Resumo: Embora o Judiciário brasileiro ainda seja concebido como a soma de polos desconexos, em que cada ator do sistema opera sem tomar conhecimento da atividade alheia, é necessário que se reconheça a harmonia e hierarquia que deve reger a dinâmica jurisdicional. Não é por outra razão que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, sobretudo em recurso extraordinário, deve ser respeitada pelos demais julgadores. A repercussão geral, requisito de admissibilidade do extraordinário, garante que a razão de decidir do julgamento seja transcendente. Nessas condições, a decisão da mais alta corte do país possui os contornos de precedente com efeito vinculante. Esse efeito, no entanto, não encontra instrumento capaz de efetivá-lo na prática. Assim, considerando a falta de efetividade das vias recursais, assoma-se como solução a reclamação constitucional, de via direta e célere.
Palavras-chave: Recurso extraordinário; repercussão geral; precedente; efeito vinculante; reclamação constitucional.
Sumário: Considerações Iniciais. 1) Do efeito vinculante das decisões proferidas em recurso extraordinário. 2) Da reclamação em face de decisão que desrespeita precedente oriundo de recurso extraordinário 2.1) Da posição do Supremo Tribunal Federal e de sua necessária superação. 2.2) Uma solução lege lata. Conclusões. Referências bibliográficas.
Considerações Iniciais
Tal qual é notório, tramita hoje no Congresso Nacional o Projeto do Novo Código de Processo Civil[2], cujas pretensas disposições põem luz sobre um tema até então desconhecido e, não obstante, deveras inquietante: o precedente judicial.
Em linhas muito gerais, de acordo com o que se pretende positivar por meio do novo diploma, a ratio decidendi[3] de determinadas decisões proferidas por tribunais, assim como suas súmulas, deverão ser obrigatoriamente seguidas pelos órgãos jurisdicionais inferiores sempre que o quadro fático do caso a ser julgado guardar semelhança com o daquele que originou a decisão paradigma. É dizer, em dadas hipóteses, o Direito pátrio emprestará aos precedentes judiciais efeito vinculante (binding authority), à semelhança do que ocorre nos países de tradição jurídica anglo-saxônica (common law).
O projeto do novo Código de Processo Civil procurou enfrentar dois dos maiores males que afligem atualmente a sociedade brasileira na seara jurídica: a fragmentação e a instabilidade da jurisprudência.
Com efeito, além do comando geral de que “os tribunais velarão pela uniformização e pela estabilidade de sua jurisprudência”, o projeto do aprovado pelo Senado delineia caminhos para que essa determinação seja cumprida.[4]
Art. 521. (...)
I – os juízes e tribunais seguirão as decisões e os precedentes do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos e os precedentes em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
III – os juízes e tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
IV – não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e tribunais seguirão os precedentes:
a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de constitucionalidade;
b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional;
V – não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os juízes e órgãos fracionários de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal seguirão os enunciados de suas respectivas súmulas e, não havendo estes, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem;
VI – os juízes e os órgãos fracionários de tribunal de justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem.
No entanto, engana-se quem pensa que apenas a partir da vigência da novel legislação é que a ordem jurídica nacional conceberá precedentes judiciais vinculantes. É possível, hoje, lege ferenda, identificar em nossa dinâmica processual pronunciamentos judiciais que ostentam esse condão:
No Brasil, há algumas hipóteses em que os precedentes têm força vinculante, é dizer, em que a ratio decidendi contida na fundamentação de um julgado tem força vinculante: (i) a “súmula vinculante” (...); (ii) o entendimento consolidado na súmula de cada um dos tribunais tem força vinculante em relação ao próprio tribunal; (iii) (...) os precedentes oriundos do Pleno do Supremo Tribunal Federal em matéria de controle difuso de constitucionalidade (...); (iv) decisão que fixa a tese para os recursos extraordinários ou especiais repetitivos (...).[5]
E não é outro o status que possui a decisão proferida em sede de recurso extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal.
Conforme adiante se elucidará, sempre que o Pretório Excelso adota determinada razão de decidir em processo em que se reconheceu a repercussão geral – requisito de admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, §3°, da Constituição Federal e art. 543-A do Código de Processo Civil vigente) –, essa mesma razão de decidir deve vincular todos os demais órgãos jurisdicionais.
