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Estado regulador e democracia:

o poder normativo das agências reguladoras

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4. AS AGÊNCIAS REGULADORAS

As agências reguladoras são um dos principais meios pelos quais o modelo de Estado Regulador se implementa na realidade. [101] Por serem consideradas uma solução adequada para lidar com a realidade econômica atual vêm sendo criadas em vários países, como diz Alexandre Santos Aragão:

É neste contexto que, em todo o mundo ocidental, se avulta a importância das agências reguladoras independentes, principalmente naqueles setores sensíveis à articulação do Estado com a sociedade, destacando-se aqueles que tenham sido objeto de desestatização. [102]

Para complementar, cita-se Silvio Wanderley do Nascimento Lima:

As agências reguladoras integram a Administração Pública, isto é, ao conjunto de meios institucionais, materiais, financeiros e humanos preordenados à execução das decisões políticas. É bem verdade que os órgãos integrantes dos três Poderes praticam atos de administração e, nesta hipótese, restariam colhidos pelo conceito em tela, porém, não se pode olvidar que os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário praticam atos de administração tão-somente com o escopo de viabilizar as condições materiais para consecução de suas funções típicas, ou seja, praticam atos de administração quando do exercício de funções atípicas. [103]

No Brasil, as agências reguladoras foram criadas na forma de autarquia. São, assim, pessoas jurídicas diferentes da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Apenas isso, entretanto, não garante suficiente independência para as agências. É por isso que foi-lhes concedido um regime especial. São autarquias em regime especial. Esse regime especial significa que a essas autarquias são concedidos independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira[104]. Gesner Oliveira e Thomas Fujiwara ensinam:

But among the desirable characteristics of the regulatory agencies, independence is the most important one. Private investors need to know whether there is a regulator who will be impartial. The decision making autonomy of these agencies is vital for the adoption of technical decisions. The latter is key for the stability and quality of the regulation, which is essential for attracting investment. We can identify eight characteristics which are associated with agencies independence: i) participation of Congress in the nomination of the directors of the agencies; ii) technical background for directors required by law; iii) long directors’ tenure; iv) budget autonomy; v) collective decision; vi) quarantine after completion of term; vii) appeal of decisions only to courts; viii) transparency. [105] [106]

Além disso, Alexandre Santos Aragão complementa:

As primeiras agências reguladoras independentes criadas entre nós guardam pertinência com a retração da intervenção estatal em vastos setores da vida econômica, que teve como reverso a consciência de que o Estado não poderia deixar apenas ao alvedrio empresarial a gestão de atividades de indubitável interesse público, que deveriam, portanto, ficar sob o seu poder regulatório. Procurou-se, todavia, fazer com que a regulação de tais atividades não ficasse sujeita à variação dos humores, político partidários, dotando-se as entidades dela incumbidas de uma especial autonomia em relação ao Poder Executivo central, autonomia esta cuja principal nota é a nomeação dos seus dirigentes por mandato determinado, durante o qual é vedada a exoneração ad nutum. [107]

A função das Agências Reguladoras é fiscalizar, controlar e disciplinar certas atividades econômicas e determinados serviços públicos prestados por particulares [108]. Por isso muitas vezes essas agências são associadas ao movimento de desestatização da economia, iniciado na década de 1990 no Brasil. Segundo Gremaud, Vasconcelos e Toneto:             

No Brasil, as agências reguladoras responsáveis pela defesa da concorrência começaram a ter maior destaque a partir de 1994; elas atuam tanto na regulação e monitoramento das estruturas de mercado como na prevenção e repreensão de práticas infratoras da ordem econômica (...). As privatizações e as concessões (...) trouxeram a necessidade de criar órgãos especiais de regulação para eles, devido às especificidades de cada setor (...). [109]

Apesar de serem associadas com a privatização, as agências reguladoras não regulam apenas os setores que forem privatizados. Elas podem regular qualquer setor econômico de grande relevância social. A idéia do modelo de Estado Regulador é deixar a produção de bens e serviços prioritariamente para o setor privado e regulá-lo quando o mercado apresentar falhas em atender interesses sociais. Assim, Alexandre Santos de Aragão ensina:

