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Morosidade “do” ou “no” Poder Judiciário?

Um ensaio sobre a “PEC dos recursos”

24/10/2014 às 14:45
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No texto, o autor procura examinar e confrontar os argumentos que pregam a inconstitucionalidade da PEC n. 15/2011 (conhecida como "PEC dos recursos"), ao mesmo tempo em que critica a visão de uma suposta "morosidade 'do' poder judiciário".

Tenho observado uma verdadeira campanha contra aquela que se tem chamado de “PEC dos recursos” (e que alguns chamam de “PEC do Peluso”, referindo-se ao ministro presidente do Supremo Tribunal Federal). Essa proposta de emenda constitucional (PEC n. 15/2011) tem o objetivo de, simplificando, antecipar o trânsito em julgado das decisões judiciais, de modo que a partir do julgamento do recurso pelo tribunal de apelação a decisão já possa ser cumprida.

Na parte que interessa, a PEC tem a seguinte redação:

“Art. 105-A A admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial não obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte. 

Parágrafo único.  A nenhum título será concedido efeito suspensivo aos recursos, podendo o Relator, se for o caso, pedir preferência no julgamento. 

Art. 105-B Cabe recurso ordinário, com efeito devolutivo e suspensivo, no prazo de quinze (15) dias, da decisão que, com ou sem julgamento de mérito, extinga processo de competência originária: 

I – de Tribunal local, para o Tribunal Superior competente; 

II  - de Tribunal Superior, para o Supremo Tribunal Federal.”

Os dois artigos acima têm um efeito muito claro:

a) Em primeiro lugar, garantem um duplo grau ordinário de jurisdição, na medida em que as ações julgadas originariamente pelos juízes de primeiro grau, pelos tribunais de apelação (TJs, TRFs, TRTs e TREs) e pelos tribunais superiores (STJ, TST e TSE) comportarão um recurso a ser examinado por um tribunal de superior hierarquia, mediante o qual será possível alegar tudo: matéria de fato e matéria de direito;

b) Em segundo lugar, estabelece que o trânsito em julgado da decisão e a viabilidade de seu imediato cumprimento deverá ocorrer, no máximo, a partir da decisão desse recurso que, como falei, reflete a garantia de um duplo grau de jurisdição de conhecimento pleno. Evita-se, dessa forma, que a causa se arraste por até quatro instâncias de julgamento, sendo mantida artificialmente em uma situação de indefinição que traduza a mais autêntica negativa de justiça.

Contra essa proposta de emenda constitucional vejo levantarem-se vozes que alegam (a) inconstitucionalidade por violação aos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, (b) inconstitucionalidade por violação à garantia da coisa julgada, (c) falibilidade do poder judiciário, além de outros fundamentos mal alinhavados. Pretendo examinar todos aqui.

Os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa servem de proteção ao cidadão contra uma atuação abusiva do Estado em afronta ao direito que cada um tem de ser ouvido por um poder judiciário imparcial e competente, de ter as mesmas possibilidades de produzir alegações de fato e de direito, bem como de trazer provas e de que essas provas sejam examinadas e “absorvidas” pelo juízo que sobre a causa deverá fazer o órgão julgador.

É óbvio que estou simplificando, mas os limites que traço são claros o suficiente para mostrar que a antecipação do trânsito em julgado para a conclusão da apreciação da causa após o segundo grau de jurisdição – uma vez que faria parte legítima do direito positivo brasileiro de base constitucional – não atentaria contra essa garantia. Todo mundo continuaria a ter as mesmas prerrogativas de ser ouvido pelo poder judiciário, de influir no julgamento com fatos, argumentos jurídicos e provas, em absoluta igualdade de condições e, no caso dos processos criminais, ficaria mantida a ampla (ou plenitude de) defesa.

Vamos ao segundo argumento: inconstitucionalidade por violação à garantia da coisa julgada. Nesse ponto, não resisto e faço a seguinte pergunta: em qual artigo da Constituição Federal de 1988 se encontra a definição do que seja coisa julgada, ou mesmo os dados que nos permitam tecer sua configuração? A resposta: em artigo nenhum. O que a Constituição Federal garante é a proteção da coisa julgada – tal como definida na lei – contra leis retroativas, de modo que o legislador não possa se utilizar da lei para cercear direitos legitimamente reconhecidos pelo poder judiciário com base no direito então vigente.

