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Súmula vinculante: regime geral, natureza jurídica e enunciado inconstitucional

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Analisa-se a natureza jurídica da súmula vinculante e a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de um verbete.

Resumo: Neste estudo, efetua-se explanação em torno da súmula vinculante prevista no art. 103-A, da CF/88, analisando-se os requisitos, o procedimento de edição, revisão e cancelamento, a eficácia jurídica do enunciado e, com especial destaque, a discussão em torno da natureza jurídica do instituto e a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de um verbete específico.

Sumário: 1. Introdução. 2. Procedimento. 3. Requisitos. 4. Eficácia legal, modulação dos efeitos e reclamação. 5. Natureza jurídica da súmula vinculante. 6. Inconstitucionalidade de enunciado vinculante. 7. Implicações da súmula vinculante no processo de conhecimento. 8. Conclusão. Notas. Referências.


1. Introdução

Introduzida no contexto da reforma do Poder Judiciário efetuada pela EC n.º 45/2004, a súmula vinculante foi idealizada como um meio capaz de prevenir litígios pela pacificação de controvérsias em enunciado voltado a cristalizar a interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre dispositivo ou questão jurídica constitucional, dotada de efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública em geral. Representou inovação de grande impacto, vez que, “até então, os entendimentos consolidados do STF poderiam ser vertidos em súmula do Tribunal, porém, sem efeitos obrigatórios para as demais instâncias e esferas da Pública Administração” (LIMA, 2013, p. 243).

A estratégia possui nítida semelhança com o vetusto instituto dos assentos portugueses, que remontam a uma antiga prática da Velha Casa de Suplicação do Reino de Portugal, tribunal mais alto do Império, no reinado D. Manuel I (1469-1521), os quais vigoraram no Brasil ao tempo da independência e, em épocas recentes, estavam previstos no art. 2º, do Código Civil Português de 1966. Por meio dos “assentos”, os tribunais supremos de Portugal, nos casos determinados em lei, podiam fixar “doutrina com força obrigatória geral”, o que, por muitos, foi considerado uma esdrúxula outorga de competência legislativa ao Poder Judiciário, a ser exercida sob a forma artificial de atividade jurisdicional (SOUZA, 2013, p. 179-183). 1

No Brasil, a súmula vinculante foi implementada pelo art. 103-A, acrescentado à CF/88, pela EC n.º 45/2004, 2 o qual, por sua vez, foi regulamentado pela Lei n.º 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Segundo o dispositivo da CF/88, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, pode o STF editar súmula de eficácia vinculante, desde que aprovado o texto pela maioria qualificada de 2/3 de seus membros. O objeto do enunciado será a validade, interpretação ou eficácia de normas determinadas, que tenham dado ensejo a controvérsia atual de natureza jurídico-constitucional entre órgãos judiciários ou entre o Poder Judiciário e a Administração Pública, resultando em grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos (BRASIL, 1988, p. 1). Consoante a lei regulamentadora, no prazo de 10 (dez) dias após a sessão em que for editado, revisto ou cancelado o texto de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal deverá publicar o enunciado respectivo em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União, sendo esse o termo inicial de sua eficácia obrigatória e geral (BRASIL, 2006, p. 1). 3


2. Procedimento

O procedimento de edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante pode ser deflagrado de ofício, por um ou mais dos ministros do STF, ou por provocação de qualquer dos legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (BRASIL, 2006, p. 1). Nos termos do art. 3º, incisos VI e XI, da Lei n.º 11.417/2006, no que inova em relação ao disposto na norma constitucional, possuem também legitimidade para provocar o procedimento o Defensor Público-Geral da União, os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares. Ademais, pode o Município, nas ações em que for parte, propor incidentalmente a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, sem, contudo, autorizar-se a suspensão do processo principal. Consoante o art. 3º, § 2º, da mesma lei, no procedimento de edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante, poderá o relator admitir, por decisão irrecorrível, a manifestação de terceiros, na condição de amicus curiae (BRASIL, 2006, p. 1). 4

