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O sistema acusatório e os arts. 212 e 310, II, do CPP

07/09/2014 às 14:18
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A alteração no CPP, pela Lei nº 11.690, buscou a necessária aproximação/adequação do processo penal vigente ao sistema acusatório, de modelo democrático.

1). Sistema acusatório

No sistema acusatório, que tem origem na Grécia Antiga e nítida feição democrática, o imputado é sujeito de direito, e não simples objeto de persecução, daí ser presumido inocente, até prova em contrário, do que decorre, como regra, o direito de aguardar o término dos rituais judiciários em liberdade, dentre outras garantias.

Caracteriza-se pela irrenunciável repartição de funções entre órgãos distintos, de maneira que caberá ao Ministério Público (em regra, no nosso modelo processual) a função de acusar, porquanto titular do direito de ação na generalidade dos casos; a defesa deve ser efetiva e desempenhada por profissional habilitado (advogado ou Defensor Público); a presidência do processo e o julgamento final são da competência do Poder Judiciário, por seus Magistrados.

Tem seu desenvolvimento delineado, dentre outros, pelos princípios da dignidade da pessoa humana; legalidade; oficialidade; juiz natural; devido processo legal; publicidade; igualdade processual; iniciativa das partes; ampla defesa; contraditório; verdade real; presunção de inocência; imparcialidade do juiz e fundamentação das decisões judiciais.

Ao tratar da distinção entre o processo acusatório e o inquisitivo, observou Geraldo Prado que “Este último se satisfaz com o resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir que define o horizonte do mencionado processo” (Sistema acusatório, 3. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 104).


2). Artigo 212 do Código de Processo Penal

A Lei n. 11.690/2008 modificou a redação do art. 212 do CPP.

Desde então se estabeleceu profunda discussão na doutrina e na jurisprudência a respeito da ordem e da forma que se deve adotar na inquirição de testemunha em juízo.

Segundo pensamos, no momento em que adotou o sistema do direct examination (de inquirição direta pelas partes), o legislador afinou-se um pouco mais com o sistema processual de modelo acusatório, de modo que sua atividade passou a ser complementar na colheita da prova. Isso não quer dizer que está afastado o sistema presidencialista, até porque é o juiz quem preside a audiência e direciona os trabalhos, podendo, inclusive, indeferir perguntas etc.

Qualificada a testemunha e resolvida eventual impugnação a seu depoimento (contradita ou arguição de defeito), o juiz deve passar a palavra à parte que arrolou a testemunha para que faça diretamente suas perguntas. Em seguida, a parte contrária poderá igualmente fazer as suas.

Encerradas as perguntas das partes, caberá ao juiz complementar a inquirição, oportunidade em que indagará a testemunha sobre pontos que devam ser esclarecidos.

No modelo vigente, tal como sintetizou Eugênio Pacelli, “As partes iniciam a inquirição, e o juiz encerra” (Curso de processo penal, 16. ed., São Paulo, Atlas, 2012, p. 414).

Note-se que o parágrafo único do art. 212 é expresso ao afirmar que a atividade do juiz é de natureza complementar (... o juiz complementará a inquirição), e a lei não mudou para ficar tudo como estava.

A guinada legal objetivou um maior distanciamento do juiz com relação à gestão da prova, numa verdadeira adequação ao sistema acusatório, vale dizer, a um processo de partes.

É óbvio, e nunca se olvide: o juiz é o destinatário final da prova e sobre ela poderá buscar lançar luz relativamente aos temas que lhe causem perplexidade. Porém, nos termos do atual regramento, a atividade judicial no campo da prova está delineada pela complementaridade.

Para não expor o processo a nulidade absoluta, é necessário que se observe o disposto no art. 212 do CPP, em homenagem ao princípio do devido processo legal, que se apresenta sob as vertentes da garantia ao procedimento integral e da garantia ao procedimento tipificado a que Antonio Scarance Fernandes se refere com absoluta propriedade (Processo penal constitucional, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 123-124).

Embora admita a incidência de nulidade, a jurisprudência de ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que se trata de nulidade relativa, a demandar demonstração de prejuízo efetivo: HC 107.318/SP, 1ª T., rel. Min. Marco Aurélio, rela. p/ o Acórdão Mina. Rosa Weber, j. 5-6-2012, DJe 204, de 18-10-2012; HC 112.217/SP, 2ª T., rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13-11-2012, DJe 240, de 7-12-2012; HC 110.623/DF, 2ª T., rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13-3-2012, DJe 61, de 26-3-2012; HC 115.336/RS, 2ª T., rela. Mina. Cármen Lúcia, j. 21-5-2013, DJe 105, de 5-6-2013, Informativo STF n. 707.

