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A decisão judicial em face da violação aos princípios constitucionais penais pelo crime previsto no artigo 273, do Código Penal

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26/07/2014 às 10:36
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capítulo iii

princípios constitucionais penais violados pelo crime previsto no artigo 273, do código penal

3.1 Princípios da proporcionalidade e razoabilidade

Embora comumente sejam utilizados como sinônimos, primeiramente convém estabelecer uma diferenciação entre os denominados princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 27):

Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não se confundem, embora estejam intimamente ligados e, em determinados aspectos, completamente identificados. Na verdade, há que se admitir que se trata de princípios fungíveis e que, por vezes, utiliza-se o termo “razoabilidade” para identificar o princípio da proporcionalidade, a despeito de possuírem origens completamente distintas: o princípio da proporcionalidade tem origem germânica, enquanto a razoabilidade resulta da construção jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana.

O princípio da proporcionalidade infere-se de uma interpretação sistemática do texto constitucional. Por interpretação sistemática tem-se aquela que considera o sistema em que se insere a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. (DINIZ, 2009, p. 440). Trata-se de uma técnica de apresentação de atos normativos, em que o hermeneuta relaciona umas normas a outras até vislumbrar-lhes o sentido e o alcance. (DINIZ, 2009, p. 440)

Sob a influência de Edilson Mougenot Bonfim e Fernando Capez, extraímos da obra de Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 24):

[...] o princípio da proporcionalidade é uma consagração do constitucionalismo moderno (embora já fosse reclamado por Beccaria), sendo recepcionado [...] pela Constituição Federal brasileira, em vários dispositivos, tais como: exigência da individualização da pena (art. 5º, XLVI), proibição de determinadas modalidades de sanções penais (art. 5º, XLVII), admissão de maior rigor para infrações mais graves (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV). Exige-se moderação, contudo, como destacam Edilson Bonfim e Fernando Capez, para infrações de menor potencial ofensivo (art. 98, I).

Nota-se, portanto, que a Constituição Federal de 1988, de modo implícito, consagra em nosso ordenamento o princípio da proporcionalidade, cuja definição, de modo claro e objetivo, é trazida por Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 89). Vejamos:

Significa que as penas devem ser harmônicas com a gravidade da infração penal cometida, não tendo cabimento o exagero, nem tampouco a extrema liberalidade na cominação das penas nos tipos penais incriminadores. Não teria sentido punir um furto simples com elevada pena privativa de liberdade, como também não seria admissível punir um homicídio qualificado com pena de multa.

A abrangência do princípio da proporcionalidade extrapola a análise das consequências da aplicação da lei no caso concreto. Modernamente, compreende-se que referido princípio abarca, inclusive, o Poder Legislativo no ato de legislar. (BITENCOURT, 2008, p. 25)

Nesse contexto, é pertinente ao tema do presente trabalho transcrever o exposto por Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 25):

[...] a evolução dos tempos tem nos permitido constatar, com grande freqüência, o uso abusivo do “poder de fazer leis had hocs”, revelando, muitas vezes, contradições, ambigüidades, incongruências e falta de razoabilidade, que contaminam esses diplomas legais com o vício da inconstitucionalidade.

Rogério Greco (2011, p. 77), por sua vez, ensina:

Por meio do raciocínio da proibição do excesso, dirigido tanto ao legislador quanto ao julgador, procura-se proteger o direito de liberdade dos cidadãos, evitando a punição desnecessária de comportamentos que não possuem a relevância exigida pelo Direito Penal, ou mesmo comportamentos que são penalmente relevantes, mas que foram excessivamente valorados, fazendo com que o legislador cominasse, em abstrato, pena desproporcional à conduta praticada, lesiva a determinado bem jurídico.

O exemplo mais antigo do princípio da proporcionalidade reside na chamada “lei do talião”, famosa pelo adágio “olho por olho, dente por dente”. (BITENCOURT, 2008, p. 27; GRECO, 2011, p. 76). Contudo, tal sanção não se mostra de modo algum razoável, e é exatamente aqui que deve ter lugar o princípio da razoabilidade, que exerce função controladora na aplicação do princípio da proporcionalidade. (BITENCOURT, 2008, p. 27)

Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 27) conceitua o termo “razoável” como aquilo que tem aptidão para atingir os objetivos a que se propõe, sem, contudo, representar excesso algum.

Com efeito, as penas cominadas ao crime previsto no artigo 273, do Código Penal, de modo algum se apresentam proporcionais, muito menos razoáveis.

