Sumário: 1. Introdução. 2. Tratamento favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte. 3. Obrigatoriedade de destinação exclusiva de licitações às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito federal. 4. Aplicação do limite de R$ 80.000,00 nas licitações públicas por itens. 5. Conclusão. Referências.
1. Introdução
As microempresas e empresas de pequeno porte encontram-se em situação de desequilíbrio real na competição com as médias e grandes empresas.
Por essa razão, o constituinte pretendeu estabelecer normas diferenciadas a fim de permitir que as microempresas e empresas de pequeno porte pudessem concorrer de forma equilibrada com as demais empresas.
Para regulamentar o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas de bens, serviços e obras, fixado na Lei Complementar nº 123/2006, o Poder Executivo Federal editou o Decreto nº 6.204/2007, tornando obrigatório, no âmbito da administração pública federal, a adoção da destinação exclusiva das licitações à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).
Dessa forma, pretende-se analisar eventual extrapolação dos limites do poder regulamentar pela norma inserta no art. 6º do Decreto nº 6.204/2007, na medida em que fixou no regulamento, obrigação imposta aos entes federais, quando a Lei Complementar nº 123/2006 estabeleceu mera faculdade.
Além disso, pretende-se analisar ainda a possibilidade de licitação exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte quando o valor total estimado para uma licitação por itens for superior ao montante de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), a despeito de o valor previsto para cada item a ser licitado ser inferior àquela quantia.
A importância do tema, portanto, está fulcrada tanto no aspecto econômico, que representam as contratações firmadas pela Administração Pública, quanto pela existência de controvérsia no âmbito jurídica sob a questão ora analisada.
2. Tratamento favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte
As microempresas e empresas de pequeno porte estão submetidas à competição com grandes empresas, geralmente melhor estruturadas e consolidadas no mercado. Em razão dos custos elevados decorrentes da menor escala de produção, da menor capacidade logística e estrutura administrativa, as microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP) encontram-se em situação de desequilíbrio real na competição com as médias e grandes empresas.
Diante dessa realidade, o constituinte pretendeu estabelecer normas diferenciadas a fim de permitir que as ME e EPP pudessem concorrer de forma equilibrada com as demais empresas. A Constituição Federal de 1988 [1] consagrou, em seus artigos 146, III, d, 170, IX, e 179, tratamento favorecido para as microempresas e paras as empresas de pequeno porte:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
[...]
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
[...]
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)”
“Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”
A Lei Complementar nº 123/2006 [2], ao dispor sobre o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, introduziu a sistemática diferenciada no processo licitatório envolvendo essas espécies de empresas. Em seus artigos 47 a 49, prevê condições diferenciadas para microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas da União, dos Estados e dos Municípios:
“Art. 47. Nas contratações públicas da União, dos Estados e dos Municípios, poderá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica, desde que previsto e regulamentado na legislação do respectivo ente.
Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública poderá realizar processo licitatório:
I - destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
II - em que seja exigida dos licitantes a subcontratação de microempresa ou de empresa de pequeno porte, desde que o percentual máximo do objeto a ser subcontratado não exceda a 30% (trinta por cento) do total licitado;
III - em que se estabeleça cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível.
§ 1o O valor licitado por meio do disposto neste artigo não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) do total licitado em cada ano civil.
§ 2o Na hipótese do inciso II do caput deste artigo, os empenhos e pagamentos do órgão ou entidade da administração pública poderão ser destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas.
Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:
I - os critérios de tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não forem expressamente previstos no instrumento convocatório;
II - não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;
III - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;
IV - a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.”
Esse tratamento diferenciado estende-se às cooperativas com receita bruta equivalente à das empresas de pequeno porte, por força do art. 34 da Lei nº 11.488/2007 [3]:
“Art. 34. Aplica-se às sociedades cooperativas que tenham auferido, no ano-calendário anterior, receita bruta até o limite definido no inciso II do caput do art. 3o da Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006, nela incluídos os atos cooperados e não-cooperados, o disposto nos Capítulos V a X, na Seção IV do Capítulo XI, e no Capítulo XII da referida Lei Complementar.”