Na mesma linha segue o entendimento da 5ª e da 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça: HC 217.691/SP, 5ª T., rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 18-9-2012, DJe de 21-9-2012; HC 278.673/RS, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, j. 20-5-2014, DJe de 26-5-2014; AgRg no Ag 1.420.725/SC, 5ª T., rela. Mina. Regina Helena Costa, j. 8-5-2014, DJe de 14-5-2014; HC 230.277/SP, 6ª T., rel. Min. Og Fernandes, j. 21-8-2012, DJe de 26-11-2012; RHC 38.435/SP, 6ª T., rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 6-5-2014, DJe de 15-5-2014; AgRg no AREsp 430.876/RS, 6ª T., rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 13-5-2014, DJe de 2-6-2014.

Há que se considerar, entretanto, que na hipótese o prejuízo é indemonstrável. Não se pode exigir do acusado a demonstração, na prática impossível, do prejuízo acarretado à sua defesa em razão do desrespeito, por parte do Estado, às regras do procedimento tipificado.


3). Conversão ex-officio da prisão em flagrante em prisão preventiva

De início, uma observação se impõe: muito embora o inc. II do art. 310 do CPP se refira à conversão da prisão em flagrante em preventiva, a nosso ver o correto seria referir à decretação desta última, visto que estamos diante de institutos distintos, com regras próprias e finalidades que não se confundem, não sendo caso, portanto, de conversão, mas de decretação.

A decretação da prisão preventiva ex-officio – pelo juiz – continua a ser permitida na legislação processual penal brasileira, contudo, apenas no curso do processo; na fase judicial.

Conforme dispõe o art. 310, II, do CPP, o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, que lhe será encaminhado em até 24 horas após a realização da prisão, não sendo caso de relaxamento, liberdade provisória com ou sem fiança, cumulada ou não com a aplicação de medida cautelar diversa da prisão, deverá, em decisão fundamentada, converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código.

Mesmo antes das modificações impostas pela Lei n. 12.403/2011, sempre entendemos que a prisão em flagrante não poderia ultrapassar o limite temporal que vai de sua efetivação até a comunicação ao juiz competente, providência obrigatória que deve ocorrer nas 24 horas seguintes à prisão-captura.

Essa forma de pensar encontra sua fundamentação no art. 5º, LXVI, da CF, segundo o qual ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Do art. 5º, LXI, da CF, retiramos autorização para que pessoas possam ser presas em flagrante, mas a interpretação da regra deve ser feita em harmonia com o citado inc. LXVI, de onde se extrai que, após a prisão em flagrante, ninguém poderá continuar preso e, portanto, ser levado ao cárcere, se cabível a liberdade provisória, daí a necessidade de análise dessa situação jurídico-constitucional já no momento do controle jurisdicional imediato, a demonstrar absoluta impropriedade em se afirmar a possibilidade de que alguém possa permanecer, a partir desse instante, preso por força do flagrante.

A teor do disposto no art. 310, nesse momento do controle jurisdicional, só poderá subsistir prisão se presentes os requisitos da custódia preventiva, que então deverá ser decretada.

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A possibilidade jurídica de alguém sofrer restrições à sua liberdade por força de prisão em flagrante sempre esteve restrita e delimitada no tempo. Nunca pode ultrapassar o lapso temporal que medeia entre a prisão-captura e sua apreciação pelo juiz competente.

Isso sempre esteve muito claro no texto constitucional e também no CPP.

Em relação a isso, o legislador ordinário foi ainda mais enfático, já que o atual art. 310 do CPP evidencia claramente que o juiz deverá, no momento do controle jurisdicional, trabalhar com as variantes indicadas, dentre as quais encontramos a decretação da prisão preventiva.

Necessário lembrar, contudo, que o material probatório ordinariamente recolhido pela polícia por ocasião do flagrante nem sempre, ou quase nunca, disponibiliza elementos concretos suficientes para a decretação da prisão preventiva, mesmo diante de casos graves, em que a decretação se apresenta medida de fato imprescindível, o que está a determinar a emergência de uma nova e mais abrangente postura investigativa já nesse momento proeminente, por se tratar de dedicação que interessa não só à polícia e ao Ministério Público, mas a toda a sociedade.