Admitimos, portanto, que as agências reguladoras foram, em um primeiro momento, adotadas no Brasil em decorrência da desestatização de serviços públicos, o que está muito longe de significar que sejam por essência um instrumento de desregulação ou da desestatização, até mesmo porque logo começaram a ser criadas agências reguladoras, não mais de serviços públicos, mas de atividades econômicas stricto sensu, que propiciaram um aumento da intervenção estatal sem precedentes nestes setores (por exemplo, a regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS sobre os planos de saúde privados). Sendo assim, podemos constatar que, passados alguns anos da criação das primeiras agências reguladoras, revela-se que a busca deste modelo organizativo destina-se a regular, antes do que especificamente serviços públicos desestatizados, as atividades que em geral possuem uma especial sensibilidade para a coletividade; atividades a respeito das quais os interesses são fortes, múltiplos e conflitantes, notadamente as que possuem elevado potencial de comoção da opinião pública, entre as quais incluem-se, obviamente, os serviços públicos. [110]

Também é importante destacar o aspecto técnico das agências reguladoras. Criam-se várias agências, cada uma responsável por um setor da economia, exatamente para que elas possam               ser tecnicamente especializadas e acompanhar a contínua mudança da realidade econômica. De fato, muitas atividades econômicas se aperfeiçoam rápida e constantemente, de modo que os agentes que se propõem a estipular regras para essas atividades têm que necessariamente ter domínio técnico sobre o que estão fazendo e estar a par das conjunturas que envolvem o setor, sob o risco de gerar crises econômicas expansíveis para outros mercados. Grande exemplo é o setor de telecomunicações, em que o avanço dos aparelhos celulares e da conexão à internet tem apresentado desafios ao quadro regulatório nacional, como explicam Gesner Oliveira e Thomas Fujiwara:

However, two aspects raise concerns about regulation in telecommunications in Brazil. First, technological advance and the development of the market have made the current regulatory framework obsolete. The increasing substitution of fixed telephones by mobile phones and the creation of the so-called third-generation telecommunications, linking voice, video and data transmission in one piece, for example, imposed new challenges to the creation of a regulatory framework. Regulation must be ruled by technological neutrality, allowing the market to select the appropriate technology. The rules of the game must adapt to the technological changes: regulation must not be divided into industries, but into services. [111][112]

Além disso, conforme mudam as circunstâncias, as regras estipuladas têm que ser atualizadas, senão poderão ser um entrave para o desenvolvimento do setor. No mesmo sentido Gabriel Placha escreveu:

(...) existe a necessidade de que as agências tenham a capacidade de acompanhar as constantes inovações tecnológicas do desenvolvimento da sociedade e das atividades econômicas, de modo a adotar as medidas compatíveis com as necessidades do setor regulado. (...) a lei impõe que seus dirigentes tenham a necessária formação e conhecimento específicos para exercer o cargo. (...) esta atuação técnica das agências não deve ser influenciada por critérios políticos, uma vez que a opção do agente regulador deve se basear em aspectos científicos (...). [113]

Por outro lado, embora autônomas e técnicas, cabe lembrar que as Agências Reguladoras estão limitadas a atuar dentro do espaço e na linha dos objetivos que a Constituição lhes estipulou.

Criadas no Brasil a partir da segunda metade da década de 1990, as Agências Reguladoras são ainda um fenômeno relativamente recente na história do país. 