Como se vê, cuidou o legislador de autorizar a representação pela edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante a amplo rol de legitimados. Mais importante que o poder de provocar a edição da súmula é a possibilidade outorgada aos tribunais superiores, aos tribunais federais e estaduais e ao Defensor Público-Geral da União de promoverem a revisão ou o cancelamento do enunciado. Originalmente excluídos da prerrogativa, nos termos da EC n.º 45/2004, por não serem legitimados à propositura da ação de direta de inconstitucionalidade, tais órgãos, na forma da lei regulamentadora, passaram a poder submeter diretamente ao Supremo Tribunal Federal as razões pelas quais entendam pertinentes a revisão ou o cancelamento de enunciado vinculante, prevenindo, assim, o engessamento da interpretação constitucional sumulada. Afigura-se acertada a opção legislativa, vez que tanto a Defensoria Pública quanto os órgãos do Poder Judiciário, em especial os tribunais locais, mostram-se mais próximos da realidade social e, por conseguinte, mais sensíveis às vicissitudes das questões judicializadas, pelo que podem, com maior clareza do que o faria o Supremo Tribunal Federal ou os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade, vislumbrar a impropriedade da aplicação de determinadas disposições obrigatórias, propondo, por conseguinte, a revisão ou cancelamento de determinado enunciado da súmula vinculante. 5


3. Requisitos

Nos termos do art. 103-A, da CF/88, é requisito para a edição de súmula vinculante a existência de “controvérsia atual” sobre matéria constitucional entre órgãos do Poder Judiciário ou entre estes e a Administração Pública, com repercussão na segurança jurídica e na multiplicação de processos sobre idêntica questão de direito. Para Luiz Guilherme Marinoni, a controvérsia exigida no texto constitucional não se resume à discutibilidade da matéria no âmbito do Supremo Tribunal Federal ou demais órgãos judiciários. Segundo o autor, a discussão deve atingir os fundamentos jurídicos dos precedentes, sendo essa a situação prevista na Constituição como apta a ensejar a necessidade de pacificação mediante súmula universalmente vinculante. Em palavras do autor:

A súmula vinculante somente pode ser editada quando houver controvérsia atual. Entretanto, por controvérsia atual não basta entender questão constitucional que está em discussão, ou que acaba de ser discutida, no Supremo Tribunal Federal. A controvérsia é atual quando há discussão, contemporânea, acerca da precisa ratio decidendi dos precedentes que dizem respeito a uma mesma questão constitucional. Controvérsia, portanto, não é sinônimo de objeto sobre o qual se discute judicialmente, mas pertine à dúvida sobre a ratio decidendi dos precedentes respeitantes a tal objeto. (MARINONI, 2013, p. 488-489)

Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci, citados por Marcelo Alves Dias de Souza (2013, p. 267), no mesmo sentido, comentando o requisito da “controvérsia atual”, explicitam que deve ela recair, na forma do art. 103-A, da CF/88, sobre as teses jurídicas conflitantes associadas à exegese constitucional, quais sejam, as que digam respeito à validade, interpretação e eficácia de normas determinadas, a saber, a regularidade formal ou conformidade hierárquica da norma infraconstitucional em face do texto da Constituição, o alcance do significado dos termos jurídico-constitucionais e a efetiva produção de efeitos pela norma constitucional ou infraconstitucional no plano social. No entender dos autores,

a súmula vinculante não tem o mote de extinguir com a ‘resistência’ perante o conflito de interesse, mas o destino de desvelar o entendimento sedimentado sobre determinadas ‘teses jurídicas’ atinentes à exegese constitucional normativa, quais sejam: validade, interpretação e eficácia. Controvérsia sobre a validade, na seara constitucional, é a divergência atinente à constitucionalidade de norma infraconstitucional concreta. Controvérsia sobre a interpretação é desacordo sobre o melhor significado de determinado dispositivo de acordo com os ditames constitucionais. Controvérsia sobre a eficácia é dissenso sobre a coercibilidade jurídico-social de normas determinadas, no tempo ou no espaço. (LAMY; CONCI apud SOUZA, 2013, p. 267)