3. Obrigatoriedade de destinação exclusiva de licitações às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito federal
Para regulamentar o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas de bens, serviços e obras, fixado na Lei Complementar nº 123/2006, o Poder Executivo Federal publicou o Decreto nº 6.204/2007 [4].
Os incisos I, II e III do art. 48 da Lei Complementar nº 123/2006 foram regulamentados, respectivamente pelos artigos 6º, 7º e 8º do Decreto nº 6.204/2007:
“Art. 6º Os órgãos e entidades contratantes deverão realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).
Parágrafo único. Não se aplica o disposto neste artigo quando ocorrerem as situações previstas no art. 9º, devidamente justificadas.
Art. 7º Nas licitações para fornecimento de bens, serviços e obras, os órgãos e entidades contratantes poderão estabelecer, nos instrumentos convocatórios, a exigência de subcontratação de microempresas ou empresas de pequeno porte, sob pena de desclassificação, determinando:
I - o percentual de exigência de subcontratação, de até trinta por cento do valor total licitado, facultada à empresa a subcontratação em limites superiores, conforme o estabelecido no edital;
II - que as microempresas e empresas de pequeno porte a serem subcontratadas deverão estar indicadas e qualificadas pelos licitantes com a descrição dos bens e serviços a serem fornecidos e seus respectivos valores;
III - que, no momento da habilitação, deverá ser apresentada a documentação da regularidade fiscal e trabalhista das microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas, bem como ao longo da vigência contratual, sob pena de rescisão, aplicando-se o prazo para regularização previsto no § 1º do art. 4º;
IV - que a empresa contratada compromete-se a substituir a subcontratada, no prazo máximo de trinta dias, na hipótese de extinção da subcontratação, mantendo o percentual originalmente subcontratado até a sua execução total, notificando o órgão ou entidade contratante, sob pena de rescisão, sem prejuízo das sanções cabíveis, ou demonstrar a inviabilidade da substituição, em que ficará responsável pela execução da parcela originalmente subcontratada; e
V - que a empresa contratada responsabiliza-se pela padronização, compatibilidade, gerenciamento centralizado e qualidade da subcontratação.
§ 1º Deverá constar ainda do instrumento convocatório que a exigência de subcontratação não será aplicável quando o licitante for:
I - microempresa ou empresa de pequeno porte;
II - consórcio composto em sua totalidade por microempresas e empresas de pequeno porte, respeitado o disposto no art. 33 da Lei nº 8.666, de 1993; e
III - consórcio composto parcialmente por microempresas ou empresas de pequeno porte com participação igual ou superior ao percentual exigido de subcontratação.
§ 2º Não se admite a exigência de subcontratação para o fornecimento de bens, exceto quando estiver vinculado à prestação de serviços acessórios.
§ 3º O disposto no inciso II do caput deste artigo deverá ser comprovado no momento da aceitação, quando a modalidade de licitação for pregão, ou no momento da habilitação nas demais modalidades.
§ 4º Não deverá ser exigida a subcontratação quando esta for inviável, não for vantajosa para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, devidamente justificada.
§ 5º É vedada a exigência no instrumento convocatório de subcontratação de itens ou parcelas determinadas ou de empresas específicas.
§ 6º Os empenhos e pagamentos referentes às parcelas subcontratadas serão destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas.
Art. 8º Nas licitações para a aquisição de bens, serviços e obras de natureza divisível, e desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo do objeto, os órgãos e entidades contratantes poderão reservar cota de até vinte e cinco por cento do objeto, para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte.
§ 1º O disposto neste artigo não impede a contratação das microempresas ou empresas de pequeno porte na totalidade do objeto.
§ 2º O instrumento convocatório deverá prever que, não havendo vencedor para a cota reservada, esta poderá ser adjudicada ao vencedor da cota principal, ou, diante de sua recusa, aos licitantes remanescentes, desde que pratiquem o preço do primeiro colocado.
§ 3º Se a mesma empresa vencer a cota reservada e a cota principal, a contratação da cota reservada deverá ocorrer pelo preço da cota principal, caso este tenha sido menor do que o obtido na cota reservada.”