A primeira fase do processo de privatização se beneficiou da liberalização do capital. A lei n. 8.031/90 deu ensejo a um programa de privatização, que visava reduzir a intervenção direta do Estado na economia. Essa fase foi de 1991 até 1994 e focou-se na privatização de empresas do setor industrial, como aço, pretroquímicos e fertilizantes. Essas privatizações não requeriam um ambiente institucional regulatório específico. [114]

A segunda fase de privatizações compreende o período de 1995-1998 e envolveu empresas ligadas à infra-estrutura. Foram privatizadas empresas dos setores de telecomunicações, eletricidade, transporte rodoviário. Nessa fase, devido à natureza dos setores envolvidos, exigiu a criação de instituições específicas voltadas à regulação dos setores privatizados. Foi então que surgiram muitas das agências reguladoras. [115]

Segundo Gremaud, Vasconcellos e Toneto Júnior:

A prestação de muitos serviços públicos que antes era da competência de empresas estatais passou para o setor privado. Entre eles podem-se citar o setor de transportes, com a privatização de várias rodovias, o setor de energia elétrica, de telecomunicações etc., antes monopólios do Estado. As privatizações e as concessões nesses setores trouxeram a necessidade de criar órgãos especiais de regulação para eles, devido às especificidades de cada setor, com tendências a forte concentração desses mercados. [116]

Em 26 de dezembro de 1996, foi criada a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), pela lei nº 9.427. A esta agência compete o exercício das funções inerentes ao Poder Concedente dos serviços públicos de energia elétrica e do uso de potenciais de energia elétrica.

Sobre o setor de energia elétrica, é interessante citar a informação que nos trazem Gesner de Oliveira de Thomas Fujiwara:

The supply crisis that culminated with the electrical energy rationing in 2001 reflects the failure of the policy adopted in the sector. However, such failure cannot be attributed only to the privatization process. By the time of the energy crisis, only 20% of the generation war privatized. Part of the problem is that the planned privatization process was not actually implemented. The lack of definition regarding crucial variables such as the price of natural gas prevented investment in the thermoelectricity from increasing. [117] [118]

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No ano seguinte, em 1997, foi criada a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), por meio do Decreto nº 2.338 e da Resolução ANATEL nº 270/01. Dentre as suas atribuições está implementar a política nacional de telecomunicações; expedir normas quanto à outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público; celebrar e gerenciar contratos de concessão e fiscalizar a prestação do serviço no regime público, aplicando sanções e realizando intervenções; normatizar os padrões dos equipamentos utilizados pelas prestadoras de serviços de telecomunicações e expedir normas que assegurem a interconexão entre as redes, como instrumento de garantir a concorrência do setor.

Segundo Gesner Oliveira e Thomas Fujiwara:

Telecommunications is a success case in terms of privatization and regulation in Brazil in comparison with the other sectors. The access of the Brazilian population to fixed and mobile phones has shown a strong growth in the previous years. Since ANATEL’s creation in 1997, the number of fixed telephone accesses more than doubled while the number of mobile phones in operation grew by more than 1500%. [119] [120]

A Agência Nacional do Petróleo (ANP) foi criada pela lei nº 9.478 no ano de 1997 e regulamentada pelo Decreto nº 2.455/98. Dentre os objetivos das políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia, previstos no artigo 1º da referida lei, pode-se citar: promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho e valorizar os recursos energéticos; proteger os interesses do consumidor quanto ao preço, qualidade e oferta dos produtos; proteger o meio ambiente; garantir o fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional; e utilizar fontes alternativas de energia, mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis.

Em 1999 foi criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), pela lei nº 9.782, regulamentada pelo Decreto nº 3.029/99 e pela Portaria ANVISA nº 593/00, que aprovou o Regimento Interno. Essa agência tem competência para intervir em setores econômicos privados que geram potencial risco à saúde pública, como medicamentos, tabaco, alimentos, bebidas, equipamentos de exames médicos, etc[121].

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi criada pela Lei nº 9.961 no ano 2000. Regulamentada pelo Decreto nº 3.327/00 e pela Resolução RDC (ANS) nº 593/00, tem como principal atribuição a regulação dos planos de saúde.