Noutros termos, o mesmo plexo de efeitos, em relação ao Judiciário, que é conferido de forma expressa pela Constituição Federal às decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, §2°) e às súmulas vinculantes (art. 103-A) deve ser outorgado às decisões prolatadas em recurso extraordinário, à vista da transcendência de seus motivos determinantes.
Em que pese essa hipótese de efeito vinculante do precedente ser unívoca na doutrina de vanguarda, ela carece de instrumento processual que lhe garanta efetividade. É nesse fulcro que se assoma a representação constitucional como meio a assegurar o poder de vinculação da decisão proferida em sede de recurso extraordinário.
DO EFEITO VINCULANTE DAS DECISÕES PROFERIDAS EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO
É o recurso extraordinário meio excepcional de impugnação de decisões judiciais, cujo julgamento compete ao Supremo Tribunal Federal. Trata-se de recurso de fundamentação vinculada, nos termos do art. 102, inciso III, da Constituição Federal:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...)
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
A par disso, a Emenda à Constituição n°45, de dezembro de 2004, acrescentou ao art. 102 do diploma constitucional o seguinte parágrafo:
§ 3º. No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
Em consequência, entre outras disposições, incluiu-se no Código de Processo Civil o art. 543-A[6], bem assim foi inserido no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal o art. 322[7].
Desse modo, com assento constitucional e regulamentação legal e infralegal, estabeleceu-se em nosso ordenamento o instituto da repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.
Teve-se por muito tempo que o único escopo da inovação era barrar o número de processos que subiam à Suprema Corte, abarrotando-a sobremaneira e, nessa medida, impedido que a prestação jurisdicional se desse de forma célere e efetiva[8]. Entendia-se que o mecanismo de seleção de casos socialmente relevantes servia exclusivamente à finalidade de impedir que o Supremo fosse mero revisor de casos ordinários, em afronta às suas atribuições de corte constitucional.
Essa linha de intelecção, contudo, não foi capaz de identificar a plenitude do propósito do instituto.
Condicionar o conhecimento do recurso extraordinário à existência, no caso concreto, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa, é tornar evidente que sua solução não pode ficar adstrita ao círculo inter partes. Os motivos determinantes da decisão em repercussão geral devem ser, pois, transcendentes. Portanto, não se está diante de instituto voltado tão somente à finalidade de embrincar a atuação do Supremo Tribunal Federal e propiciar o desafogamento do número de processos na corte.
A instituição do requisito da repercussão geral é inequívoco mecanismo de seleção de casos e, “onde há técnica de seleção de casos, deve haver necessariamente eficácia vinculante dos precedentes, sob pena de evidente impropriedade lógica"[9].
Não há como conciliar a técnica de seleção de casos com a ausência de feito vinculante, já que isso seria o mesmo que supor que a Suprema Corte se prestaria a selecionar questões constitucionais caracterizadas pela relevância e pela transcendência e, ainda assim, permitir que estas pudessem ser tratadas de formas diferentes pelos diversos tribunais e juízo inferiores. A ausência de efeito vinculante constituiria mais uma afronta à Constituição Federal, desta vez à norma do art. 102, §3º, que deu ao Supremo Tribunal Federal a incumbência de atribuir – à luz do instituto da repercussão geral – unidade ao direito mediante a afirmação da Constituição.[10]
Assim, o efeito vinculante da decisão é corolário inafastável do reconhecimento da repercussão geral no caso apreciado, nada obstante a falta de expressa disposição nesse sentido.
Embora o constituinte não tenha expressamente consignado, tal como o fez para o enunciado sumular (...), a única exegese possível do conjunto de normas relacionadas à repercussão geral é a de que a orientação do STF sobre o tema possui efeitos vinculantes sobre as demais instâncias.[11]
Não bastasse, ainda que não existisse entre nós o instituto da repercussão geral, para que houvesse a mínima harmonia entre as competências jurisdicionais delineadas no texto constitucional, seria indispensável que a razão de decidir das decisões proferidas pelo Pretório Excelso fossem seguidas pelos demais órgãos investidos de jurisdição, independentemente de qualquer positivação que assim determinasse.
Nas palavras da Ministra Ellen Gracie, o sistema Judiciário não é “um conjunto de instâncias divorciadas entre si, formando verdadeiro arquipélago”[12]. Não foi à toa que o constituinte estabeleceu um tribunal em posição superior à dos outros órgãos julgadores. Fosse para que qualquer julgador exercesse seu mister sem prestar respeito às decisões dos demais, por certo não haveria hierarquia entre os órgãos jurisdicionais.
