3. O MODELO DE ESTADO REGULADOR NO BRASIL
3.1 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A REGULAÇÃO ESTATAL DA ECONOMIA
A Constituição é a Lei Maior de um país. Um Estado de Direito deve basear seus atos na Constituição. Ela também tem força jurídica para definir a estrutura política do Estado, inclusive a forma como este deve se organizar no âmbito econômico e social.
Segundo Alexandre de Moraes, pode-se definir Constituição como:
Juridicamente, porém, constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a constituição que individualiza os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas. [45]
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, por sua vez, conceitua Constituição como:
Isto significa, mais explicitamente, o conjunto de regras concernentes à forma do Estado, à forma do governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos, aos limites de sua ação. [46]
Por fim, segundo José Joaquim Gomes Canotilho:
Sob a influência da filosofia hegeliana e da juspublicística germânica, a constituição designa uma ordem – a ordem do Estado. Ergue-se, assim, o Estado a conceito ordenador da comunidade política, reduzindo-se a constituição a simples lei do Estado e do seu poder. A constituição só se compreende através do Estado. O conceito de Estado Constitucional servirá para resolver este impasse: a constituição é uma lei proeminente que conforma o Estado. [47]
É por meio da leitura da constituição que se deve interpretar as demais leis do país, como ensina Paulo Ricardo Schier ao falar sobre a filtragem constitucional:
(...) diante da força normativa da Constituição, todo o ordenamento jurídico estatal deve ser lido sob a ótica da axiologia, materialidade e jurisdicidade constitucional. Tal processo de filtragem constitucional, decorrente da força normativa da Constituição, inaugura, certamente, no âmbito infraconstitucional, um momento de releitura do Direito, mormente em sua dimensão tecnológica (visando a orientação e decidibilidade dos problemas concretos). [48]
A Constituição brasileira também define os objetivos fundamentais a serem perseguidos pelo país (artigo 3º), quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Há diferentes formas de alcançar esses objetivos. Muitos autores defendem que a Constituição brasileira tem tendências regulatórias, como Silvio Wanderley do Nascimento Lima:
O próprio modelo econômico delineado pela Carta Constitucional de 1988 é indicativo de que a figura do Estado empresário cede passo a uma nova posição estatal de índole orientadora, fiscalizadora e fomentadora do desenvolvimento econômico (art. 174 da CRFB). A intervenção direta na atividade produtiva não é vedada pelo novo modelo econômico-constitucional, porém restou circunscrita apenas aos setores de relevante importância estratégica para segurança nacional ou no qual se faça presente relevante interesse coletivo (art. 173 da CRFB). [49]
Como salienta Celso Antônio Bandeira de Mello, para se compreender a intervenção do Estado brasileiro na economia nacional, é preciso verificar o que dispõe a Constituição:
A fisionomia do Direito Administrativo em cada país, seus contornos básicos, seus vetores e perspectivas são determinados pelo Direito Constitucional nele vigente. Assim, pois, todos os institutos interessantes ao Direito Administratviso que dizem com a intervenção do Estado no domínio econômico e no domínio social haverão de consistir na aplicação concreta dos correspondentes comandos residentes na Constituição. Cumpre, portanto, verificar quais são as diretrizes que a Lei Maior impôs nestas matérias. [50]
Em seu artigo 170, a Constituição Brasileira indica a tendência regulatória do Estado:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Pode-se perceber a compatibilidade de um modelo de Estado Regulador com os princípios que devem reger a ordem econômica brasileira. Ao mesmo tempo em que se preza pela propriedade privada e pela livre concorrência, ou seja, pela atuação dos agentes particulares na economia, preza-se também por direitos sociais, como a função social da propriedade, a defesa do consumidor, redução das desigualdades sociais e regionais e busca do pleno emprego. Assim, o mercado é valorizado, mas ele deve atender a interesses coletivos. Incentiva-se a iniciativa privada, mas põe-se limites a ela quando for necessário defender os direitos coletivos. Placha complementa:
O modelo brasileiro está caracterizado pela busca do desenvolvimento econômico, observados princípios de promoção social. Isto significa que a atividade regulatória, no aspecto constitucional, tem a função de equilibrar relações econômicas e sociais. O Estado assume uma postura de atuação subsidiária à iniciativa privada, coordenando e fiscalizando as atividades particulares, permanecendo com as funções estatais exclusivas.[51]
Celso Antônio Bandeira de Mello também trouxe idéias a respeito do tema:
À vista dos dispositivos citados, é claro a todas as luzes que a Constituição brasileira apresenta-se como uma estampada antítese do neoliberalismo, pois não entrega a satisfatória organização da vida econômica e social a uma suposta (e nunca demonstrada) eficiência do mercado. Pelo contrário, declara que o Estado brasileiro tem compromissos formalmente explicitados com os valores que nela se enunciam, obrigando a que a ordem econômica e a social sejam articuladas de maneira a realizar os objetivos apontados. Com isto, arrasa liminarmente e desacredita do ponto de vista jurídico quaisquer veleidades de implantação, entre nós, do ideário neoliberal. [52]
Além disso, a respeito do artigo 170, CF, Ivo Dantas comenta:
A dimensão ontológica compreende seus fundamentos fáticos: o trabalho, os meios de produção e a iniciativa econômica. A dimensão axiológica envolve os princípios que atuam como norte da atividade interventiva do Estado e são: a soberania, a função social da propriedade e a livre concorrência. Por fim, a dimensão teleológica agasalha as finalidades a que visa o Estado ao intervir na ordem econômica, ou seja, o resultado a ser idealmente alcançado com a sua intervenção: a existência digna da pessoa humana, a sua defesa enquanto consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. [53]
Apenas o artigo 170, entretanto, não deixa tão clara a consagração do modelo regulador pela Constituição Brasileira. Os artigos 173 e 174 são essenciais para tal constatação:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo conforme definido em lei.