Sendo assim, quem definirá o que é e quando ocorrerá a coisa julgada é o legislador. Esse conceito não existe na Constituição Federal e, portanto, não há como a PEC ser incompatível com ele. E que ninguém tente argumentar que a PEC atentaria contra o conceito de coisa julgada previsto na lei, pois emenda constitucional, como espécie normativa de hierarquia superior à lei, pode redefinir esse conceito sem medo de ser feliz.

O que a “PEC dos recursos” estaria fazendo, então? Redefinindo o conceito de coisa julgada e fixando o momento de sua ocorrência para a conclusão da apreciação da causa em grau de recurso pelos tribunais de segundo grau (tribunais de justiça, tribunais regionais federais, tribunais regionais do trabalho e tribunais regionais eleitorais). Julgado o recurso por essas cortes, não mais se aguarda a reapreciação da matéria constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou a reapreciação da matéria infraconstitucional pelos tribunais superiores (STJ, TST e TSE), dando-se imediato cumprimento ao julgado.

Vamos ao último argumento: a falibilidade do poder judiciário, o que demandaria a necessidade de apreciação da causa por quatro instâncias. Nesse argumento, costuma-se incluir uma pretensa ofensa à segurança jurídica, uma vez que as decisões judiciais proferidas pelo juiz de primeiro grau e pelo tribunal de segundo grau poderiam vir a ser reformadas no futuro pelo STJ ou pelo STF, com nefastas conseqüências para o vencedor do recurso que viu a decisão ser cumprida desde o julgamento pelo tribunal de justiça ou pelo tribunal regional federal.

Quem assim argumenta, normalmente não faz um único comentário em relação ao outro lado: o do cara que desde o primeiro momento tinha razão e viu sua causa ser arrastada pelo réu através de uma infindável série de recursos (alguns nitidamente protelatórios, uma vez que, na contabilidade de custos e riscos, vale mais à pena se arriscar a uma multa por litigância de má-fé do que pagar o que deve), começando pelos agravos das decisões do juiz de primeiro grau, passando pelos embargos declaratórios da sentença, pelo acórdão que decide a apelação, pelos embargos declaratórios, embargos infringentes, mandados de segurança, agravos aos tribunais superiores, julgamento do recurso especial, novos embargos declaratórios, embargos de divergência, mandado de segurança no STF, recurso extraordinário, embargos declaratórios.

O coitado do promovente que tinha razão acha, nessa hora, que finalmente ganhou. Infelizmente, as luzes se apagam e começa a segunda sessão de sua caminhada com o filme “Rambo II: a missão”. Começa a “via crucix” do cumprimento, antiga execução de título executivo judicial. Os embargos começavam no juízo de primeiro grau e já sabemos até onde e como poderiam se arrastar...

É por isso que eu, sinceramente, não consigo enxergar, hoje em dia (a não ser em alguns casos patológicos e excepcionais) isso que a mídia se ocupa em repetir como sendo a “morosidade do poder judiciário”. Para escrever certo, é preciso dizer “morosidade NO poder judiciário”, pois, afinal, é no poder judiciário que os processos tramitam. Mas os órgãos do poder judiciário trabalham cada vez mais pensando em uma prestação jurisdicional com qualidade, significando isso uma definição mais rápida, fundamentada, cada vez mais sintonizada com a função social do direito, deliberadamente proativa e segura.

O que alguns criticam com o rótulo de ativismo judicial (não estou me manifestando sobre o mérito disso) reflete, na verdade, a vontade que os juízes brasileiros têm e demonstram todos os dias de levar justiça à sociedade cada vez mais rápido, mais informalmente e com maior precisão. Não se trata simplesmente de aplicar a lei ao caso concreto. Convenhamos, essa atividadezinha acadêmica de interpretação e subsunção é fácil demais. Com as palavrinhas certas na descrição do caso concreto e um banco de dados com todas as leis do direito positivo brasileiro, o juiz seria facilmente substituído por um robô, e com indiscutível ganho de tempo. O problema (e ainda bem!) é que “sentença” vem de “sentire”, e é preciso ser de carne e osso para adotar o direito positivo como guia e ao mesmo tempo “sentir” qual o caminho certo a seguir. Mais do que o trabalho, essa é a vida dos juízes.

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Mas voltemos ao argumento de ofensa à segurança jurídica. O que se chama de “segurança jurídica” tem pertinência com o anseio social e a garantia constitucional de estabilidade das relações jurídicas. Seria realmente terrível viver em um mundo onde não tivéssemos certeza alguma de que poderíamos contar com a imutabilidade dos direitos adquiridos ou reconhecidos através das leis, dos contratos e das decisões judiciais.