Conforme constou no capítulo anterior, trata-se o delito objeto do presente trabalho de crime de perigo abstrato, que se consuma sem a necessária ocorrência de efetivo dano à saúde de alguém, ou comprovação de real risco à saúde pública. Desse modo, não há justificativa plausível para que tal delito seja apenado com penas muito mais severas do que as de crimes de dano que atingem diretamente a vida ou a incolumidade física do indivíduo, como, por exemplo, o homicídio simples, do artigo 121, caput, do Código Penal – pena de reclusão de seis a vinte anos (BRASIL, 2013) –, o aborto provocado por terceiro, do artigo 125, do Código Penal – pena de reclusão de três a dez anos (BRASIL, 2013) – e a lesão corporal gravíssima, do artigo 129, parágrafo 2º, do Código Penal – pena de reclusão de dois a oito anos. (BRASIL, 2013)

Vale notar que o crime do artigo 273, do Código Penal, também possui penas mais elevadas que as do tráfico de drogas, do artigo 33, caput, da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 – pena de reclusão e cinco a quinze anos (BRASIL, 2013) –, crime este que versa sobre idêntico bem jurídico, qual seja, a saúde pública, e que, comparado a certas modalidades do crime do artigo 273, do Código Penal, apresenta grau de reprovabilidade muito superior.

Aqui convém transcrever a crítica feita por Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 944):

É inviável acolher como razoável a pena mínima de dez anos de reclusão, em regime inicial fechado, considerado como hediondo, para condutas de perigo, quando nem mesmo potencial concreto de dano se exige. Vender um remédio sem registro no órgão de vigilância sanitária não tem, minimamente, o padrão necessário para se comparar a graves delitos de dano, como, por exemplo, o homicídio. No entanto, a pena mínima do homicídio simples é de seis anos de reclusão, enquanto a mínima do crime contra a saúde pública atinge dez anos de reclusão.

Alberto Silva Franco (2000, p. 256-257), desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e membro fundador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (TV JUSTIÇA, 2013), também segue nesse sentido:

O desatino do legislador penal não se resumiu apenas ao processo tipificador do art. 273 do código penal. Era ainda muito pouco. Foi muito além: cominou para as condutas descritas no caput e nos parágrafos dele derivados, pena reclusiva variável entre dez e quinze anos, além de multa. Não é necessário nenhum esforço concentrado para concluir que o legislador penal, ao atribuir esse quantum punitivo aos autores das ações enumeradas no art. 273 e seus parágrafos lesionou, de forma inquestionável, os princípios constitucionais da proporcionalidade e da ofensibilidade.

Finalmente, Miguel Reale Júnior (1999, p. 426), comentando a chamada “lei dos remédios”, expõe:

Não há interpretação que possa ser feita para conformar a norma aos valores e princípios constitucionais. A interpretação congruente com a Constituição tem limites, pois deve-se neste esforço, para salvar a norma, analisar as possibilidades de ambos os textos, o constitucional e o a ser conservado, de acordo com o tê-los de ambos. Com relação à norma do inc. I do §1º-B do art. 273, bem como referentemente aos demais incisos, frustra-se a tentativa de conservação dos dispositivos, porque para tanto seria necessário impedir a realização absoluta dos valores e princípios constitucionais.

Dando maior atenção ao princípio em tela, o anteprojeto do novo Código Penal, no histórico dos trabalhos de sua comissão, expõe o método utilizado para escolha das condutas a serem tipificadas e fixação de suas penas, citando como exemplo o crime objeto do presente trabalho. Vê-se que a intenção é de uma drástica redução das penas cominadas:

Cada crime previsto na parte especial do Código Penal atual ou na legislação extravagante foi submetido, portanto, a um triplo escrutínio: i) se permanece necessário e atual; ii) se há figuras assemelhadas previstas noutra sede normativa; iii) se as penas indicadas são adequadas à gravidade relativa do delito.

Esta tarefa resultou em forte descriminalização de condutas, em regra por serem consideradas desnecessárias para a sociedade brasileira atual, insuscetíveis de tratamento penal ou incompatíveis com a Constituição Brasileira de 1988. As penas foram redesenhadas para coibir excessos ou insuficiências. A exagerada pena do artigo 273 do atual Código Penal (falsificação de medicamentos), por exemplo, foi reduzida dos atuais dez a quinze anos para quatro a doze anos. Por outro lado, as penas do homicídio culposo, hoje com máximo de três anos, foram aumentadas para quatro, além da previsão da “culpa gravíssima”, capaz de elevar as penas desta conduta para o intervalo de quatro a oito anos. (CONJUR, 2013)

Constata-se, portanto, a patente violação aos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade pelo crime previsto no artigo 273, do Código Penal, restando inviável qualquer raciocínio no sentido de se entender cabível uma pena privativa de liberdade de dez a quinze anos de reclusão, além de multa, cominada a um crime de perigo abstrato.