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
O artigo 173 deixa claro que o Estado só poderá intervir na economia quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Isso significa que a atuação econômica estatal é subsidiária à atuação privada. [54] Em regra são os agentes particulares que produzirão bens e serviços e os distribuirão na sociedade, segundo as regras de mercado.
Já o artigo 174 determina que o Estado exerça um papel normativo e regulador da atividade econômica. Assim, o Estado não deve atuar diretamente na economia, mas pode normatizá-la e regulá-la por meio de fiscalizações, incentivos e planejamentos.
Os artigos 173 e 174 estipulam exatamente o que prega o modelo de Estado Regulador. O Estado intervirá apenas subsidiariamente na economia, deixando a organização econômica prioritariamente para o mercado. Ao mesmo tempo, para proteger os interesses coletivos, imporá normas de caráter regulador.
Segundo Alexandre de Moraes:
Apesar de o texto constitucional de 1988 ter consagrado uma economia descentralizada, de mercado, autorizou o Estado a intervir no domínio econômico como agente normativo e regulador, com a finalidade de exercer as funções de fiscalização, incentivos e planejamento indicativo ao setor privado, sempre com fiel observância aos princípios constitucionais da ordem econômica (...). [55]
Acrescente-se que a atuação do Estado deverá ser no sentido de realizar os seus objetivos fundamentais definidos na Constituição, de modo a suprir as necessidades coletivas. É exatamente isso que prega o modelo regulador de Estado e o artigo 219 da Constituição da República:
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos da lei federal.
O texto constitucional é, assim, compatível com o modelo de Estado Regulador. A simples aplicação das normas constitucionais acerca da ordem econômica leva o país a adotar uma organização que tende ao modelo regulador.
Cabe ressaltar a advertência de Marçal Justen Filho:
A alusão a “Estado Regulador” não pode ser interpretada no sentido da existência de uma configuração padronizada e unitária. Fala-se muito mais de um “modelo regulador” de Estado para indicar uma situação variável e heterogênea, que se concretiza de diversos modos. [56]
Deve-se, dessa forma, compreender que em cada país em que o modelo de Estado Regulador é adotado ele tem cores diferentes. Embora mantenha algumas semelhanças, cada país desenvolve seu próprio modelo regulador, adequado à sua realidade, à sua sociedade.
3.2 UM DIREITO PARA A ATIVIDADE REGULATÓRIA
O Brasil é um Estado Democrático de Direito, como determina a própria Constituição. Um Estado de Direito deve atuar dentro do campo permitido pela lei[57], inclusive os governantes estão sujeitos ao limite legal, de forma que o Presidente da República pode ser responsabilizado por atos ilegais. Sobre isso, vale citar as palavras de Pablo Lucas Verdú:
Quando um Estado estrutura juridicamente a organização e o exercício do poder político, de maneira que os indivíduos estejam protegidos pela existência prévia das normas e instituições garantidoras de seus direitos e liberdades, quando toda a atividade estatal se submete a essas normas e instituições, sem exceções além daquelas reclamadas pelo bem-estar geral, podemos dizer que nos encontramos perante uma comunidade jurídica civilizada. [58]
O Brasil não é apenas um Estado de Direito, mas também um Estado “democrático”, sendo o governante um representante do povo e devendo agir no interesse deste e não no próprio. Isso veda um modelo de Estado totalitário em neste país. Como ensina Marçal Justen Filho:
A consagração de um Estado Democrático de Direito significou a subordinação de toda atividade estatal ao primado do Direito e ao controle do Poder Judiciário. Muito mais do que isso, todo poder estatal está conformado pelos postulados da ideologia democrática. Proscreveu-se o arbítrio e a Constituição deixou de constituir mero limite negativo ao exercício do poder. A Carta retrata um pacto nacional, onde são assegurados não apenas direitos e deveres individuais. Ali se cristalizam os valores fundamentais que serão buscados pelo conjunto dos brasileiros e estrangeiros vinculados ao Estado brasileiro. [59]
Ainda sobre a democracia, não se deve ignorar os ensinamentos de Marçal Justen Filho:
(...) as experiências concretas forneceram comprovação de que nenhuma Democracia pode configurar-se a partir da preponderância ilimitada da vontade da maioria. Aliás, atribuir a largos extratos da população o poder de decisão sobre questões fundamentais tende à destruição de valores fundamentais ou de certos direitos e garantias reconhecidos em prol da totalidade dos cidadãos. [60]