O caput dos artigos 7º e 8º do Decreto nº 6.204/2007 repete a discricionariedade conferida pelo caput do art. 48 da Lei Complementar nº 123/2006 ao utilizar o verbo “poderão”.
Por sua vez, o art. 6º, que regulamenta a destinação exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) obrigou, no âmbito da administração pública federal, a adoção da destinação exclusiva das licitações à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações sujeitas à alçada legal.
A Lei Complementar nº 123/2006 estabeleceu uma mera faculdade. Contudo, utilizando-se dos poderes de hierarquia, o Presidente da República apenas regulamentou a Lei Complementar, através da edição do Decreto nº 6.204/2007.
Desse modo, como chefe do Executivo Federal, o Presidente da República pode avocar para si a decisão de vincular a conduta dos subordinados desde que a opção utilizada por ele esteja entre o rol de opções conferidas pela Lei. Em resumo, a discricionariedade deixada pela lei pode ser limitada por uma ordem do chefe do Poder executivo aos seus subordinados, avocando para si a decisão quanto à realização ou não da licitação exclusiva para microempresas e empresas de pequeno porte nos casos em que a lei autoriza.
Inexiste, portanto, qualquer afronta à legalidade por parte do art. 6°. Na verdade, trata-se apenas uma determinação do Presidente da República quanto ao caminho a ser trilhado que a Administração Pública Federal.
A esse respeito, é bastante esclarecedora a lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro:
“No entanto, mesmo quando dependa de lei, pode-se dizer que da organização administrativa decorrem para a Administração Pública diversos poderes:
1. o de editar atos normativos (resoluções, portarias, instruções) com o objetivo de ordenar a atuação dos órgãos subordinados; trata-se de atos normativos de efeitos apenas internos e, por isso mesmo, inconfundíveis com os regulamentos; são apenas e tão-somente decorrentes da relação hierárquica, razão pela qual não obrigam pessoas a ela estranhas.
2. o de dar ordens aos subordinados, que implica o dever de obediência, para esses últimos, salvo para as ordens manifestamente ilegais;
[...]
5. o de avocar atribuições, desde que não sejam de competência exclusiva do órgão subordinado." [5] [grifos do autor]
Logo, a norma inserta no art. 6º do Decreto nº 6.204/2007 não extrapola os limites do poder regulamentar, pois consiste na concretização do poder discricionário do chefe do Poder Executivo Federal para disciplinar a matéria, dentro dos limites autorizados pela Lei Complementar nº 123/2006.
4. Aplicação do limite de R$ 80.000,00 nas licitações públicas por itens
A partir da publicação do Decreto nº 6.204/2007 surgiram questionamentos sobre viabilidade ou não de licitação exclusiva para microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP), nos termos do art. 6º do Decreto no 6.204, de 5 de setembro de 2007, quando o valor total estimado para uma licitação por itens for superior ao montante previsto naquele dispositivo (oitenta mil reais), a despeito de o valor previsto para cada item a ser licitado ser inferior àquela quantia.
O Departamento de Orientação e Coordenação de Órgãos Jurídicos - DECOR da Advocacia-Geral da União - AGU, órgão responsável pela uniformização da jurisprudência administrativa e orientação sobre a correta aplicação das leis[6], fixou o entendimento, através da NOTA DECOR/CGU/AGU nº 356/2008 -PCN [7], no sentido da exclusividade da participação e ME ou EPP nos itens licitados inferiores a quantia de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), mesmo quando o valor total da licitação fosse superior ao montante previsto no dispositivo legal. Nesse sentido, esclarecedora a conclusão da referida manifestação jurídica, in verbis:
“35. Em face do exposto, opina-se no seguinte sentido:
a) A aferição do patamar de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) deve se pautar nas seguintes orientações:
a.1) caso o item seja da mesma espécie, mas possa ser dividido em parcelas, sempre que se demonstre técnica e economicamente viável (art. 5° do Decreto n.o 3.931/01), deverá ser levado em conta cada parcela para aferir tal patamar;
a .2) caso o item seja composto por componentes de diversas espécies, e se opte por reunir em lotes separados por linha de produto, o patamar deverá ser aferido por linha de produto.”