Para a edição da súmula, necessária, ainda, a ocorrência de “reiteradas decisões sobre matéria constitucional” e a aptidão, da “controvérsia atual”, para a configuração de “grave insegurança jurídica, que acarrete relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica” (BRASIL, 1988, p. 1). À evidência, não há um número predeterminado de decisões ou de processos em tramitação que permita a satisfação do requisito. Cuida-se de critério a ser aferido à luz da conveniência e oportunidade da uniformização de determinado entendimento jurídico pelo Supremo Tribunal Federal, havendo quem admita, até mesmo, a possibilidade de utilização do instituto com base em caso isolado, desde que apto a deflagrar “questões processuais de massa ou homogêneas, envolvendo matérias previdenciárias, administrativas, tributárias ou até mesmo processuais, suscetíveis de uniformização e padronização.” (MARTINS, 2013, p. 1) Não obstante se enxergue com reservas essa última possibilidade, o importante, em todo caso, é que a matéria tenha sido apreciada anteriormente em sua inteireza pelo STF, o qual, fazendo simples remissão a seus próprios precedentes, poderá aprovar enunciado com efeito vinculante, nos moldes do art. 103-A, da CF/88.


4. Eficácia legal, modulação dos efeitos e reclamação

Consoante o art. 4º, da Lei n.º 11.417/2006, publicado o texto respectivo, a súmula vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 dos seus membros, “poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público.” (BRASIL, 2006, p. 1) Cuida-se da prerrogativa de modulação dos efeitos, também presente nos demais instrumentos de controle concentrado de constitucionalidade. Satisfeita a maioria qualificada de 8 (oito) ministros, pode o Supremo, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse público, conferir eficácia pro futuro à súmula vinculante.

Salienta-se, ainda, que, nos termos do art. 7º, da mesma Lei n.º 11.417/2006, da decisão judicial ou ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente, cabe reclamação ao Supremo Tribunal Federal, “sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação” (BRASIL, 2006, p. 1). Apesar disso, dispôs o legislador que, em se tratando de omissão ou ato da Administração Pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas. Julgando procedente a reclamação, o Supremo Tribunal Federal “anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.” (BRASIL, 2006, p. 1) 6

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5. Natureza jurídica da súmula vinculante

Quando do surgimento do instituto da súmula vinculante, algumas questões polêmicas foram levantadas em torno do tema. Uma delas diz respeito à suposta violação que efetuaria a sistemática ao princípio da separação dos Poderes, discussão essa que gira em torno da natureza jurídica do enunciado vinculante. Segundo Rosemiro dos Reis Martins (2013, p. 1), relativamente à natureza jurídica do instrumento previsto no art. 103-A da CF/88, a doutrina se divide entre os que sustentam a) o caráter materialmente legislativo do enunciado, b) a natureza estritamente jurisdicional da súmula vinculante ou, ainda, c) a qualificação da súmula como um tertium genus, denominado de “quase-lei”, porquanto situado no plano intermediário entre a atividade legislativa e o produto da jurisdição.

A tese da natureza legislativa da súmula vinculante (ou, para os menos radicais, da qualidade de “quase-lei” da prescrição jurisdicional – conceito artificial, de difícil compreensão e detalhamento) funda-se na existência de generalidade, abstração, coercibilidade e obrigatoriedade no enunciado normativo, o qual, não obstante represente a interpretação conferida pelo STF ao ordenamento jurídico, a ele passa a se integrar por força dos atributos conferidos pela Constituição a essa específica modalidade de pronunciamento. Nesse sentido, manifesta-se José de Albuquerque Rocha, citado por Rosemiro dos Reis Martins:

Um enunciado prescritivo, como dissemos, se caracteriza justamente por esses dois elementos, ambos encontrados na disposição do artigo 103-A e seus parágrafos: (a) dirigir a conduta humana e (b) qualificá-la como obrigatória. Portanto, repetimos, a disposição do artigo 103-A e seus parágrafos concede poderes ao Supremo Tribunal Federal para editar enunciado de súmula prescritivo. [...] Desse modo, analisada a súmula vinculante à luz do critério da validade, conclui-se ser uma norma jurídica, ou seja, pertencente ao ordenamento jurídico, já que produzida por um órgão do sistema jurídico, o Supremo Tribunal Federal, e no exercício de poderes conferidos por uma norma superior do sistema, qual seja, a que resulta da interpretação do disposto no artigo 103-A da Constituição. (ROCHA apud MARTINS, 2013, p. 1).

Logo, sob essa perspectiva, a súmula vinculante representaria intromissão indevida do Poder Judiciário na esfera de atuação típica do Poder Legislativo, na medida em que produziria norma geral de observância obrigatória, em mitigação inconstitucional do princípio da separação dos Poderes (CALDAS, 2013, p. 1). A súmula vinculante, enquanto atividade materialmente legislativa, seria manifestação legiferante do Poder Judiciário, embora revestida da forma de decisão judicial, representando alternativa esdrúxula adotada pelo sistema brasileiro, sobretudo em face de sua filiação à tradição romanista ou de civil law.