De qualquer forma, no Brasil o Estado deve tomar suas decisões tendo como norte as leis e o interesse coletivo. Sendo assim, para que se empregue o modelo regulador, é preciso que ele esteja previsto nas leis nacionais. É neste contexto que se fala de um Direito Regulatório. E como as agências reguladoras são um dos principais meios de concretização desse modelo de Estado, vale citar Marçal Justen Filho:
Considerando-se que a agência apresenta natureza jurídica autárquica, aplica-se o disposto no art. 37, inc. XIX, da CF/88 (com a redação da EC n. 19), que exige lei específica para sua criação. Portanto, não se admite que ato infra-legislativo institua agências. A atribuição de competências específicas e a personalidade jurídica própria, a instituição de cargos e a determinação de procedimentos administrativos aptos a afetar o interesse de terceiros, tudo isso somente poderá ser produzido através de lei. [61]
A regulação da economia pelo Estado envolve órgãos públicos e pessoas jurídica de Direito Público, principalmente do Poder Executivo. Envolve, assim, a Administração Direta e a Indireta. Desse modo, a atividade regulatória está relacionada ao objeto de estudo do Direito Administrativo. Pode-se dizer que o Direito Regulatório pertence a uma das etapas evolutivas do Direito Administrativo. De fato, como o Direito Administrativo impõe limites à atuação do Estado, ordenando o relacionamento deste com os particulares, o Direito Regulatório não é senão uma das facetas desse ramo mais abrangente. Assim, PLACHA[62] diz: “O Direito Regulatório é uma especialização do Direito Administrativo e que deve, portanto, observar os limites do sistema jurídico.”
3.3 A ATUAÇÃO ESTATAL NA REGULAÇÃO ECONÔMICA
A Constituição define objetivos e finalidades para o Estado Brasileiro, que precisa empregar meios concretos para realizá-los. O Estado exerce, então, diversas atividades, atuando direta e indiretamente sobre a realidade de seu país. Segundo a classificação tradicional, que foi adotada pela Constituição, essas atividades podem ser de cunho Administrativo, Legislativo ou Judiciário. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello:
Assim, função legislativa é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam direta e imediatamente na Constituição. Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de decisões que resolvem controvérsias com força de “coisa julgada”, atributo este que corresponde à decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo recurso. Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário. [63]
Dentre as atividades administrativas, pode-se citar a atividade regulatória, que compreende o exercício de poder de fiscalização, repressão, promoção de fomento em áreas de interesse e, além disso, o estabelecimento de certas normas.
A fiscalização é para controle da atividade econômica pública e privada e dos serviços sociais não exclusivos do Estado, com o objetivo de defender o interesse coletivo. [64] Se um determinado setor está praticando atos que vão contra esse interesse, a atividade regulatória tomará medidas repressivas, punindo as empresas do setor. Por outro lado, se um setor não pratica atos prejudiciais à coletividade, mas ao mesmo tempo deixa de praticar atos benéficos, cabe ao Estado, por meio da atividade regulatória, incentivar esses atos. Para fazer isso, o Estado delega àqueles encarregados pela atividade regulatória uma parcela do poder normativo da Administração Pública. Assim, para Placha:
Portanto, a atividade regulatória é uma parcela do poder normativo da Administração Pública, que tem por finalidade específica estabelecer normas de conduta e controle sobre atividades setoriais determinadas. Mas embora seja uma parcela da atividade administrativa, a atividade regulatória possui a diferença de estar dissociada da idéia de poder governamental central. [65]
É por isso que é comum acrescentar-se o adjetivo “independentes” ao termo “agências reguladoras”. Embora façam parte da Administração Pública, são pessoas jurídica independentes. Isso garante uma maior imparcialidade na tomada de decisões dessas agências, o que é essencial para um bom funcionamento dos setores econômicos regulados. Caso contrário, influências políticas retirariam o caráter técnico das decisões, favorecendo o interesse de um grupo ao invés do interesse coletivo.
3.3.1 Elementos caracterizadores das agências reguladoras
Pode-se citar os seguintes elementos caracterizadores das agências reguladoras: a independência do poder governamental, a autonomia, a descentralização e a subsidiariedade. A seguir tratar-se-á de cada uma delas.