A propósito, O Tribunal de Contas de União, através do Acórdão 3.771/2011-TCU-Primeira Câmara[8], reconheceu que o limite de R$ 80.000,00 aplica-se a cada item da licitação e não ao valor global da mesma. Naquela assentada, esta Corte entendeu que os diversos itens da licitação constituíram várias licitações distintas e independentes entre si.
No mesmo sentido, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região reconheceu a legalidade da conduta administrativa que, em licitação na modalidade pregão eletrônico, contemplou a participação exclusiva de microempresas na competição por itens, desde que observado o teto legal, conforme acórdão a seguir ementado:
“ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO TIPO MENOR PREÇO POR ITEM. EXISTÊNCIA DE VÁRIAS FAIXA DE CONCORRÊNCIA INDEPENDENTES E AUTÔNOMAS ENTRE SI. PARTICIPAÇÃO EXCLUSIVA DE MICROEMPRESAS, EMPRESAS DE PEQUENO PORTE E SOCIEDADES COOPERATIVAS. VALOR DE CADA ITEM NÃO EXCEDE O TETO PREVISTO NA LEI COMPLEMENTAR Nº 123/06. PROVIMENTO DO RECURSO.
1. Agravo de instrumento desafiado contra decisão que determinou a participação da parte agravada na licitação atinente ao Processo Administrativo nº 63064.000019/2009-89 - Edital de Licitação nº 04/2009, modalidade Pregão Eletrônico - salvo se por outro motivo deva ser excluída ou desqualificada.
2. Licitação do tipo "MENOR PREÇO POR ITEM" na qual - embora seu valor global (R$ 1.002.487,54) exceda o limite previsto na Lei Complementar nº 123/06 (R$ 80.000,00) para ser assegurada a participação exclusiva das microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas - observa-se que foram estabelecidas várias faixas de concorrência autônomas entre si, sendo, assim, cada item cotado substancialmente independente dos demais.
3. Existência de várias licitações distintas e independentes entre si, cujo valor não excede o teto previsto na Lei Complementar nº 123/06, o que é corroborado, para exemplificar, pelo disposto no item 20.1, segundo o qual "cada contrato firmado com a fornecedora terá vigência pelo prazo de 15 (quinze) dias, a partir da retirada da Nota de Empenho, nos termos do art. 57, da Lei nº 8.666/93".
4. Inobstante na hipótese em apreço exista uma limitação à livre concorrência, prestigia-se o preceito constitucional insculpido no art. 170, IX, que assegura "tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País", as quais, sem essa garantia, não teriam oportunidade de contratar com a Administração Pública. 5. Agravo de instrumento provido.”[9]
[Grifo nosso]
Contudo, em 2011, o Departamento de Orientação e Coordenação de Órgãos Jurídicos da Advocacia-Geral da União, através do Parecer nº 059/2011/DECOR/CGU/AGU[10], revisou o entendimento anteriormente adotado, para manifestar-se no sentido de que deve ser considerado o valor total do certame para a reserva do objeto às microempresas e empresas de pequeno porte, sob o fundamento que o fracionamento não pode ser utilizado como instrumento de deturpação da regra contida no art. 6º do Decreto nº 6.204/2007. Para o DECOR, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, caso ultrapassado tal teto, deveria ceder em favor da isonomia e da maior vantajosidade para a administração.
No mesmo sentido, defendendo que deve ser considerado o valor total do certame para a reserva do objeto às microempresas e empresas de pequeno porte, Rodrigo Cesar Aguiar Vivas[11] assevera:
“Desta feita, tendo por espeque uma intepretação sistemática da legislação vigente sobre o tema, bem como para se evitar tentativas de fraudes a ampla participação no certame licitatório por meio de fracionamento ardiloso do objeto, deve o teto de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) tomar por base a soma total dos itens licitados, em raciocínio análogo ao previsto para o art. 23 § 5º da Lei 8666/1993.”
