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A ilicitude do Digital Rights Management (DRM) no Direito brasileiro

09/11/2014 às 13:33
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O presente artigo explica o que é DRM, como ele realmente é utilizado, os motivos dele estar em desacordo com a legislação brasileira e o que pode ser feito contra esta restrição injustamente imposta ao consumidor.

A definição de Digital Rights Management (DRM) para a Defective by Design é

"a prática de impor restrições tecnológicas que controlam o que usuários podem fazer com mídia digital. Quando um programa é designado para preveni-lo de copiar ou compartilhar uma música, ler um e-book em outro dispositivo, ou jogar um jogo individual sem estar conectado a internet, você está sendo restringido pelo DRM. Em outras palavras, o DRM cria um bem defeituoso; ele previne que você faça coisas que poderia fazer sem ele. Isto concentra controle sobre a produção e distribuição de mídia, dando aos fornecedores o poder de realizar queimas massivas de livros digitais e conduzirem vigilância em larga escala sobre os hábitos das pessoas em relação a visualização de mídia"[1]

Em síntese, DRM é qualquer restrição tecnológica que impeça que o usuário utilize um produto adquirido legalmente da maneira que poderia caso o supracitado não estivesse presente.

Os defensores do DRM argumentam que ele foi desenvolvido como uma maneira de impedir a pirataria de bens digitais. Todavia a existência de uma única cópia de um bem sem DRM, sendo que é impossível não existir pelo menos uma cópia sem esta restrição, já possibilita que o supramencionado seja pirateado e distribuído indefinidamente. O que torna este mecanismo essencialmente inútil para este propósito.

O que o DRM realmente faz é retirar do consumidor que adquirir legalmente um bem, pois como foi dito acima bens pirateados não possuem DRM[2], a possibilidade de utilizar o que adquiriu da maneira que bem entender. Ou seja, não só o DRM é inútil para seu propósito de impedir a pirataria como incentiva um consumidor que quiser adquirir legalmente e ser o proprietário de um bem a procurar uma cópia sem esta restrição.

Um exemplo deveras ilustrativo é o de um consumidor que visite uma loja e queira adquirir um CD que custe quarenta reais, entretanto este funciona exclusivamente no dispositivo X e não pode ser copiado. Ao mesmo tempo, um amigo lhe oferece o mesmo CD, de maneira gratuita, que funciona nos dispositivos X, Y e Z e é infinitamente copiável.

Outro exemplo, simples mas correto, é o de um vendedor ambulante que tente vender água engarrafada ao lado de uma nascente de rio.

O DRM é utilizado, por exemplo, na Steam para impedir que usuários vendam ou compartilhem conteúdo com seus amigos, no jogo Diablo 3 da Blizzard para forçar o jogador a sempre estar conectado a internet, em DVDs para impedir a utilização em "região" diversa, e no YouTube para impedir que usuários assistam vídeos de outros países ou em dispositivos não autorizados[3].

Surpreendentemente os dois exemplos mais claros, e até mesmo um pouco assustadores, de como o DRM não tem qualquer relação com a proteção dos direitos autorais são a utilização deste mecanismo pela Amazon para deletar remotamente cópias do livro 1984 de George Orwell de dispositivos Kindle e do envio de relatórios em texto sobre o comportamento de usuários em relação a leitura de e-books no aplicativo de leitura da Adobe [4]. Ou seja, o DRM já foi comprovadamente utilizado para privar usuários de conteúdo legalmente adquirido e invadir sua privacidade sem seu conhecimento.

A possibilidade de utilizar DRM em bens estaria de acordo com o artigo 107 da Lei de Direitos Autorais de 1998, que dispõe o seguinte:

Art. 107. Independentemente da perda dos equipamentos utilizados, responderá por perdas e danos, nunca inferiores ao valor que resultaria da aplicação do disposto no art. 103 e seu parágrafo único, quem:

I - alterar, suprimir, modificar ou inutilizar, de qualquer maneira, dispositivos técnicos introduzidos nos exemplares das obras e produções protegidas para evitar ou restringir sua cópia;

II - alterar, suprimir ou inutilizar, de qualquer maneira, os sinais codificados destinados a restringir a comunicação ao público de obras, produções ou emissões protegidas ou a evitar a sua cópia;