De mais a mais, do mesmo modo que se infere da estrutura constitucional de competências um princípio do duplo grau de jurisdição, depreende-se da mesma arquitetura o efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.
A divergência de ordem pessoal não pode nunca ser obstáculo à unidade do Direito em termos nacionais; mais ainda se já existe posicionamento consolidado na instância máxima da estrutura jurisdicional e se o conjunto de norma direciona para que os juízes e tribunais adotem a tese consubstanciada no caso representativo da controvérsia.[13]
Segue a mesma toada Gilmar Ferreira Mendes, hoje também Ministro do Supremo Tribunal Federal, para quem:
O recurso extraordinário deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). (...)
A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato – não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos.[14]
O entendimento aqui esposado ganha ainda mais robustez quando se trata de recurso extraordinário com vistas à realização do controle difuso de constitucionalidade de normas.
Luiz Guilherme Marinoni sustenta ferrenhamente que não há razão para atribuir efeito vinculante às decisões decorrentes do controle concentrado (art. 102, §2°, da Constituição) e não o fazer em relação ao controle difuso, levado a efeito por meio do recurso extraordinário. Segundo o autor, em ambos os casos o efeito vinculante decorre de idêntico fundamento: a “necessidade de se dar força aos fundamentos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal”[15].
Trata-se, assim, de alcançar um objetivo que é imprescindível à racionalidade de qualquer sistema que dá aos seus juízes o poder de realizar o controle da constitucionalidade diante dos casos concretos. Não há como atribuir este poder aos juízes sem vinculá-los às decisões da Suprema Corte. O controle difuso exige que os precedentes da Corte que dá a última palavra acerca da questão constitucional sejam obrigatórios. Não se trata de mera opção técnica, ainda que ótima à eficiência da distribuição da justiça, mas de algo que, quando ausente, impede o próprio funcionamento do controle difuso. De modo que admitir,no atual estágio do direito brasileiro, controle difuso sem vinculação dos órgãos judiciários aos precedentes constitucionais constitui equívoco imperdoável.[16]
Ainda nesse ponto, deve-se ressalvar que o reconhecimento de efeito vinculante às decisões do controle difuso de constitucionalidade não encontra óbice no art. 52, X, da Constituição Federal, segundo o qual compete ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Entendia-se, diante dessa disposição, que se o constituinte elegeu ente para dar efeitos gerais às decisões definitivas em recurso extraordinário, fê-lo porque, obviamente, elas não teriam por si só essa aptidão.
Entretanto, ante o inequívoco efeito vinculante das decisões proferidas em controle difuso de constitucionalidade, foi alterada a interpretação anteriormente dada esse dispositivo, em autêntica mutação constitucional. A nova exegese do art. 52, X, da Constituição é no sentido de que caberá ao Senado tão somente dar publicidade à decisão proferida pelo Pretório Excelso, não tendo o ente legislativo competência para deliberar sobre os efeitos do decisum. Em abono:
Alega-se que o papel do Senado Federal, em face do era. 52, X, da CF, não é mais o de suspender os efeitos da lei declarada constitucional, mas o de dar publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em controle difuso. (...)
Se as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, têm eficácia vinculante, torna-se completamente impróprio e desnecessário reservar ao Senado Federal o poder para atribuir efeitos gerais às decisões de inconstitucionalidade[17].
De remate, não é demais mencionar que, em consonância com o exposto, o Projeto do Novo Código de Processo Civil, em sua formatação atual, pretende veicular dispositivo segundo o qual “não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e tribunais seguirão os precedentes do plenário do Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de constitucionalidade” (art. 521, IV, “a”).