Ainda no ano 2000 foi criada a Agência Nacional de Águas (ANA) pela Lei nº 9.984, regulamentada pelo Decreto nº 3.692/00. Segundo o artigo 4º da lei que criou essa agência, cabe a ela a supervisão da implementação da Política Nacional de Recursos Hdricos por todos os elementos do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

No primeiro ano do século XXI, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) foram criadas pela Lei nº 10.233. A esfera de atuação da ANTT abrange o transporte ferroviário de passageiros e cargas ao longo do Sistema Nacional de Viação; a exploração da infra-estrutura ferroviária e o arrendamento dos ativos operacionais correspondentes; o transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; o transporte rodoviário de cargas; a exploração de cargas especiais e perigosas em rodovias e ferrovias. A ANTAQ, por sua vez, abrange a navegação fluvial, lacustre, de travessia, de apoio marítimo, de apoio portuário, de cabotagem e de longo curso; os portos organizados; os terminais portuários privativos; e o transporte aquaviário de cargas especiais e perigosas[122].

Ainda em 2001 foi criada a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) pela Medida Provisória nº 2.219. Esta agência tem como objetivo o fomento, a regulação  e a fiscalização da indústria cinematográfica e videofonográfica.

Em 2005 é criada a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) pela Lei nº 11.182 de 27 de setembro de 2005. A ANAC deve atuar como autoridade da aviação civil e adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do país.

As Agências Reguladoras até aqui citadas são as agências nacionais mais importantes. Além delas há algumas agências estaduais e municipais.             

4.1 AGÊNCIAS REGULADORAS E DEMOCRACIA             

É difícil definir democracia. O conceito vem mudando durante a história. [123]Pode-se afirmar que a democracia em seu estágio atual, mais do que corresponder à vontade da maioria deve respeitar o direito das minorias e os direitos e garantias fundamentais de cada indivíduo.

É essencial ainda que não se confunda democracia com eleição de toda e qualquer pessoa que vá tomar decisões públicas. Segundo Marçal há a “(...) necessidade de dissociação entre a vontade popular e o exercício de certas funções estatais” [124].

A democracia exige que: haja cargos cujo ocupante deve ser escolhido pela vontade popular; as decisões reflitam os interesses dos grupos sociais; as minorias tenham seus interesses assegurados; os valores fundamentais sejam realizados mesmo contra a vontade da maioria ou de extratos significativos da população. [125]

Não há um modelo único ou um modelo certo de democracia. Cada sociedade constrói seu modelo de democracia, que vai se desenvolvendo conforme circunstâncias próprias. O regime político de um país vai refletir as peculiaridades de sua população e a luta por direitos fundamentais vai depender do estágio de conquistas por esses direitos já alcançado pelo povo. Como diz Mário Lúcio Quintão Soares:

O Estado democrático de direito, ao pretender a real concretização dos direitos fundamentais e a efetivação da cidadania plena, deve ter como desafio domesticar o sistema econômico capitalista, reestruturando-o, em sua essência. Com este intuito, deve-se “refrear” o uso do poder administrativo, sob dois pontos de vista: o da eficácia, que lhe permita recorrer a formas mitigadas de regulação indireta, e o da legitimidade, que lhe permita retroligar-se ao poder comunicativo e imunizar-se contra o poder legítimo. [126]

Não se deve adotar um modelo ideal (e autoritário) de Democracia. A avaliação da Democracia de um país deve ser feita a partir da análise da existência de “(...) instrumentos que assegurem a preponderância da vontade da maioria, mas com garantias de realização dos valores e princípios fundamentais” [127].

A Democracia está ligada ao modo de organização do corpo político (estruturas estatais e processos decisórios vigentes) e seu núcleo baseia-se na existência de: (i) mandatos eletivos temporários para os cargos de maior importância; (ii) instrumentos de garantia e controle do exercício do poder.

A eleição popular não é a única forma de legitimar democraticamente o exercício de um cargo público. Não basta ser eleito e atuar contra a vontade popular. A legitimação deve ser pelo título e também pelo modo de exercício do poder. Além disso, mecanismos de participação popular também são muito importantes e isso a agências reguladoras têm, como ensina Alexandre Santos Aragão:

No que toca especificamente às agências reguladoras, os mecanismos de participação popular são notáveis, uma vez que a maior parte das leis que as instituíram fixam a necessidade de realização de consultas e/ou audiências públicas prévias à tomada de decisões, inclusive normativas, pelas agências reguladoras (verbi gratia, o art. 18 da Lei n. 9.478/97 – Lei do Petróleo). [128]