Todavia, recentemente, a Advocacia-Geral da União, mais uma vez alterando seu entendimento, a Advocacia-Geral da União editou a Orientação Normativa nº 47, recomendando a adoção da participação exclusiva de microempresa, empresa de pequeno porte ou sociedade cooperativa em relação aos itens ou grupos de itens cujo valor seja igual ou inferior a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais)[12]:
"EM LICITAÇÃO DIVIDIDA EM ITENS OU LOTES/GRUPOS, DEVERÁ SER ADOTADA A PARTICIPAÇÃO EXCLUSIVA DE MICROEMPRESA, EMPRESA DE PEQUENO PORTE OU SOCIEDADE COOPERATIVA (ART. 34 DA LEI Nº 11.488, DE 2007) EM RELAÇÃO AOS ITENS OU LOTES/GRUPOS CUJO VALOR SEJA IGUAL OU INFERIOR A R$ 80.000,00 (OITENTA MIL REAIS), DESDE QUE NÃO HAJA A SUBSUNÇÃO A QUAISQUER DAS SITUAÇÕES PREVISTAS PELO ART. 9º DO DECRETO Nº 6.204, DE 2007."
Em geral, as contratações de compras, serviços e obras da Administração Pública devem ser divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, em conformidade com o art. 23, §1º da Lei nº 8.666/1993[13]:
§ 1o As obras, serviços e compras efetuadas pela Administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade sem perda da economia de escala.
Portanto, caso haja viabilidade técnica e econômica, qualquer contratação deve ser dividida em contratações menores, de forma a possibilitar maior competitividade e melhor aproveitamento das oportunidades do mercado, decorrendo daí, ao menos presumivelmente, mais vantagem para a Administração. Tal medida está em consonância com o princípio da eficiência, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal[14], uma vez que representa uma economia de recursos para a Administração, evitando a realização de múltiplos certames, restritos, cada um, a um objeto específico.
O Tribunal de Contas da União admite a licitação por itens, conforme se extrai do enunciado de súmula nº 247[15], in verbis:
“É obrigatória a admissão da adjudicação por item e não por preço global, nos editais das licitações para a contratação de obras, serviços, compras e alienações, cujo objeto seja divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo ou perda de economia de escala, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla participação de licitantes que, embora não dispondo de capacidade para a execução, fornecimento ou aquisição da totalidade do objeto, possam fazê-lo com relação a itens ou unidades autônomas, devendo as exigências de habilitação adequar-se a essa divisibilidade.”
Registre-se, por oportuno, lição de Marçal Justen Filho[16] acerca de tal procedimento:
“Uma das soluções praticadas usualmente consiste na adoção da chamada ´licitação por itens´. A figura é muito conhecida e de larga utilização na praxe administrativa. Consiste na concentração, em um único procedimento, de uma pluralidade de certames, de que resultam diferentes contratos. A licitação por itens corresponde, na verdade, a uma multiplicidade de licitações, cada qual com existência própria e dotada de autonomia jurídica, mas todas desenvolvidas conjugadamente em um único procedimento, documentado nos mesmos autos.” (grifo nosso)
A licitação por itens pode ocasionar várias contratações derivadas de um mesmo instrumento convocatório. Como a licitação de cada item poderia ocorrer por meio de uma específica disputa, a aplicação de um único certame, pretendendo adjudicar vários itens independentes, não desqualifica a natureza autônoma de cada contratação derivada desta licitação.
A licitação, por itens, portanto, ocasiona várias contratações, derivadas de disputas independentes que foram formalizadas em um único procedimento.
O caput do art. 6º do Decreto nº 6.204/2007[17] delimita, para exclusividade da participação de microempresas e empresas de pequeno porte no certame, não o montante previsto para o objeto total da licitação, mas a quantia correspondente à contratação prevista derivada do referido certame licitatório:
“Art. 6º Os órgãos e entidades contratantes deverão realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).”(Grifo nosso)
Acrescente-se ainda, que o instrumento convocatório não poderá estipular condições que eliminem, na prática, a autonomia entre cada item a ser licitado, sob pena de infirmar a natureza plúrima da licitação por itens. Comentando sobre tal óbice, convém colacionar a seguinte lição de Marçal Justen Filho:
“(...) A autonomia interna é da essência da licitação por itens. Suprimir tal autonomia conduz a desnaturar a figura, o que usualmente significa incorrer em vício.