Não é difícil verificar no art. 283, § 2º, do CPP (regra geral), a impossibilidade jurídica de decretação de prisão preventiva ex-officio, na fase de investigação.

De igual maneira, no art. 311 do CPP (tipo específico), o legislador teve por bem reiterar a vedação, que atende ao modelo de processo penal acusatório.

Nada obstante a clareza dos dispositivos citados, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido conversão (rectus: decretação) ex-officio de prisão em flagrante em prisão preventiva, tal como apontam as ementas que seguem transcritas:

“O Juízo processante, ao receber o auto de prisão em flagrante, verificando sua legalidade e inviabilidade de sua substituição por medida diversa, deverá convertê-la em preventiva ao reconhecer a existência dos requisitos preconizados nos arts. 312 e 313, do CPP, independente de representação ou requerimento” (STJ, RHC 47.149/RS, 5ª T., rel. Min. Moura Ribeiro, j. 8-5-2014, DJe de 14-5-2014).

“Ao homologar a prisão em flagrante, existindo a necessidade da custódia cautelar e presentes os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal, o magistrado deve decretar a prisão preventiva, mesmo sem provocação” (STJ, RHC 38.307/MG, 5ª T., rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 20-8-2013, DJe de 5-9-2013).

“Conforme a novel redação do art. 310 do CPP, o Magistrado, ao tomar ciência da prisão em flagrante, deverá, de modo fundamentado, relaxar a custódia ilegal, conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, ou decretar a segregação preventiva do agente. Mostra-se despicienda a existência de representação ministerial ou do agente policial para a conversão da prisão em flagrante em preventiva, devendo o Juiz, mesmo sem provocação, manter a segregação cautelar sempre que a medida mostrar-se necessária, nos termos do art. 312 do CPP, não se vislumbrando qualquer nulidade no decisum de 1º grau, já que o Julgador agiu em estrito cumprimento do disposto na lei adjetiva penal” (STJ, HC 226.492/RS, 5ª T., rel. Min. Gilson Dipp, j. 27-3-2012, DJe de 9-4-2012).

“Desnecessária a existência de representação do agente policial ou da oitiva do Parquet, pois, existindo a necessidade da custódia preventiva respeitado os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, deve o magistrado, mesmo sem provocação, decreta-la. Não há que falar em nulidade no decisum de primeiro grau pela ausência de representação policial ou ministerial, na medida em que se cuida de mera conversão da prisão em flagrante em preventiva, em exato cumprimento do dispositivo legal” (STJ, HC 263.320/MS, 5ª T., rela. Mina. Marilza Maynard, j. 28-5-2013, DJe de 3-6-2013; STJ, RHC 43.360/MG, 5ª T., rela. Mina. Marilza Maynard, j. 25-2-2014, DJe de 11-3-2014).

“Não existe nenhuma nulidade em converter de ofício o flagrante em prisão preventiva quando presentes os requisitos autorizadores da segregação cautelar, nos termos dos arts. 310, inciso II, e 311 do Código de Processo Penal. Precedentes” (STJ, RHC 45.203/MG, 5ª T., rela. Mina. Regina Helena Costa, j. 13-5-2014, DJe de 19-5-2014).

No mesmo sentido: STJ, RHC 43.213/MG, 5ª T., rela. Mina. Laurita Vaz, j. 8-4-2014, DJe de 15-4-2014; STJ, HC 281.756/PA, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, j. 15-5-2014, DJe de 22-5-2014.


4). Conclusão

As alterações levadas a efeito não traduzem despretensiosa modificação de regras processuais.

A lei não mudou para permanecer tudo como estava, mas para buscar a necessária aproximação/adequação do processo penal vigente ao sistema acusatório, de modelo democrático.

Sem a imprescindível mudança de foco e de pensamento, não basta a alteração do texto normativo.

É preciso prestigiar o sistema processual adotado, com o final e nobre objetivo de assegurar direitos fundamentais.

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Sobre o autor
Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva); Estatuto do Desarmamento (Saraiva); Crimes de Trânsito (Saraiva); Crimes Ambientais (Saraiva); Crimes contra a Dignidade Sexual (Saraiva); Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas (Saraiva); dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCÃO, Renato. O sistema acusatório e os arts. 212 e 310, II, do CPP. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4085, 7 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31532. Acesso em: 19 abr. 2024.

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