3.2 Princípio da ofensividade

O princípio da ofensividade, também denominado princípio da lesividade, encontra-se previsto de forma implícita na Constituição Federal de 1988, conforme convém a doutrina, a exemplo de Guilherme de Souza Nucci. (2011, p. 86)

Sobre o respaldo constitucional, bem como sobre a definição de referido princípio, leciona Damásio Evangelista de Jesus (2009, p. 10):

O Direito Penal só deve ser aplicado quando a conduta ofende um bem jurídico, não sendo suficiente que seja imoral ou pecaminosa. Entre nós, esse princípio pode ser extraído do art. 98, I, da Const. Federal, que disciplina as infrações de menor potencial “ofensivo”. Para um setor da doutrina, o princípio da ofensividade (nullum crimen sine injuria) requer, para a existência (material) do crime, que a conduta produza uma lesão efetiva ou um perigo concreto ao bem juridicamente tutelado.

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Paulo Queiroz (2008, p. 59), por sua vez, extrai o princípio da ofensividade do texto constitucional através do seguinte raciocínio:

[...] se é objetivo fundamental da República, como declarado no art. 3º, construir uma sociedade livre, se são invioláveis a liberdade, a intimidade (art. 5º) e a vida privada, e se é explícita a sua vocação libertária, segue-se que nenhum ato de constrição à liberdade pode ser tolerado, salvo quando em virtude do abuso no seu exercício resultar dano/lesão à liberdade de outrem. Conseqüentemente, condutas meramente imorais, por mais escandalosas, não autorizam a intervenção penal, nem tampouco podem vingar em caráter absoluto presunções legais de violência ou de perigo, como ainda prevê o Código Penal, sob pena de absolutizar o que é relativo.

No entender de Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 22), o princípio da ofensividade assume duas facetas. Vejamos:

O princípio da ofensividade no Direito Penal tem a pretensão de que seus efeitos tenham reflexos em dois planos: no primeiro, servir de orientação à atividade legiferante, fornecendo substratos político-jurídicos para que o legislador adote, na elaboração do tipo penal, a exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha verdadeiro conteúdo ofensivo a bens jurídicos socialmente relevantes; no segundo plano, servir de critério interpretativo, constrangendo o intérprete legal a encontrar em cada caso concreto indispensável lesividade ao bem jurídico protegido.

Como se nota, o princípio da ofensividade vincula tanto o legislador no ato da elaboração dos tipos penais incriminadores, quanto o intérprete que busca a correta aplicação da lei penal no caso concreto, obrigando-os à verificação de efetiva lesão, ou ao menos perigo concreto de lesão, ao bem jurídico tutelado.

Nesse sentido, conclui Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 22):

Para que se tipifique algum crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, um perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido. Somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado. Por essa razão, são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado. Em outros termos, o legislador deve abster-se de tipificar como crime ações incapazes de lesar ou, no mínimo, colocar em perigo concreto o bem jurídico protegido pela norma penal. Sem afetar o bem jurídico, no mínimo colocando-o em risco efetivo, não há infração penal.

Corroborando o entendimento acima exposto, Luiz Flávio Gomes (2008) entende que a admissão, nos dias atuais, do perigo abstrato no Direito Penal constitui uma heresia sem tamanho, quando se estuda o princípio (constitucional implícito) da ofensividade, que não permite nenhum delito de perigo abstrato. Prossegue o ilustre doutrinador: Todo tipo legal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para se admitir um delito, ou seja, a intervenção do Direito penal). (GOMES, 2008)

Desse modo:

É preciso sempre verificar o que está detrás do texto legal (do enunciado legal). Urge que se descubra sempre a antijuricidade material (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico), interpretando-se os tipos penais teleologicamente. (GOMES, 2002, p. 103)

É com base no princípio da ofensividade que não se pune o denominado crime impossível, previsto no artigo 17, do Código Penal (QUEIROZ; PINHO, 2013, p. 1), que ocorre quando não há qualquer possibilidade de lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido, seja por ineficácia absoluta do meio, seja por absoluta impropriedade do objeto. (BRASIL, 2013). Também não se pune, com base em tal princípio, a cogitação e os atos preparatórios, fases do iter criminis que não atacam, efetivamente, o bem jurídico tutelado pela norma. (QUEIROZ; PINHO, 2013, p. 1-2)

Assim, entende Luiz Flávio Gomes (2002, p. 62) que não há delito sem desvalor do resultado (afetação a bens de terceiras pessoas), não bastando o mero desvalor da ação, incapaz de trazer, ao menos, perigo concreto de dano ao objeto jurídico protegido.