A corrente prevalecente, contudo, é a que se mostra contrária a esse posicionamento, aduzindo a legitimidade constitucional do disposto no art. 103-A, da CF/88, com fundamento no fato de que a súmula vinculante não se reveste do atributo mais destacado da norma legislativa, qual seja, o potencial de inovar na ordem jurídica (EBECKEN, 2013, p. 1). Trata-se do entendimento acertado sobre o assunto. Com efeito, não obstante a generalidade e a obrigatoriedade do enunciado vinculante, este apenas esclarece o conteúdo de princípios já presentes na ordem jurídica, sendo inconcebível que alguém se veja “obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa” (BRASIL, 1988, p. 1) em virtude, exclusivamente, do disposto em súmula vinculante. Tendo em vista o princípio da legalidade, insculpido no art. 5º, inciso II, da CF/88, 7 no Brasil, somente a lei pode ser a fonte originária de obrigações e direitos, restando ao Poder Judiciário, tão somente, a função de esclarecer o conteúdo das disposições normativas. E, ao fixar a competência do Supremo Tribunal Federal para a edição de súmula vinculante, em momento algum o constituinte reformista outorgou ao Judiciário poderes para inovar na ordem jurídica; pelo contrário, o § 1º, do art. 103-A, da CF/88 foi claro ao estabelecer que “a súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas” (BRASIL, 1988, p. 1) e não que consistiria, em si, uma prescrição primária, apta a criar direitos ou obrigações.

Isto é: a súmula vinculante sempre se reportará a determinada norma preexistente no ordenamento jurídico, dispondo sobre sua validade, eficácia ou significado, à luz dos princípios constitucionais. Por mais que a hermenêutica constitucional permita alto grau de maleabilidade na utilização de conceitos jurídicos, a fundamentação – sempre passível de controle social, notadamente sob a forma da doutrina – restará sempre, ao menos em certo grau, limitada à fórmula gramatical e ao conteúdo histórico e social dos institutos jurídicos referidos no texto constitucional. Por conseguinte, a conclusão não pode ser outra senão pela natureza jurisdicional do enunciado da súmula vinculante, cujo conteúdo nada mais é do que a explicitação, em “interpretação autêntica” (KELSEN, 1999, p. 249) de normas já existentes na ordem jurídica, efetuada no esforço de concretização do ideal de justiça pela identificação e aplicação de conceitos e princípios gerais do Direito.

Não se discute que a elaboração do precedente pressupõe certo grau de criatividade na função jurisdicional, tal como se verifica, em maior ou menor grau, em toda atividade interpretativa. O que se afirma é que, apesar disso, o precedente judicial é uma espécie de norma jurídica de natureza substancialmente diversa da legislativa, na medida em que o Poder Judiciário não se encontra absolutamente livre para inovar na ordem jurídica, nos moldes do que ocorre com o órgão legislativo. A atividade jurisdicional, embora possa criar direito, encontra-se adstrita às possibilidades interpretativas do ordenamento, que, de modo inequívoco, são limitadas por elementos de ordem gramatical, histórica, filosófica, cultural e sociológica.

Nada impede, na forma do texto original da CF/88, que a atividade jurisdicional, por questões de justificada economia processual, seja efetuada em caráter geral e vinculante, como veio a ser admitido pela EC n.º 45/2004. Não há que se falar em inconstitucionalidade do instituto, o qual em nada viola o princípio da separação dos Poderes, revelando-se atividade jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, dotada, contudo, por razões de política processual, de efeitos vinculantes em relação ao Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário.

A figura a seguir ilustra a dependência do ordenamento jurídico pelo órgão de cúpula do Judiciário que fixa a interpretação vinculante, demonstrando a relação de pertinência entre o enunciado sumulado e o contexto jurídico-positivo do qual foi emanado. O STF extrai do ordenamento jurídico a interpretação constante da súmula, dependendo, pois, da previsão, naquele, das regras e princípios explicitados nesta. No caso da edição de norma materialmente legislativa a dinâmica é exatamente oposta: a partir de elementos extrajurídicos, tais como fatos e valores sociais, o legislador edita a lei, a qual, satisfazendo determinados requisitos formais, passa a integrar o ordenamento jurídico.