3.3.1.1 Independência do poder governamental
Estado e Governo não podem ser confundidos. Segundo a valiosa lição de Hely Lopes Meirelles o conceito de Estado:
(...) varia segundo o ângulo em que é considerado. Do ponto de vista sociológico, é corporação territorial dotada de um poder de mando originário (Jellinek); sob o aspecto político, é comunidade de homens, fixada sobre um território, com potestade superior de ação, de mando e de coerção (Malberg); sob o prisma constitucional, é pessoa jurídica territorial soberana (Biscaretti di Ruffia); na conceituação de nosso Código Civil, é pessoa jurídica de Direito Público Interno (art. 14, I). Como ente personalizado, o Estado tanto pode atuar no campo do Direito Público como no do Direito Privado, mantendo sempre sua única personalidade de Direito Público, pois a teoria da dupla personalidade do Estado acha-se definitivamente superada. [66]
Em oposição, o grande autor Meirelles diz que governo:
Em sentido formal, é o conjunto de Poderes e órgãos constitucionais; em sentido material, é o complexo de funções estatais básicas; em sentido operacional, é a condução política dos negócios públicos. Na verdade, o Governo ora se identifica com os Poderes e órgãos supremos do Estado. Ora se apresenta nas funções originárias desses Poderes e órgãos como manifestação da Soberania. A constante, porém, do Governo é a sua expressão política de comando, de iniciativa, de fixação de objetivos do Estado e de manutenção da ordem jurídica vigente. O governo atua mediante atos de Soberania ou, pelo menos, de autonomia política na condução dos negócios público. [67]
Assim, Estado e Governo não se confundem. O primeiro está relacionado a objetivos de longo prazo, ligados à manutenção do próprio país enquanto ente internacional, o segundo está ligado às decisões e políticas de um grupo específico, que comanda o país por um tempo determinado. [68] Assim, pode-se dizer que os objetivos do Estado são superiores e mais duradouros do que os objetivos de um governo. No caso do Brasil atual, cada eleição dá ensejo a um novo governo. Dentro dos limites definidos pela Constituição, cada governo define o modo como vai atuar. Pode ser um governo popular, um governo mais voltado à produção de riquezas etc. O Estado perpassa os diversos governos, como uma estrutura maior que dá certa unidade aos sucessivos governos, permitindo que as conquistas de cada governo convirjam para uma mesma finalidade comum. Como ensina Silvio Wanderley do Nascimento Lima:
Parece-nos extreme de dúvidas que as atividades desempenhadas pelas agências reguladoras têm por desiderato primeiro prestar um conjunto de serviços direcionados à satisfação de necessidades e interesses, individuais ou coletivos, de elevada relevância, não se constituindo em meros atos de suporte, mas sim em atos inerentes ao exercício de função administrativo-executiva. [69]
As agências reguladoras devem buscar realizar os objetivos do Estado e não de um governo específico. É nesse ponto que tal distinção é importante para este trabalho. Tais agências devem, então, ser concebidas de modo a guardar independência frente ao poder político governamental.
Uma vez que na atividade regulatória as finalidades são as do Estado, não se pode admitir que cada governo altere o seu exercício conforme o matiz de sua política, conforme as ideologias e interesses de classe que defende. Submeter a atividade regulatória à influência política é torná-la mecanismo de corrupção e concentração de poder econômico, já que é de grande interesse das empresas privadas ter controle sobre o órgão que regula a sua atividade.
De acordo com estudo realizado na Fundação Getúlio Vargas por Gesner de Oliveira e Thomas Fujiwara, há oito características importantes para a independência das agências reguladoras: (i) participação do Congresso Nacional na nomeação dos diretores da agências; (ii) requisição legal de conhecimento técnico pelos diretores; (iii) mandato longo; (iv) autonomia financeira; (v) decisões tomadas coletivamente; (vi) quarentena após terminado o mandato; (vii) apelação das decisões apenas para o poder judiciário; (viii) transparência. [70]
Além disso, se a cada eleição os órgãos que regulam diversos setores da economia mudarem as regras do jogo, a insegurança das empresas quanto às políticas que serão adotadas nos próximos governos será um obstáculo para um crescimento saudável da economia nacional. Instabilidade econômica dá ensejo a episódios de grande desemprego, inflação, descontrole cambial etc. Não é este o objetivo estatal.