Assim, por exemplo, é inválido estabelecer que o licitante deverá preencher os requisitos de habilitação para o conjunto global dos objetos licitados (eis que o julgamento se faz em relação a cada item). Isso corresponderia a exigir habilitação superior ao mínimo necessário à contratação. Afinal, se o particular poderá ser contratado para executar apenas um certo item, não é cabível dele exigir-se nada além do que a habilitação correspondente ao dito item.
Outra imposição defeituosa consiste na obrigatoriedade de formulação de propostas para o conjunto dos diferentes itens. Isso desfigura uma licitação por itens. Haverá, então, um objeto único e complexo: define-se a extensão do certame em face da abrangência que se prevê para as propostas. Estando previsto como obrigatório um único vencedor da licitação (tomando-se em conta, por exemplo, o preço global resultante do somatório dos preços oferecidos para cada tópico), não haverá licitação por item. Ressalte-se que a alternativa dessa ordem tende a ser inválida por envolver o risco de restrição indevida à participação no certame. Quando se somam diferentes objetos e se produz contratação única, adota-se solução radicalmente oposta àquela preconizada no §1 o do art. 23 (da Lei n o 8.666, de 1993). Essa alternativa somente pode ser adotada quando o desempenho das funções administrativas envolver a necessidade de um único fornecedor para todos os bens, o que somente se caracteriza em hipóteses muito raras. Em todo caso, isso não é uma licitação por itens.
Também é inválido determinar a obrigatoriedade de propostas para diversos itens e fixar que o julgamento de cada qual será autônomo. Como a Administração contratará cada item de modo independente, a formulação de proposta abrangendo todos os objetos licitados caracteriza exigência inválida, inútil e desnecessária. Caracterizar-se-á uma forma indireta de restrição à liberdade de participação, estabelecendo-se requisitos de habilitação dissociados da necessidade pública.(...)” [18].
Portanto, o valor previsto da licitação não foi a baliza utilizada pelo Legislador. O elemento para aferição da exclusividade no certame diferenciado foi a previsão do valor da contratação.
Sendo os itens licitados de forma independente, num mesmo procedimento, nada impede que o administrador desmembre a licitação por itens em procedimentos exclusivos independentes, onde cada item não excederia o valor de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), viabilizando a participação exclusiva das microempresas e empresas de pequeno porte.
5. Conclusão
O constituinte inseriu na Carta Constitucional como principio da ordem econômica (art. 170, inciso IX da C.F.) o tratamento diferenciado e favorecido para microempresas e empresas de pequeno porte. A fim de dar concreção a esse principio, o legislador ordinário estabeleceu a possibilidade de licitação diferenciada nos casos dessas empresas.
O chefe do Poder Executivo, visando regulamentar a Lei complementar, estabeleceu a obrigatoriedade de a Administração Pública Federal realizar licitação com empresas de pequeno porte e micro empresas nos casos de licitação até 80 mil reais. Em que pese a existência de entendimentos divergentes, não se trata de decreto com vício e legalidade, mas ao revés, de mero exercício do poder regulamentar do Chefe do Executivo, que estabeleceu, dentre várias hipóteses permitidas pela Lei complementar, a obrigatoriedade em seguir determinada conduta no âmbito do executivo federal.
Assentada a legalidade na edição do Decreto nº 6.204/2007, é necessário ressaltar que o limite de oitenta mil reais não está restrito ao objeto total da licitação, mas a quantia correspondente à contratação pretendida no certame licitatório. Caso haja viabilidade técnica e econômica, qualquer contratação deve ser dividida em contratações menores, de forma a possibilitar maior competitividade e melhor aproveitamento das oportunidades do mercado, decorrendo daí, ao menos presumivelmente, mais vantagem para a Administração. Tal medida está em consonância com o princípio da eficiência, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal, uma vez que representa uma economia de recursos para a Administração, evitando a realização de múltiplos certames, restritos, cada um, a um objeto específico.