conclusão, passamos a arrolar sucintamente o tanto quanto aqui defendido:

  1. O art. 1.641, inc. II, do Código Civil de 2002, estabelece hipótese em que não haverá liberdade de escolha do regime de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos de idade e impõe a obrigatoriedade da adoção do regime da separação obrigatória de bens, a pretexto de conferir maior proteção ao patrimônio dessas pessoas.
  2. Tal restrição perpetua odiosa discriminação às pessoas maiores de 70 anos, além de enxergar o indivíduo como um objeto de proteção do Estado em face de seu patrimônio e de sua idade avançada.
  3. Em um Estado Democrático de Direito, razões de ordem puramente patrimonial não devem esvaziar o conteúdo essencial de outros direitos fundamentais, como a igualdade, a liberdade e a própria dignidade da pessoa humana.
  4. Doutrina quase unânime sustenta a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do Código Civil, por colidir frontalmente com a dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da Constituição Federal).
  5. Da verificação da compatibilidade entre tal norma de direito interno e os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país, realizou-se o que a doutrina denominou Controle de Convencionalidade.
  6. A restrição da escolha do regime de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos é incompatível com o princípio da não-discriminação previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 2º) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 1º c/c art. 17), sendo, portanto, norma inválida à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
  7. Por fim, tal restrição, além de inconvencional, é desproporcional, uma vez que os motivos que a fundamentam – de cunho eminentemente patrimonial – não tem peso suficiente para justificar a restrição a direitos fundamentais como a igualdade, a liberdade e a própria dignidade da pessoa humana.

Referências

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Bruno Malta. Da (in)convencionalidade da norma que estabelece o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de setenta anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4109, 1 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30371. Acesso em: 20 abr. 2024.

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