3.3.1.2 Autonomia
A autonomia decorre da necessidade de independência das agências reguladoras para como o poder político governamental. Para ser independente do Governo, é preciso que a atividade regulatória seja autônoma. A autonomia deve ser tanto da gestão administrativa quanto financeira[71]. Segundo Marçal Justen Filho:
Já sabemos que uma das principais características das agências reguladoras no Direito brasileiro é a considerável autonomia de que gozam. Em outras palavras, não é qualquer autonomia que caracteriza as agências reguladoras, mas apenas aquela reforçada (...). [72]
A autonomia financeira é essencial. Sem recursos financeiros não há como as agências reguladoras exercerem suas funções. Se o Governo detiver poder para determinar quando e quanto repassará para as agências, estas ficarão à mercê do governante do momento. Um governo poderá fornecer mais dinheiro, outro menos, a depender da importância que atribui para a regulação. Há ainda a possibilidade de que o grupo que esteja no poder exija favores em troca de recursos financeiros. Sem autonomia financeira não há como falar em independência das agências reguladoras. Segundo Alexandre Santos Aragão:
A autonomia financeira é requisito essencial para que qualquer autonomia se efetive na prática. (...) Podemos constatar que de fato as leis instituidoras das agências lhes asseguram autonomia financeira, através da titularidade das chamadas “taxas regulatórias” (ex.: arts. 11 a 14 da Lei n. 9.427/96); e orçamentária, através do envio da proposta de orçamento ao Ministério ao qual é vinculada (ex.: art. 49 da Lei n. 9.427/96). [73]
Outra autonomia de grande importância é a administrativa. Quem deve organizar os detalhes da atividade é a própria agência. É ela que estará mais perto dos problemas do dia a dia, que saberá quais medidas funcionam e quais não funcionam para o setor específico de sua atividade. É ela, portanto, mais apta a gerenciar e administrar o modo como os objetivos devem ser alcançados. Deixar que outros órgãos interfiram, principalmente aqueles de cunho político, dificultaria em muito a concreção desses objetivos. Como diz Alexandre Santos de Aragão:
(...) o que caracteriza as agências reguladoras é a independência ou autonomia reforçada que possuem em relação aos Poderes centrais do Estado e, em especial, frente à Administração Pública central. [74] (grifo nosso)
Mas, ser independente e autônomo não significa estar acima das leis. As agências reguladoras são, logicamente, regidas pela idéia de Estado Democrático de Direito. Devem, portanto, atuar nos limites legais. Exatamente por isso, estão submetidas a um controle externo. Como ensina Silvio Wanderley do Nascimento Lima:
(...) não se pode olvidar que as agências reguladoras ainda que sejam detentoras de autonomia ampliada, tal circunstância não as exime de submissão a monitoramento finalístico. O exercício da pujança estatal deve ser, em qualquer circunstância, sujeita a controles, sejam estes de natureza política ou jurídica. É da essência do Estado republicano a existência de meios de fiscalização e contenção incidentes sobre os atos de todos os órgãos integrantes da estrutura estatal e, a toda evidência, as agências reguladoras não poderão se afastar desta diretriz (...). [75]
Ainda sobre o mesmo tema, cabe citar posicionamento de Alexandre Santos de Aragão:
Não há dúvidas de que as agências reguladoras, como autarquias que são, devem prestar contas aos Tribunais de Contas quanto às verbas públicas por elas despendidas (art. 70, CF). (...) Ao nosso ver, o Tribunal de Contas pode realmente controlar tais atos de regulação, uma vez que, imediata ou mediatamente, os atos de regulação e de fiscalização sobre os concessionários de serviços públicos se refletem sobre o Erário. Por exemplo, uma fiscalização equivocada pode levar à não aplicação de uma multa; a autorização indevida de um aumento de tarifa leva ao desequilíbrio econômico-financeiro favorável à empresa, o que, entre outras alternativas, deveria acarretar na sua recomposição pela majoração do valor da outorga devida ao Poder Público, etc. [76]
A capacidade das entidades reguladoras de solucionar e dirimir conflitos, por exemplo, está sujeita ao controle jurisdicional. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a autonomia regulatória resulta da “(...) nova dimensão de autodeterminação que resulta da abertura, pela lei, de um espaço decisório deslegalizado em seus respectivos setores de atuação”.
3.3.1.3 Descentralização
Se a atividade regulatória deve ser independente e autônoma do poder governamental, ela não pode ser, obviamente, administrada diretamente pelo governo. É preciso que as agências reguladoras sejam pessoas jurídicas distintas das pessoas políticas (União, Estados, Municípios e Distrito Federal). É por isso que as agências foram criadas como autarquias, sendo parte da Administração Indireta. Essa forma de organização da máquina pública é dita descentralizada. Celso Antônio Bandeira de Mello explica com grande clareza a distinção entre centralização e descentralização:
Na centralização o Estado atua diretamente por meio dos seus órgãos, isto é, das unidades que são simples repartições interiores de sua pessoa e que por isto dele não se distinguem. Consistem, portanto, em meras distribuições internas de plexos de competência, ou seja, em “desconcentrações” administrativas. Na descentralização o Estado atua indiretamente, pois o faz através de outras pessoas, seres juridicamente distintos dele, ainda quando sejam criaturas suas e por isto mesmo se constituam, como ao diante se verá, em parcelas personalizadas da totalidade do aparelho administrativo estatal. [77]
O modo como um Estado estrutura a máquina pública deve ser adequado à realidade em que quer atuar. A sociedade muda continuamente e a estruturação do Estado deve acompanhar essas mudanças. O modelo grego clássico de organização das cidades-estado não seria eficiente na atual sociedade globalizada. Do mesmo modo, guardadas as proporções, o modelo de organização do Estado brasileiro no período do regime militar não é mais adequado aos tempos atuais. Uma boa ilustração de mudança social é apresentada também por Friedrich August von Hayek:
There can be little doubt that the moral feelings which Express themselves in the demand for ‘social justice’ derive from an attitude which in more primitive conditions the individual developed towards the fellow members of the small group to which he belonged. Towards the personally known member of one’s own group it may well have been a recognized duty to assist him and to adjust one’s actions to his needs. This is made possible by the knowledge of his person and his circumstances. The situation is wholly different in the Great Open Society. Here the products and services of each benefit mostly persons he does not know. The greater productivity of such a society rests on a division of labour extending far beyond the range any one person can survey. [78] [79](grifo nosso)
Entre as mudanças sociais, pode-se incluir o paulatino aumento do patrimônio de direitos conquistados pela humanidade. Quanto mais direitos, mais retorno se exige do Estado, que terá que assegurá-los à população. Os serviços públicos foram aumentando (educação, saúde, saneamento, previdência, garantias trabalhistas, etc.). Como ensina José Casalta Nabais, todos os direitos têm custo:
Na verdade, todos os direitos têm custos comunitários, ou seja, custos financeiros públicos. Têm portanto custos públicos não só os modernos direitos sociais, aos quais toda a gente facilmente aponta esses custos, mas também têm custos públicos os clássicos direitos e liberdades, em relação aos quais, por via de regra, tais custos rendem a ficar na sombra ou mesmo no esquecimento. Por conseguinte, não há direitos gratuitos, direitos de borla, uma vez que todos eles se nos apresentam como bens públicos em sentido estrito. [80]
As atribuições do Estado iam aumentando à medida que discursos sociais ganhavam força. Estados economicamente mais desenvolvidos conseguiram, de certa forma, oferecer e garantir esses direitos aos cidadãos durante certo tempo. Entretanto, o crescimento e envelhecimento populacional impossibilitaram que o Estado, por si mesmo, ofertasse tantos bens e serviços. A estrutura administrativa que antes funcionava, tornou-se obsoleta diante da realidade sócio-econômica atual. De modo que inúmeros países passaram por processos de reforma administrativa, em que suas estruturas piramidais e hierarquizadas foram flexibilizadas. Assim, segundo Placha:
Esta transformação ocorreu, em parte, por conta da evolução das relações sócio-econômicas que atingiram um estágio elevado de complexidade e dinamismo, sendo que o Estado já não tinha mais estrutura compatível para lidar com as situações advindas destas mudanças. A atividade regulatória deriva deste movimento de descentralizar, sendo uma tendência contrária ao paradigma clássico tradicional das administrações centralizadas e hierarquizadas, pois a regulação se espalha por diversas estruturas, com inúmeros agentes envolvidos e com interesses distintos. [81]
Com a maior complexidade social e econômica, a estrutura estatal moldada para administrar uma sociedade menos complexa tornou-se defasa. Era preciso implementar novos instrumentos de controle social. Veio então a descentralização administrativa. As agência reguladoras, pertencentes à Administração Indireta, fazem parte desse processo de renovação da estrutura administrativa.
3.3.1.4 Subsidiariedade
O modelo regulador de Estado tem como base a economia de mercado. Em princípio, pressupõe-se que o mercado é um bom meio de organização da produção e oferta de bens e serviços, bem como da distribuição dos mesmos para a população. [82] Seguindo essa lógica, a regra é que a organização econômica fique a encargo do mercado. O Estado só intervirá quando for necessário, caso contrário fica na retaguarda, tendo um papel subsidiário. [83]
Quando a ordem estabelecida pelo mercado apresenta falhas, do ponto de vista dos objetivos e finalidades definidos na Constituição, aí sim deve o Estado intervir. A intervenção busca a amenização das falhas de mercado. [84]
Como primeira opção, deve o Estado tentar manter os agentes privados no setor econômico deficiente, apenas aparando os problemas e redirecionando tais agentes. É o que faz a regulação. A segunda opção, quando a primeira não funciona, é o Estado atuar diretamente no nicho de mercado que vinha apresentando problemas. Essa ordem do suprimento das necessidades deixa claro o papel subsidiário do Estado e da Atividade Regulatória. [85]
Assim, é fácil de entender porque nem todos os setores da economia são objeto da regulação econômica estatal que vem sendo trabalhada nesse capítulo. Tal atuação do Estado somente ocorrerá sobre os produtos ou serviços em que o mercado apresentar falhas. A regra é a não intervenção estatal. Apesar de a Constituição adotar o modelo regulador, nem todos os setores da economia serão submetidos a essa regulação. Apenas aqueles em que se observar que as necessidades coletivas não estão sendo atendidas conforme as normas constitucionais é que serão objeto da Atividade Regulatória[86].
Afirmar que o papel do Estado na economia é subsidiário não significa que a intervenção estatal seja pouco importante. Ao contrário, a atuação do Estado é essencial para o bom funcionamento do mercado. Sem o Estado o mercado não chegaria ao seu atual nível. Como ensina Eros Roberto Grau:
É que, em verdade, o mercado não é um objeto do mundo da natureza. (...) O mercado, destarte, é institucionalizado, determinado pelo Estado. A composição de conflitos no quadro das relações de intercâmbio reclama um grau mínimo de regulamentação estatal. (...) ter consciência de que o mercado é impossível sem uma legislação que o proteja e uma vigorosamente racional intervenção, destinada a assegurar sua existência e preservação; de que os postulados da racionalidade dos comportamentos individuais, do ajuste espontâneo das preferências e da harmonia natural dos interesses particulares geral são insuficientes; de que os fenômenos de dominação desnaturam o mercado. [87]
O Estado garante a paz social e um certo nível de estabilidade das instituições e relações entre indivíduos e entre nações. Roubos, guerras, assassinatos, golpes políticos, etc., são fatores que vão contra a fluidez das negociações e trocas que levam à prosperidade econômica de uma nação[88].