Destarte, percebe-se que o crime previsto no artigo 273, do Código Penal, viola frontalmente o princípio da ofensividade, uma vez que tipifica condutas das quais não se exige qualquer comprovação de real dano ou perigo à saúde pública, tratando-se, conforme se analisou no capítulo anterior, de crime de perigo abstrato, amplamente criticado, como se viu, pela doutrina moderna.

Com efeito, não representa risco de dano à saúde pública, por exemplo, a conduta daquele que importa medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária competente, sendo tal medicamento de composição idêntica à de outro legalmente comercializado no Brasil. Exemplo claro é o do medicamento Pramil, utilizado no tratamento da disfunção erétil (PRAMIL, 2013), cuja importação, comércio e uso foram proibidos em todo o território nacional por força da Resolução nº 2.997, de 12 de setembro de 2006, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BRASIL, 2013), mas que possui o mesmo princípio ativo do medicamento Viagra (CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA - IV REGIÃO, 2013), este regularmente vendido no país.

Ainda a título exemplificativo, não acarreta perigo algum à saúde pública a conduta daquele que adultera um frasco de xampu acrescentando-lhe água, ou daquele que falsifica um produto de limpeza qualquer, de modo que este, sem qualquer anormalidade, continue atingindo seus fins.

Nesse contexto, Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 944) conclui, quanto ao crime previsto no artigo 273, do Código Penal, que, se houver exagero punitivo, fere-se o princípio da proporcionalidade e, por via de consequência, o próprio sentido da ofensividade.

Miguel Reale Júnior (1999, p. 415), a propósito, convém:

Ora, o princípio da legalidade, decorrente do mandado da proibição de excessos, e o princípio da ofensividade foram claramente afrontados na Lei 9.677, de 02.07.1998, bem como pela Lei 9.695, de 20.08.1998. Regras aí contidas concretizam grave distorção entre os fatos inócuos descritos e a sua criminalização. Isto porque não se exige, no modelo de conduta típica, a ocorrência de resultado consistente em perigo ou lesão ao bem jurídico que se pretende tutelar, vale dizer, à saúde pública.

Assim, observa-se que a subsunção de condutas ao tipo previsto no artigo 273, do Código Penal, na forma de crime de perigo abstrato, de modo algum se coaduna com o princípio constitucional penal da ofensividade, que, em sua concepção moderna, abomina qualquer forma de incriminação por fatos não causadores de dano efetivo, ou ao menos perigo concreto de dano, ao bem jurídico tutelado pela norma. Deve-se, portanto, encarar o delito em tela na forma de crime de perigo concreto, buscando o aplicador do Direito, em cada caso, o real risco à saúde pública. Do contrário, o fato deve ser reputado atípico.

3.3 Princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade

O princípio da intervenção mínima encontra respaldo na Constituição Federal de 1988, podendo ser aferido implicitamente, uma vez que nossa Lei Maior garante direitos invioláveis como a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, além de estabelecer como fundamento do Estado a dignidade da pessoa humana. (NUCCI, 2011, p. 87)

Desse modo, é natural que a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se torne possível, caso seja estritamente necessária a imposição da sanção penal, para garantir bens essenciais ao homem. (NUCCI, 2011, p. 87)

O conceito e o alcance do denominado princípio da intervenção mínima podem ser extraídos da lição de Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 13):

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 86-87), sobre o princípio da intervenção mínima, por sua vez ensina:

Significa que o direito penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade. Afinal, a lei penal não deve ser vista como a primeira opção (prima ratio) do legislador para compor conflitos existentes em sociedade, os quais, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre estarão presentes.

Há outros ramos do Direito preparados a solucionar as desavenças e lides surgidas na comunidade, compondo-as sem maiores traumas. O direito penal é considerado a última ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator.