Já imaginaram se o legislador pudesse editar uma lei, em qualquer tempo, que tivesse o efeito de anular a compra do seu apartamento (validamente adquirido na época), a nomeação e a posse no cargo público que você ocupa (validamente realizados na época) ou mesmo seu casamento civil (validamente celebrado na época)? Contra uma aberração dessas é que se fez constar na Constituição Federal a norma segundo a qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Tudo gira em torno de evitar a insegurança e a indefinição no âmbito do direito, garantindo e protegendo o legítimo interesse de estabilidade nas relações jurídicas e sociais.

O sistema jurídico processual recursal atualmente em vigor permite que a definição de determinadas causas judiciais sejam arrastadas por vários anos, até mesmo por décadas. Conforme a “habilidade” do litigante e seu lastro financeiro para suportar uma batalha judicial demorada, o sujeito tende a protelar a resolução da controvérsia o máximo possível – mantendo as partes na indefinição e na insegurança, minando sua esperança no poder judiciário e sua confiança na justiça.

A “PEC dos recursos” tem como objetivo abreviar essa longa caminhada sem perda de qualidade. No comum dos casos, a demanda será examinada e julgada por um juiz. As partes permanecem com as mesmas prerrogativas de apresentar alegações de fato e de direito, de produzir ou requerer a produção de provas e, enfim, de participar do processo de decisão mediante legítima atuação processual. Uma vez julgado o feito, todas as questões já discutidas poderão ser objeto de recurso a um tribunal, de modo que a causa seja reapreciada em todas as suas nuances (se assim o pedir o recorrente) por um órgão judiciário colegiado.

A definição sobre a causa ocorrerá, como regra geral, com a apreciação definitiva pelo tribunal que julgar a apelação. Esse é o momento em que se forma a coisa julgada, permitindo-se assim o imediato cumprimento do julgado. Se recurso couber para os tribunais superiores – e isso precisa ficar bem claro a quem não tem formação jurídica – ele não poderá discutir os fatos da causa, limitando-se a discutir a aplicação de normas de direito pelos juízos de primeiro e segundo graus. Uma vez que esses juízos normalmente seguem a jurisprudência dos tribunais superiores (especialmente do Supremo Tribunal Federal), os recursos seguintes poderão bem e fielmente servir exclusivamente aos propósitos de quem quer adiar a definitiva resposta do poder judiciário.

Nessa ordem, quero propor uma perguntinha inocente, e me permitirei o luxo de não respondê-la. O que é mesmo que gera (ou mantém) a insegurança e a instabilidade na definição do direito: a antecipação do momento de formação da coisa julgada (após o exame da causa por um juiz e um tribunal) ou a possibilidade de se recorrer a instâncias superiores apenas para evitar uma inevitável sucumbência?

Daí minha opinião de que a PEC dos recursos não é inconstitucional, nem fere a segurança jurídica mais do que o sistema atual fere a efetividade do direito e da função jurisdicional. O Estado – não estou falando do poder judiciário, estou falando do Estado – não presta justiça a seus cidadãos não apenas quando o processo tramita por anos a fio em razão de um juiz que não julga. Também deixa de prestar justiça o Estado que elabora ou mantém um sistema jurídico processual que permite facilmente a um litigante arrastar a definição da causa por anos a fio. E nesse segundo caso, parece-me indiscutível que o poder judiciário teria suas mãos desoladoramente atadas.

A opção por um sistema jurídico processual recursal que melhor garanta a segurança jurídica do que a efetividade do direito e da função jurisdicional é nitidamente política. Isso significa que a decisão está nas mãos do povo, por meio do seu poder legislativo. A sociedade brasileira deve entender que qualquer das opções será, sem dúvida, uma opção politicamente legítima e juridicamente sustentável. O que não pode ser permitido é a demonização de uma das opções sob o pálio de insustentáveis argumentos de inconstitucionalidade, menosprezando-se a inteligência, o espírito crítico e a capacidade de escolha de uma sociedade que, além de justiça, merece respeito.

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Sobre o autor
Rogério Roberto Abreu

Doutorando no PPGD da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Mestre em Direito Econômico (UFPB). Professor no Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ/PB). Juiz Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Rogério Roberto. Morosidade “do” ou “no” Poder Judiciário?: Um ensaio sobre a “PEC dos recursos”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4132, 24 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32483. Acesso em: 22 nov. 2024.

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