Rodolfo Camargo Mancuso, em lição ímpar em precisão e qualidade, bem sintetiza o defendido até este ponto do estudo:
É crescente a tendência à valorização do perfil objetivo do acórdão do STF em recuso extraordinário, a saber, sua aptidão para ir além da resolução do caso sub judice, por modo que, tomado como paradigma, passe a projetar efeitos pan-processuais em face de casos análogos, dado que um querela constitucional, uma vez resolvida pelo Tribunal máximo do país, deve ter seu aproveitamento otimizado, não se justificando que sua eficácia se confine ao estreito horizonte endoprocessual. Por essa vertente, o pronunciamento sobre questão constitucional, embora feito incidentemente no bojo de recurso extraordinário, projeta efeito extra-autos, ou ao menos ultrapartes, dispensando, a um tempo, a observância da reserva de Plenário (CF, art. 97) e a intervenção ulterior do Senado Federal (CF, art. 52, X).[18]
Em suma, sobejam motivos para que a razão de decidir adotada pela mais alta corte do país quando do julgamento de recursos extraordinários seja seguida por todos os demais órgãos julgadores.
Da Reclamação em face de decisão que desrespeita precedente oriundo de RECURSO EXTRAORDINÁRIO
A reclamação constitucional é uma ação[19]com vistas à impugnação de decisões judiciais. Ela possui assento constitucional – tal qual o próprio nome denuncia –, e tem por finalidade específica preservar a competência e garantir a autoridade das decisões de tribunais. De acordo com o art. 102, I, “l”, da Constituição Federal:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; (...)
Nesse diapasão, a só leitura do dispositivo constitucional deixa claro ser possível a utilização da reclamação para contrastar ato que importe desrespeito à autoridade de decisão de tribunal.
Dessa forma, partindo do pressuposto de que os julgados formados em sede de recurso extraordinário possuem efeito vinculante em nossa dinâmica processual atual, tem-se como consequência incontornável a possibilidade de manejo de reclamação em face de decisão que desrespeitar essa vinculação. Nessa hipótese, garantir-se-á a autoridade de decisão do Supremo Tribunal Federal.
Portanto, a reclamação com esse escopo ladeia aquela lastreada no desrespeito à súmula vinculante (art. 7° da Lei n° 11.417/06) e a fundamentada na afronta à decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade (art. 13 da Lei n° 8.038/90), nada obstante a ora defendida não possua regulamentação legal. Isso porque sua razão de ser é a mesma: resguardar o efeito vinculante do ato vergastado.
2.1) Da posição do Supremo Tribunal Federal e de sua necessária superação
O Excelso Pretório, a despeito do exposto, reconheceu em decisão recente que, conquanto suas decisões em sede de recurso extraordinário tenham de fato efeito vinculante, não seria a reclamação constitucional o meio adequado à proteção desse efeito. Para a mais alta corte do país, o jurisdicionado lesado seria obrigado a se valer das via (crucis) ordinária. Na essência, tal razão de decidir escorou-se na ausência de previsão constitucional dessa hipótese de reclamação e na possível explosão do número dessa espécie de demanda. Eis a respectiva ementa:
(...) 1. As decisões proferidas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento de recursos extraordinários com repercussão geral vinculam os demais órgãos do Poder Judiciário na solução, por estes, de outros feitos sobre idêntica controvérsia.
2. Cabe aos juízes e desembargadores respeitar a autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal tomada em sede de repercussão geral, assegurando racionalidade e eficiência ao Sistema Judiciário e concretizando a certeza jurídica sobre o tema.
3. O legislador não atribuiu ao Supremo Tribunal Federal o ônus de fazer aplicar diretamente a cada caso concreto seu entendimento.
4. A Lei 11.418/2006 evita que o Supremo Tribunal Federal seja sobrecarregado por recursos extraordinários fundados em idêntica controvérsia, pois atribuiu aos demais Tribunais a obrigação de os sobrestarem e a possibilidade de realizarem juízo de retratação para adequarem seus acórdãos à orientação de mérito firmada por esta Corte.
5. Apenas na rara hipótese de que algum Tribunal mantenha posição contrária à do Supremo Tribunal Federal, é que caberá a este se pronunciar, em sede de recurso extraordinário, sobre o caso particular idêntico para a cassação ou reforma do acórdão, nos termos do art. 543-B, § 4º, do Código de Processo Civil.
6. A competência é dos Tribunais de origem para a solução dos casos concretos, cabendo-lhes, no exercício deste mister, observar a orientação fixada em sede de repercussão geral.
7. A cassação ou revisão das decisões dos Juízes contrárias à orientação firmada em sede de repercussão geral há de ser feita pelo Tribunal a que estiverem vinculados, pela via recursal ordinária.