Damásio Evangelista de Jesus (2009, p. 10), a seu turno, expõe:

Procurando restringir ou impedir o arbítrio do legislador, no sentido de evitar a definição desnecessária de crimes e a imposição de penas injustas, desumanas ou cruéis, a criação de tipos delituosos deve obedecer à imprescindibilidade, só devendo intervir o Estado, por intermédio do Direito Penal, quando os outros ramos do Direito não conseguirem prevenir a conduta ilícita.

Como corolário dos princípios da intervenção mínima e da reserva legal temos o intitulado princípio da fragmentariedade, de onde se extrai o caráter fragmentário do Direito Penal, pelo qual este ramo do Direito deve restringir-se a punir somente as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes. (BITENCOURT, 2008, p. 14)

Para Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 88), fragmentariedade significa que nem todas as lesões a bens jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito penal que, por sua vez, constitui somente parcela do ordenamento jurídico.

De modo resumido, conclui Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 15):

[...] “caráter fragmentário” do Direito Penal significa que o Direito Penal não deve sancionar todas as condutas lesivas dos bens jurídicos, mas tão-somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens mais relevantes.

Ante o exposto, torna-se claro que o crime previsto no artigo 273, do Código Penal, viola o princípio da intervenção mínima, bem como vai contra o caráter fragmentário do Direito Penal, uma vez que tipifica condutas que poderiam enquadrar-se como meras irregularidades administrativas ou sanitárias, sendo desnecessária a imposição, como ocorre, de severas sanções criminais.

A título exemplificativo, podemos citar as condutas de falsificar, corromper, adulterar ou alterar produtos cosméticos ou saneantes – artigo 273, caput e parágrafo 1º-A, do Código Penal (BRASIL, 2013) –, importar matérias-primas sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização – artigo 273, parágrafos 1º, 1º-A e 1º-B, inciso III, do Código Penal (BRASIL, 2013) – e vender ou expor à venda insumos farmacêuticos adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente – artigo 273, parágrafos 1º, 1º-A e 1º-B, inciso VI, do Código Penal. (BRASIL, 2013). Tais condutas, ainda que analisadas na forma de crime de perigo concreto, não chegam a causar um sério risco de dano à saúde pública, razão pela qual torna-se descabida a intervenção do Direito Penal, que deve preocupar-se somente com as lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes.

Comentando a atual tendência a uma administrativização do Direito Penal, vale citar a lição do eminente jurista italiano Alessandro Baratta (2013, p. 8-9):

A lei penal [...] não pode ser uma resposta imediata da natureza administrativa, como, em troca, freqüentemente, é na prática. Os problemas que se devem enfrentar têm que estar suficientemente decantados antes de se pôr em prática uma resposta penal. Essa, geralmente, não pode contemplar situações atípicas ou excepcionais. Os requisitos que caracterizam o direito moderno, ou seja, a abstração e a generalidade da norma, não deveriam ser jamais derrogados pela lei penal. A experiência da legislação penal de emergência (como é o caso de boa parte da legislação antiterrorista) na Europa e seu efeito negativo, ao corromper a lógica dos códigos, deveria proporcionar, nesse sentido, um ensinamento válido para todo Estado de direito.

Nessa ordem se inscreve, também, uma drástica contenção da tendência a si chamada administrativização do direito penal. Com esse conceito se indica a proliferação descontrolada e não planejada de normas penais que somente constituem elementos secundários e complementares no âmbito das leis penais. O critério geral é o da autonomia da resposta penal; essa, por regra, deve constituir o conteúdo principal do ato legislativo, e não, como amiúde ocorre, representar somente uma linha secundária de reforço a respeito da disciplina jurídica de matérias não penais e das formas específicas de responsabilidade das partes interessadas que dessa disciplina geralmente derivam.

Nesse mesmo sentido, mais precisamente sobre os abusos na criminalização e penalização promovidos pelos legisladores contemporâneos, salienta Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 14):

[...] antes de se recorrer ao Direito Penal deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social, e somente quando tais meios se mostrarem insuficientes à tutela de determinado bem jurídico justificar-se-á a utilização daquele meio repressivo de controle social.

[...] Os legisladores contemporâneos – tanto de primeiro como de terceiro mundo – têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da “inflação legislativa” reinante nos ordenamentos positivos.

Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 944), discorrendo sobre o crime previsto no artigo 273, do Código Penal, conclui que a afronta direta ao princípio da proporcionalidade, bem como, indiretamente, à intervenção mínima, é patente.