Figura 1 – Súmula vinculante como atividade materialmente jurisdicional do STF. Dependência do contexto jurídico-positivo e ausência de natureza legislativa. Inexistência de violação ao princípio da separação dos Poderes

Fonte: Elaborada pelo autor

Note-se, pois, que a súmula vinculante, enquanto tese jurídica, é decorrência lógica das regras e princípios que informam o ordenamento. A lei, por sua vez, é fruto da convergência de elementos extrajurídicos os quais, sintetizados pelo Poder Legislativo a partir de critérios de conveniência e oportunidade, produzem o conteúdo de determinada ordem jurídico-positiva nacional. Havendo múltiplas interpretações juridicamente possíveis do ordenamento, é a súmula a leitura “autêntica”, efetuada pelo órgão de Estado incumbido constitucionalmente do poder-dever de dizer o direito (KELSEN, 1999, p. 249). É a súmula vinculante, portanto, produto de atividade formal e materialmente jurisdicional, cujo efeito obrigatório em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública mais tem a ver com uma estratégia nacional de produção judiciária que com a coercibilidade da norma jurídica enquanto categoria sociológica.

Prova do que se afirma é o fato de que a superveniência de lei com conteúdo oposto ao de súmula vinculante faz cessar a eficácia do enunciado do Supremo Tribunal Federal (SOUZA, 2013, p. 274). Se a tese jurídica fixada na súmula for frontalmente atacada por ato formal do Poder Legislativo, não há razão para crer que deva permanecer aplicável o enunciado do Judiciário, ainda que dotado de efeitos vinculantes. Nesse sentido, prevê o art. 5º, da Lei n.º 11.417/2006, que “revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso.” (BRASIL, 2006, p. 1) Cuida-se de fenômeno que, no common law, é conhecido como a superação do precedente por caducidade. Entre nós, tendo em vista o primado da lei como fonte primordial do direito (art. 5º, inciso II, da CF/88), por mais que o tribunal não proceda à revogação formal do enunciado, não se pode deixar de reconhecer a eficácia do ato legislativo posteriormente editado, vez que a atividade legiferante deve permanecer plena, sendo logicamente contraditório que se submeta o Legislativo a uma interpretação prévia do ordenamento elaborada por órgão judicante. Com efeito,

a súmula vinculante terá sua estabilidade condicionada à estabilidade do princípio subjacente à norma legislada que visa interpretar. Em regra, um enunciado de súmula vinculante não deve sobreviver se alterado o texto da norma legislada a que ele se refere (ou criada uma norma, para o caso de ausência da anterior), de modo a tornar incompatíveis enunciado e novo texto de lei. Entretanto, embora alterado o texto da norma legal ou criada uma onde não exista, pode o enunciado sobreviver se a alteração em nada afetar o princípio subjacente em relação ao qual ele está de acordo. É absurdo pensar que a elaboração das leis, a priori, teria sempre de se conformar com os enunciados da súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal. Seria entender que a Reforma do Judiciário criou uma supremacia do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo. (SOUZA, 2013, p. 274)

Logo, evidente que a natureza jurídica da súmula vinculante, não somente na perspectiva formal, mas, sobretudo, do ponto de vista material, de sua essência, não é a de ato legislativo, mas jurisdicional. A verificação de um maior grau de criatividade judicial no âmbito de aplicação do instituto não se deve a uma suposta natureza legislativa da súmula, mas à realidade da jurisdição constitucional, a qual, a par de deter o monopólio da última palavra sobre determinada questão jurídica, constantemente, lida com princípios e valores positivados, que demandam elevado esforço interpretativo quando de seu confronto com as demais espécies normativas. Noutros termos, é o papel do STF como instância final de dicção do direito e a sensibilidade axiológica das questões constitucionais por ele resolvidas que explicam a maior ingerência da súmula vinculante em temas pouco esclarecidos da ordem jurídica. O método de trabalho, a forma de raciocínio e a teoria que inspiram sua produção, contudo, divergem significativamente das que informam o processo legislativo.

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Súmula vinculante: regime geral, natureza jurídica e enunciado inconstitucional . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4049, 2 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30624. Acesso em: 18 dez. 2024.

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