Há cargos em que a investidura deve ocorrer pelo mérito. Marçal esclarece:

Não há déficit democrático na instituição estatal constituída sem participação direta do povo quando a função consista precisamente em neutralizar a influência da vontade da maioria da população e assegurar a realização dos valores e princípios fundamentais.[129]

As agências reguladoras surgiram, dentre outros, como aspiração a uma melhora do índice democrático no Brasil. [130] A atribuição de competências normativas e executivas a órgãos eleitorais também pode gerar riscos aos valores fundamentais (decisões inadequadas, mas que procuravam agradar ao público eleitor) na medida em que estão mais sujeitos a influências políticas dos grupos dominantes. Como indica Marilena Chauí ao fazer o seguinte comentário sobre a democracia e suas falhas:

A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestando-se no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas (e não políticas) para os problemas sociais. Vista por esse prisma, é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico que preside a idéia de direitos do cidadão. Em outras palavras, desde a Revolução Francesa de 1789, essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população. A democracia é formal, não é concreta. [131]

Segundo Marçal Justen Filho, a instituição de agências reguladoras reflete: (i) ampliação da complexidade do sistema de freios e contrapesos; (ii) visa atenuar a concentração de poderes. [132]

   Os instrumentos clássicos da democracia não se mostraram suficientes para assegurar a compatibilidade entre os interesses da sociedade e a atuação dos representantes eleitos pelo povo. [133] Por isso, entre outros, adotou-se novos mecanismos para garantir a legitimidade democrática das agências, como diz Alexandro Santos Aragão:

Podemos inferir do fato de as leis das agências reguladoras imporem a adoção de modernos mecanismos de participação procedimental, a necessidade de que fosse suprido o déficit democrático co-natural a todas as agências reguladoras que, além de amplos poderes normativos, têm os seus dirigentes resguardados da livre exoneração pelos titulares de poder político democraticamente eleitos. [134]

Marçal também enumera algumas inovações dos tempos atuais para melhorar a democracia: agências reguladoras; princípio do devido processo administrativo; proteção aos interesses coletivos e difusos; ampliação da iniciativa popular no processo legislativo; submissão das decisões político-administrativas relevantes a consultas e audiências públicas, etc. [135]

Há um déficit democrático do sistema como um todo. Esse déficit já existia antes das agências. Estas podem melhorar ou piorar a situação.

Uma instituição estatal democrática exige e pressupõe instituições cuja composição e funcionamento escape do princípio da eletividade. Como ensina Alexandre Santos Aragão:

Estes poderes neutrais do Estado, especialmente as agências reguladoras independentes, infensos ao menos imediatamente às mudanças político-eleitorais, longe de serem antinômicos à democracia em razão da possibilidade de contradição com as forças políticas majoritárias, asseguram o pluralismo no seio do Estado sem retirar totalmente os poderes do Chefe do Poder Executivo e do Poder Legislativo. São, assim, uma feliz combinação do pluralismo (propiciado por sua autonomia reforçada) com o princípio majoritário (os vínculos que mantêm com o Poder Legislativo e com a Administração Central). [136]

Agência reguladora e Democracia são conceitos inter-relacionáveis. Ao mesmo tempo, é possível a existência de uma agência não democrática no seio de um Estado democrático. Isso ocorre quando os critérios de organização e funcionamento da agência atuarem contra os princípios e valores fundamentais.

A agência não será democraticamente legítima se ela ampliar as deficiências do sistema político. As agências devem assegurar um aumento do nível de democracia do sistema em seu conjunto.

4.2 O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

O poder normativo das Agências Reguladoras tem sido discutido por diversos autores. Há livros, teses, dissertações e artigos científicos a respeito do tema.