Verifica-se, portanto, que o crime em comento viola os princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade do Direito Penal, pois tipifica certas condutas que, por sua própria natureza, são incapazes, ainda que analisadas na forma de crime de perigo concreto, de causar risco ensejador da intervenção do Direito Penal ao bem jurídico tutelado pela norma, no caso, a saúde pública. Referidas condutas melhor se enquadrariam como meras irregularidades administrativas ou sanitárias, sendo passíveis de outras formas mais brandas e não menos eficazes de sanção, diversas das duras penas cominadas ao crime previsto no artigo 273, do Código Penal.

3.4 Princípio da dignidade da pessoa humana

Por fim, cumpre ressaltar as implicâncias do crime em tela ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Referido princípio encontra-se expressamente previsto na Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 1º, o enquadra dentre o rol dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Vejamos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 2013)

Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2011, p. 94), de modo claro e sucinto, demonstram o sentido do princípio da dignidade da pessoa humana em nosso ordenamento jurídico:

A dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil consagra, desde logo, nosso Estado como uma organização centrada no ser humano, e não em qualquer outro referencial. A razão de ser do Estado brasileiro não se funda na propriedade, em classes, em corporações, em organizações religiosas, tampouco no próprio Estado (como ocorre nos regimes totalitários), mas sim na pessoa humana. [...] São vários os valores constitucionais que decorrem diretamente da dignidade humana, tais como, dentre outros, o direito à vida, à intimidade, à honra e à imagem.

Apesar de se tratar de um princípio de difícil delimitação, tendo em vista a multiplicidade de valores que abarca, Alexandre de Moraes (2006, p. 48) leciona o seguinte conceito:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Como se vê, em se tratando a dignidade de um princípio natural, inerente à pessoa humana, considerado de valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 172), compete ao Estado, em todas as suas esferas de poder, reconhecer e assegurar o seu efetivo cumprimento, tendo no indivíduo o seu fundamento e o seu fim último.

Nesse sentido, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2011, p. 94) destacam o duplo aspecto que o princípio da dignidade da pessoa humana assume em nossa sociedade:

A dignidade da pessoa humana assenta-se no reconhecimento de duas posições jurídicas ao indivíduo. De um lado, apresenta-se como um direito de proteção individual, não só em relação ao Estado, mas, também, frente aos demais indivíduos. De outro modo, constitui dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes.

Pelo que se expôs em todo o presente capítulo, torna-se evidente que o crime previsto no artigo 273, do Código Penal, viola o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que, da forma como se encontra tipificado, não expressa adequadamente o imprescindível caráter de proteção do indivíduo em face do Estado. Ao contrário, desrespeita princípios constitucionais penais básicos, que emanam da própria dignidade humana, sujeitando o indivíduo a severa pena privativa de liberdade, sem falar das restrições impostas pela Lei de Crimes Hediondos, em contrapartida a condutas que muitas vezes não chegam sequer a colocar em risco o bem jurídico protegido, qual seja, a saúde pública, ou que, em certos casos, nem mereceriam ser abarcadas pelo Direito Penal.

Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 944), comentando o crime previsto no artigo 273, do Código Penal, e corroborando o entendimento acima apresentado, conclui: Desintegra-se, em última análise, a dignidade da pessoa humana, conturbando-se o princípio da humanidade. Afinal, constitui crueldade aplicar sanção penal desproporcional a qualquer ser humano.

Desse modo, considerando que legislador pátrio não se ateve ao princípio da dignidade da pessoa humana quando da edição do tipo penal previsto no artigo 273, do Código Penal, princípio este que se encontra positivado em nosso ordenamento jurídico e do qual decorrem, direta ou indiretamente, diversos outros, tais como os já debatidos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da ofensividade, da intervenção mínima e da fragmentariedade, compete ao Poder Judiciário tomar as medidas cabíveis com o escopo de propiciar o pleno cumprimento dos princípios constitucionais no caso concreto. E são exatamente essas medidas que serão analisadas no capítulo seguinte.

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Sobre o autor
Daniel Bombarda Andraus

Graduado pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium - UniSALESIANO Araçatuba. Aprovado no X Exame de Ordem Unificado. Pós-graduado em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Ex-assessor junto ao Ministério Público Federal. Ex-analista do Ministério Público do Estado de São Paulo. Defensor Público do Estado de Goiás.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRAUS, Daniel Bombarda. A decisão judicial em face da violação aos princípios constitucionais penais pelo crime previsto no artigo 273, do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4042, 26 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30496. Acesso em: 23 dez. 2024.

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