3.3.2 Normatividade
Não há duvidas de que a economia é mais complexa hoje do que foi algum tempo atrás. O desenvolvimento dos meios de transporte e principalmente da informática, assim como a globalização, mudaram muito a forma como as relações econômicas acontecem. Já não é nada surpreendente o fato de uma empresa alemã importar componentes do México e vender seus produtos na França. [89] Um abalo no mercado financeiro inglês pode ter repercussões mundiais. Uma mudança climática que diminui a produção de trigo argentino gera um aumento do preço do produto em diversos países, inclusive na Rússia.
Acompanhar e compreender toda essa dinâmica tem se tornado cada vez mais trabalhoso. Cada setor demanda enorme quantidade de estudo para ser parcialmente compreendido. [90] Sempre há muitos fatores e variáveis a serem analisados para que se possa chegar a uma conclusão, que mesmo assim não pode ser tida como definitiva, mas a mais adequada para aquele momento. Como ilustram Krugman e Obstfeld, o setor financeiro é um bom exemplo dessas rápidas mudanças:
Se um financista chamado Rip van Winkle tivesse ido dormir no início da década de 1960 e acordado três décadas mais tarde, ficaria chocado com as mudanças na natureza e na escala da atividade financeira internacional. No início dos anos 60, a maioria dos negócios bancários era puramente doméstica, envolvendo a moeda e os clientes do país de origem dos bancos. Duas décadas mais tarde, vários bancos deviam grande parcela de seus lucros às atividades internacionais. Para sua surpresa, Rip descobriria que podia encontrar filiais do Citibank em São Paulo, e filiais do National Westminster Bank, uma instituição financeira inglesa, em Nova York. Ele também teria descoberto que no início dos anos 80 havia se tornado rotina uma filial de um banco norte-americano localizada em Londres aceitar depósito em ienes japoneses de uma firma suíça, ou emprestar francos suíços para uma indústria holandesa. [91]
Além disso, quando se analisa a economia está-se lidando com seres-humanos. As decisões que influenciam o desempenho econômico são tomadas por pessoas, não por máquinas previamente programadas. É o empresário, o industrial, o consumidor que tomam a decisão de investir mais, de economizar esse mês, de aumentar a produção, etc. Por isso as previsões econômicas trabalham com tendências do comportamento humano. Ora, o comportamento humano não é totalmente previsível. Por isso, a economia também não o é. Como aponta o estudo de Daniel Kahneman, Jack L. Knetsch e Richard H. thaler:
Economics can be distinguished from other social sciences by the belief that most (all?) behavior can be explained by assuming that agents have stable, well-defined preferences and make rational choices consistent with those preferences in markets that (eventually) clear. An empirical result qualifies as an anomaly if it is difficult to “rationalize”, or if implausible assumptions are necessary to explain it within the paradigm. This column presents a series of such anomalies. (…) It is in the nature of economic anomalies that they violate standard theory. The next question is what to do about it. In many cases is no obvious way to amend the theory to fit the facts, either because too little is known, or because the changes would greatly increase the complexity of the theory and reduce its predictive yield. [92][93]
As decisões que os agentes econômicos tomam estão ligadas também com as suas expectativas sobre relação ao futuro. Essas expectativas, entretanto, podem mudar rapidamente com o acontecimento de fatos de grande repercussão econômica, política ou social. A descoberta de uma nova fonte de petróleo, por exemplo, pode mudar a atual relação entre oferta e demanda dessa commodity, alterando a expectativa dos agentes com relação à variação de seu preço. Por outro lado, o desenvolvimento de boas fontes alternativas de energia pode novamente alterar as expectativas, já que o petróleo será substituído por fontes menos poluentes. E esse tipo de mudança está sempre ocorrendo na economia. Como ensina Olivier Blanchard:
(...) muitas decisões econômica dependem não apenas do que acontece hoje, mas também das expectativas em relação ao futuro. De fato, algumas decisões devem depender muito pouco dos eventos atuais. Por exemplo, por que um aumento das vendas atuais, se não for acompanhado de expectativas de aumento das vendas futuras, levaria uma empresa a alterar seus planos de investimento? As novas máquinas talvez não estejam operando antes que as vendas voltem ao normal. Então, ficarão ociosas, juntando poeira. [94]
O que se quer extrair disso tudo é que a realidade econômica é bastante complexa e exige constante acompanhamento, já que mudanças ocorrem continuamente e muitas vezes não podem ser previstas. Apesar disso, como vimos, o mercado precisa do Estado para se desenvolver e muitos setores são regulamentados para que se preserve o interesse da coletividade. O problema é que essa regulamentação precisa acompanhar o dinamismo econômico. Se as leis criarem entraves desnecessários para o mercado, pelo fato de estarem defasadas, é a população que sofrerá com o baixo desenvolvimento econômico do país. Se o Estado quer que seu país seja próspero, deve criar um ambiente institucional que facilite essas mudanças pelas empresas conforme a dinâmica da realidade. Como o ganhador do Prêmio Sveriges Riksbank de Ciências Econômicas em memória de Alfred Nobel, Douglass North, já disse:
Institutions provide the incentive structure of an economy and therefore the way they evolve shapes long-run economic performance. (…) If the institutions reward productive activity then the resultant organizations will find it worthwhile engaging in activities that induce economic growth. If, on the other hand, the institutional framework rewards redistributive and nonproductive activities then organizations will maximize at those margins and the economy will not grow. [95][96]
Dessa forma, é preciso que o Estado tenha uma estrutura adequada para normatizar os setores econômicos. A regra geral é que o Poder Legislativo elabore as leis. Entretanto, o processo legislativo, concebido para atender a princípios democráticos, acaba sendo muito moroso em relação à dinâmica econômica. São ritmos diferentes. Segundo Alexandre Santos Aragão:
Devemos ter em vista que foi ultrapassada a separação absoluta outrora existente entre Estado e sociedade. Há uma interpenetração entre ambos. O Estado é um instrumento de organização da sociedade, ao passo que o bem-estar desta é o objeto do Estado. Sendo assim, a tecnização, diferenciação e autonomização dos vários subsistemas sociais tiveram a mesma conseqüência na organização das esferas decisórias estatais. Sem se tecnizar, diferenciar e autonomizar internamente o Estado se distanciaria da sociedade a que incumbe regular. Uma regulação estatal homogênea, centralizada e desprovida dos meios técnicos necessários seria insuscetível de produzir os efeitos desejados na sociedade à qual deve servir. [97]
Dificilmente o Poder Legislativo acompanharia as contínuas mudanças econômicas, que muitas vezes exigem conhecimento técnico especializado para serem corretamente compreendidas. Como, então, fará o Estado para manter a regulamentação desses setores sem bloquear o seu desenvolvimento com leis defasadas e ao mesmo tempo garantir os interesses coletivos?
A solução apresentada pelo modelo de Estado Regulador consiste na criação de entes especializados na regulação de setores da economia de grande relevância social. São as agências reguladoras. Como ensina Alexandre Santos de Aragão:
Sob o prisma da organização do aparato administrativo, o pluralismo da sociedade e do Estado faz com que este tenha definitivamente mitigado o caráter unitário que possuía nos oitocentos, que já começara a ruir com o advento dos entes locais autônomos e das entidades da administração indireta, sujeitos, no entanto, a uma tutela quase absoluta da Administração central. Com o avanço da pluralidade e complexidade, inclusive tecnológica, da sociedade, este processo fragmentário da administração pública chegou a um ponto ótimo como surgimento de órgãos e entidades independentes, ou seja, dotados de uma verdadeira/reforçada autonomia, de uma descentralização material, mais capazes de ponderar os diversos interesses sociais presentes. [98]
As entidades reguladoras são compostas de pessoal tecnicamente especializado e que dispensam atenção permanente ao setor que regulam, sendo os agentes mais adequados a regulamentar setores específicos da economia. Como ensina Marçal Justen Filho:
Mas também é fundamental que a investidura nos cargos diretivos das agências dependa da presença de requisitos de capacitação pessoal avaliáveis objetivamente. Se a justificação para a criação das agências reside na existência de temas cuja solução envolve critérios técnico-científicos de decisão, resulta como indispensável que a administração da agência seja reservada a profissionais de elevada qualificação no setor regulado. Dito de outro modo, não basta a existência da confiança, da simpatia ou da identidade ideológica para a investidura no cargo diretivo da agência. [99]
Com conhecimento técnico e acompanhamento da dinâmica sócio-político-econômica, consegue-se elaborar normas que incentivem as empresas para os objetivos desejados sem impossibilitá-las de exercer lucrativamente as suas atividades. Sobre isso Placha escreveu:
Portanto, a normatividade, enquanto característica da atividade regulatória, decorre da necessidade do Estado disciplinar determinadas situações, cujo regramento não decorre exclusivamente da lei, sendo que a alternativa foi atribuir aos entes reguladores competências normativas específicas para interferir sobre determinadas atividades, que exigem atenção estatal especial devido às particularidades do setor regulado. [100]
Mas pode uma agência reguladora, parte da Administração Indireta, exercer atividade normativa? A divisão de poderes é norma basilar da Constituição brasileira. Será que a ordem constitucional vigente permite a elaboração de normas jurídicas pelas agências reguladoras?
É esse questionamento que será abordado logo mais. Antes disso é preciso compreender um pouco mais sobre as agências reguladoras.