Para deixar claro o contexto da discussão, é de grande auxílio a abordagem panorâmica de Celso Antônio Bandeira de Mello a respeito da intervenção do Estado na economia, apontando que esta pode ocorrer de três formas:

(a) Ora dar-se-á através de seu poder de polícia, isto é, mediante leis e atos administrativos expedidos para executá-las, como agente normativo e regulador da atividade econômica (...); (b) ora ele próprio, em casos excepcionais, como foi dito, atuará empresarialmente, mediante incentivos à iniciativa privada; e (c) ora o fará mediante incentivos à iniciativa privada, estimulando-a com favores fiscais ou financiamentos, até mesmo a fundo perdido.[137]

Neste trabalho foca-se no primeiro modo de intervenção apontado por Bandeira de Mello, que trata da regulação estatal da economia e, dentro desse âmbito de pesquisa, delimita-se o estudo ao poder normativo das Agências Reguladoras.

Alexandre Mazza, ao propor um limite ao poder normativo das Agências Reguladoras, deixa claro que estas não têm competência para emanar normas de natureza constitucional, legislativa ou privada. Segundo o autor:

As considerações anteriormente apresentadas permitem concluir, com base nos sucessivos cortes semânticos no conceito de norma jurídica, que o poder normativo das agências reguladoras caracteriza-se como uma competência essencialmente administrativa.[138]

Mazza ainda desenvolve seu raciocínio ao tratar das espécies de normas jurídico administrativas. Há as normas abstratas ou concretas; e as gerais, plurais ou individuais.

Baseado na doutrina de Norberto Bobbio, Mazza [139] diz que normas abstratas são aquelas aplicáveis a um número indeterminado de casos. As concretas, por sua vez, regulam uma ação singular. As gerais aplicam-se a um número indeterminado ou indeterminável de pessoas. As plurais aplicam-se a um grupo determinado e numericamente delimitado de sujeitos. E as individuais se aplicam a uma única pessoa. A partir disso, o autor afirma:

(...) é vedado às agências reguladoras – sob pena de flagrante de inconstitucionalidade – editar normas administrativas gerais e abstratas, já que a função regulamentar, entre nós, foi conferida somente aos chefes do Executivo.[140]  

Romeu Felipe Bacellar Filho trata do tema com cautela e contrapõe eventual capacidade inovativa das Agências Reguladoras com o princípio da separação de poderes, sendo este cláusula pétrea da Constituição Federal. Sua posição fica clara no seguinte trecho de sua autoria:

Concordamos com Leila CUÉLLAR, quando esta autora afirma que a natureza da competência legislativa das agências reguladoras no Brasil não retrata e nem importa em delegação de poderes legislativos. A própria concepção constitucional do ato de delegar (outorga excepcional e temporária) não seria compatível com a natureza das agências reguladoras.[141]

Bacellar Filho [142] ainda ressalta que as Agências Reguladoras têm sim a tarefa de expedir normas sobre a prestação de serviços públicos ou sobre o exercício de atividades econômicas, mas sempre subordinada aos preceitos legais e regulamentares.

Marília de Ávila e Silva Sampaio, em posição semelhante, afirma que apesar de se reconhecer às Agências Reguladoras um poder normativo, deve este ser limitado. Nas palavras da autora, “(...) a delegação de competência normativa se torna legítima desde que respeitados os estritos limites estabelecidos na lei instituidora da agência, afastando qualquer afronta ao texto constitucional”.[143]

Sampaio esclarece a sua opinião sobre a questão no seguinte trecho:

No que tange à existência do poder normativo, a doutrina reconhece, de forma majoritária, a existência do mesmo, desde que condicionado aos estritos limites estabelecidos na lei criadora da agência. Trata-se, em verdade, de uma técnica de delegação de competências legislativas utilizadas não só em outros países, mas com diversos exemplos no Brasil, mesmo antes da Constituição de 1988.[144]

Vera Monteiro, por sua vez, defende um poder normativo mais amplo para as Agências Reguladoras. A autora acredita que a estrutura do poder legislativo não é adequada para a elaboração de todas as normas. Normas técnicas e que exigem agilidade e dinamicidade não deveriam ter que necessariamente passar pelo crivo do legislativo, mais lento e menos técnico pela sua própria natureza (o processo democrático exige discussões e ponderações de interesses políticos, nem sempre atendendo a critérios técnicos). Para esse tipo de normas, as Agências Reguladoras ofereceriam uma estrutura mais adequada.