8. A atuação do Supremo Tribunal Federal, no ponto, deve ser subsidiária, só se manifesta quando o Tribunal a quo negasse observância ao leading case da repercussão geral, ensejando, então, a interposição e a subida de recurso extraordinário para cassação ou revisão do acórdão, conforme previsão legal específica constante do art. 543-B, § 4º, do Código de Processo Civil.
9. Nada autoriza ou aconselha que se substituam as vias recursais ordinária e extraordinária pela reclamação.
10. A novidade processual que corresponde à repercussão geral e seus efeitos não deve desfavorecer as partes, nem permitir a perpetuação de decisão frontalmente contrária ao entendimento vinculante adotado pelo Supremo Tribunal Federal. Nesses casos o questionamento deve ser remetido ao Tribunal competente para a revisão das decisões do Juízo de primeiro grau a fim de que aquela Corte o aprecie como o recurso cabível, independentemente de considerações sobre sua tempestividade.
11. No caso presente tal medida não se mostra necessária.
12. Não-conhecimento da presente reclamação.
(Rcl 10793, Relatora: Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 13/04/2011, Processo Eletrônico Dje-107. Publicação em 06/06/2011).
A decisão, não obstante o acerto quanto à vinculação decorrente da repercussão geral, com a devida vênia, peca por se preocupar não com a melhor aplicação do Direito na espécie, mas tão somente com a política de administração judiciária. Está-se diante de inequívoco exemplo de jurisprudência defensiva.
Afigura-se absolutamente prescindível a existência de previsão constitucional específica para o ajuizamento de reclamação com vistas a defender a autoridade vinculante de decisão em recuro extraordinário. É que, repise-se, o art. 102, I, “l”, da Constituição Federal, in fine,autoriza o manejo da reclamação para preservar a “garantia da autoridade” das decisões do Supremo, tal qual se da na situação analisada. Essa previsão, posto genérica, é bastante a autorizar essa hipótese de reclamação.
Tanto é assim que a mesma corte, em julgado de mesma relatoria, determinou que o Superior Tribunal de Justiça recebesse e processasse reclamações contra decisões das turmas recursais dos juizados especiais estaduais que atentassem contra seus entendimentos sumulados e consolidados, sem qualquer embargo da falta de previsão constitucional e legal nesse sentido[20].
Tampouco se sustenta o argumento de que, se o Supremo Tribunal Federal aceitasse o ajuizamento da reclamação esposada, haveria significativo aumento no número dessa sorte de ação. O que se pode prever é que justamente o oposto tende a acontecer.
Isso porque, cientes os magistrados de que, acaso não laborem em conformidade com as decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, seus atos poderão ser efetivamente cassados pela corte via reclamação, é de se presumir que não atuarão de forma a dar azo à repreensão. Não se ignora que, até se atingir tal ponto de maturidade, muitas serão as reclamações que abarrotarão o Excelso Pretório, porém, num médio prazo, reduzir-se-iam as desobediências, com a consequente redução das reclamações[21]. Lapidar, a esse propósito, a seguinte lição:
Contra-argumentar afirmando que tal medida implicaria uma avassaladora quantidade de reclamações (...) não é o bastante, pois justiça não se faz apenas com a redução do número de processos julgados pelas Cortes Superiores. Em determinados momentos e em prol do sistema como um todo, faz-se necessário dar um passo para trás para, em seguida, dar-se dois para frente. Diz-se isso porque é natural que, no início, os magistrados inferiores não mudem de postura e continue, a decidir em contradição com os posicionamentos consolidados (...). Porém, é previsível que, à medida que suas decisões sejam cassadas (...), haja um alteração de comportamento, passando a se pronunciarem em conformidade com a Corte Superior, reduzindo, conseguintemente, o número de Reclamações e reestruturando o sistema, que passará a ser mais coerente, possibilitando ao seu usuário (o jurisdicionado) o recebimento de uma prestação jurisdicional mais célere e justa.[22]
Demais disso, malgrado se possa entender que “não se deve substituir as vias recursais ordinária e extraordinária pela via da reclamação”, tal qual faz a decisão analisada, tais vias não são suficientes.
A solução apontada pelo acórdão é a prevista no art. 543-B do Código de Processo Civil vigente. Ocorre, todavia, que, de acordo com esse dispositivo legal, somente após o esgotamento das instâncias ordinárias e interposto o recurso extraordinário, invocando-se o precedente da repercussão geral, é que o Presidente ou Vice-Presidente do respectivo tribunal poderá determinar a devolução do caso ao órgão competente da corte para exercer o juízo de retratação e adaptar o julgamento objurgado à orientação do Supremo[23].
Conforme consignado pelo Ministro Luiz Fux quando do julgamento em exame, “estamos trocando a reclamação por um futuro recurso extraordinário”. A troca, à evidência, não é vantajosa. A reclamação tem procedimento bastante simples e que, basicamente, coincide com o do mandado de segurança[24]. O extraordinário que a substituirá, entretanto, sujeitará a parte a demasiados ônus – sejam de ordem financeira, sejam de ordem emocional –, além de mobilizar vários órgãos da estrutura judiciária, acrescendo os gastos do Estado e comprometendo a duração razoável do processo[25].
O que fez aqui o Código? O Código criou o instrumento da repercussão geral. E a repercussão geral visa a fixação de uma tese jurídica de caráter nacional. Pois bem, uma vez fixada essa tese jurídica, o próprio Código diz que a repercussão geral é geradora de uma súmula. O que ocorre quando a parte descumpre uma súmula vinculante? Cabe reclamação. O que deve ocorrer quando a parte descumpre a decisão demérito de uma repercussão geral decidida pelo Supremo? Uma reclamação. Acho que o cabimento da reclamação - muito ao contrário de minimizar a função do Supremo Tribunal Federal - vai prestigiar a sua jurisprudência.[26]
Além disso, o mecanismo criado pelo precitado art. 543-B se aplica apenas a restrito número de casos, em hipóteses nas quais já foram esgotadas as instâncias ordinárias, deixando a descoberto, v.g., situações em que decisões interlocutórias e sentenças vão de encontro à força vinculante do precedente oriundo de repercussão geral.
Essa lacuna no sistema é grave (...), pois as vias recursais ordinárias não são suficientes para garantir a autoridade e força da orientação consolidada no âmbito do STF (...). Não existe no sistema outro instrumento processual tão eficaz a garantir a obediência e a autoridade das decisões vinculantes dos tribunais como a reclamação. [27]
2.2) Uma solução lege lata
Poder-se-ia cogitar, nesse cenário, que o Projeto do Novo Código de Processo Civil poria pá de cal sobre a celeuma, estabelecendo, lege lata, a possibilidade de manejo de reclamação na hipótese defendida. A legislação vindoura, no entanto, à parte de pequena inovação, limitar-se-á a reproduzir o Direito positivo atual, acaso mantidos seus termos:
Art. 1.000. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I – preservar a competência do tribunal;
II – garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III – garantir a observância de decisão ou precedente do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
IV – garantir a observância de súmula vinculante e de acórdão ou precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência.
Dessa forma, nota-se que, se não alterada a posição do Pretório Excelso exposta na Rcl 10793, ou não inserida em lei a possibilidade de manejo de reclamação para defender a autoridade da decisão em recurso extraordinário, tornar-se-á inócuo o efeito vinculante desse precedente e, por consequência, ignorar-se-á a razão de ser de nossa estrutura judiciária, além da integralidade da inovação trazida ao ordenamento jurídico pela repercussão geral.
Assim, tem-se por acertada a seguinte proposta de disposição legal elaborada por Luiz Guilherme Marinoni, que, a um só tempo, outorga de forma expressa o efeito vinculante ao precedente proveniente de repercussão geral – bem assim a qualquer julgamento colegiado –, e prevê a reclamação como instrumento de sua efetivação. E mais: impõe sanção administrativa ao órgão jurisdicional que não respeitar esse efeito. In verbis:
Art. 4. Possuem eficácia vinculante os fundamentos determinantes da decisão, tomada no curso de julgamento de órgão colegiado, desde que adotados ou referendados pela maioria dos seus membros.
(...)
Art. 8. Em caso de não observância de decisão com eficácia vinculante, cabe reclamação ao Tribunal que a proferiu.
I – O relator, ao admitir a reclamação, pode determinar a suspensão do processo da decisão reclamada;
II – A decisão de procedência da reclamação cassará a decisão reclamada, determinado a prolação de nova decisão em observância à decisão vinculante;
III – A não observância do decidido na reclamação sujeitará o Tribunal ou o Juízo vinculado à sanção administrativa.[28]