Com relação ao argumento de que a legalidade deve ser respeitada em nome da segurança jurídica, Vera Monteiro aponta que:

O apego à legalidade estrita, como visto, não é garantia contra abusos do exercício indevido do poder. A própria França, que indica em sua Constituição as matérias sujeitas à lei (Parlamento) e as sujeitas ao regulamento, entendido naquele país como norma primária, não transforma aquele país em um Estado autoritário ou menos democrático. Algumas normas, em razão de seu conteúdo, têm a lógica do debate e da conciliação de interesses, própria do ambiente legislativo. Outras, todavia, não envolvem os conflitos típicos da sociedade plural (grifo nosso).[145]  

A autora opina, assim, no sentido de que a divisão de poderes e a segurança jurídica não derrubam totalmente a possibilidade e a legitimidade de a Administração Pública inovar em algumas matérias legislativas, quando a natureza específica destas assim o exigir.

Silvio Wanderley do Nascimento Lima, por sua vez, defende que:

Em relação à função legiferante, entendemos que a atuação normativa ampliada das agências reguladoras não lhes confere independência em relação ao Poder Legislativo, eis que os atos gerais e abstratos por estas expedidos não poderão conflitar com o regramento constitucional ou legal. É que a garantia fundamental inserta no princípio da legalidade (art. 5, II, da CRFB), por mais mitigada que seja sua aplicação no caso concreto, nunca poderá concorrer para assegurar uma capacidade normogenética às agências reguladoras que não seja previamente delimitada pelos órgãos legiferantes. [146]

Já na opinião de Sérgio Andre R. G. da Silva, a delegação de poder normativo para as agências reguladoras é possível, mas é preciso que requisitos procedimentais sejam respeitados para que haja legitimidade democrática. Ele aponta os seguintes requisitos: previsão de limites ao exercício da competência delegada em ato delegatório específico; revogabilidade, indelegabilidade e reserva de iguais atribuições pelo Poder delegante; e possibilidade de controle. Nas palavras do autor:

Nota-se, portanto, que a par de uma legitimidade abstrata do exercício do poder, o Estado Democrático de Direito demanda uma legitimação concreta deste, a qual é alcançada por intermédio da procedimentalização de deteminadas atuações estatais ou a existência de processos de controle de tais atividades, com a viabilização da participação dos administrados na produção de alguns atos a serem praticados pelas autoridades administrativas, os quais venham a interferir em sua esfera jurídica. [147]

Como se pode perceber, o assunto é polêmico. Dos autores selecionados nesta revisão bibliográfica houve uma prevalência dos que defendem uma maior limitação do poder normativo das Agências Reguladoras, mas o debate ainda persiste, como bem escreveu Vera Monteiro:

Serão nos casos concretos que se verificará os limites para o exercício da competência normativa por parte da Administração Pública. Em muitos casos referidos limites estão estampados em formulações principiológicas. Se, para alguns, isso é sinônimo de segurança, para outros, como é o caso de Paulo Otero, é fator de incerteza, na medida em que os conflitos tendem a se potencializar, promovendo o chamado governo dos juízes. (grifo nosso).[148]

Assim, apesar de ser grande a importância de se buscar uma definição teórica acerca do poder normativo das agências reguladoras é crucial que não se esqueça o lado prático. Cada agência tem suas peculiaridades, pois regulam setores diferentes e bastante específicos, sendo muitas vezes inviável generalizar uma solução para todas. No momento do exercício do poder normativo, seja em que grau for, dever-se-á analisar caso a caso se o limite está sendo extrapolado ou não.

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Sobre o autor
Sérgio Eidi Yamagami Sawasaki

Analista Judiciário - TJPR Pós-graduado em Direito Público pela UNIBRASIL. Graduado em Direito pela PUC-PR. Graduado em Economia pela UFPR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAWASAKI, Sérgio Eidi Yamagami. Estado regulador e democracia:: o poder normativo das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4064, 17 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31012. Acesso em: 18 nov. 2024.

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