Todavia, a utilização de um dispositivo técnico como o DRM está em completa desconformidade com o artigo 46 da mesma lei:

Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:

II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;

e com o artigo 6º, inciso I, da lei 9609/98:

Art. 6º Não constituem ofensa aos direitos do titular de programa de computador:

I - a reprodução, em um só exemplar, de cópia legitimamente adquirida, desde que se destine à cópia de salvaguarda ou armazenamento eletrônico, hipótese em que o exemplar original servirá de salvaguarda;

Já que a utilização do DRM impede que o consumidor que adquiriu o produto legalmente possa copiá-lo, tanto para guardar pequenos trechos quanto para garantir a integridade do produto em uma cópia privada.

Cabe a ressalva de que a definição de cópia mencionada no artigo 6º está completamente desatualizada em relação as novas possibilidades de salvaguarda de conteúdo. Suponha por exemplo que um consumidor tenha adquirido a obra Sandman: Prelúdios e Noturnos do Neil Gaiman e queira armazena-la na nuvem para mante-la a salvo. Esta única "cópia" privada poderia ser baixada infinitas vezes em diversos dispositivos do mesmo consumidor, entretanto, ainda pode ser considerada apenas "uma cópia". Esta é apenas uma das diversas razões pelas quais legislar em função de novas tecnologias, e não principiologicamente, está se revelando uma maneira equivocada e fadada ao fracasso e a obsolescência.

Ademais, os seguintes artigos do Código de Defesa do Consumidor proíbem claramente a utilização de uma restrição como o DRM:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;

Portanto, podem ser consideradas ilegais as restrições presentes, por exemplo, na limitação presente em e-readers (como o Kindle da Amazon, o Lev da Saraiva e o Nook da Livraria Cultura) em receber formatos de e-books compatíveis entre os dispositivos o que obriga o consumidor que escolher um dispositivo destes a consumir apenas os e-books disponibilizados pelas respectivas; nos termos de uso[5] impostos para obtenção dos e-books, que impõem diversos ônus ao consumidor, como a possibilidade de remoção unilateral do conteúdo, na impossibilidade de transferir o bem para outro local de armazenamento que não o dispositivo ou o aplicativo, no fornecimento de informações (como os livros adquiridos, páginas lidas etc) para a fornecedora do produto e terceiros; dentre diversas outras.

Levando em conta que as limitações impostas geralmente só são conhecidas após o consumidor ter adquirido o produto, elas poderiam até mesmo ser consideradas um vício redibitório.

Por todo o exposto acima, vê-se que há um claro conflito de normas. Todavia ele é facilmente solucionado ao se atentar para o fato de que o Código de Defesa do Consumidor tem previsão constitucional no artigo 5º, inciso XXXII, ou seja, possui hierarquia constitucional sobre as outras normas supramencionadas. O que torna nula qualquer disposição que atente contra o mesmo, claramente o caso dos artigos supracitados.

Ademais a utilização de DRM também vai contra o direito de propriedade estabelecido no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal pois impede que o consumidor seja verdadeiramente proprietário do conteúdo que adquiriu, tornando-o refém do fornecedor que pode escolher apagar o conteúdo a qualquer momento sem qualquer aviso.

Isto é extremamente perigoso, pois se um governo que promova ativamente a censura chegue ao poder, ele poderá facilmente censurar livros e as ideias que eles contém do público em geral simplesmente forçando o fornecedor a deletá-los remotamente. Deixando os consumidores comuns, que não conhecem técnicas de remoção de DRM, completamente vulneráveis.

Entretanto é necessário fazer uma distinção entre a utilização de DRM na venda de produtos e na venda de serviços. Apesar de empresas que vendem e-books tentarem classificar esta transação comercial como um serviço, teoricamente estabelecendo através de um contrato de adesão uma licença de uso por tempo indefinido mas unilateralmente revogável, o modo como os e-books são comercializados faz com que eles sejam bens, pois o consumidor acredita estar pagando para adquiri-los e não simplesmente utiliza-los por um período de tempo indefinido, o que seria similar a um aluguel.

O mesmo não pode ser dito sobre serviços de streaming de músicas e filmes, como o Spotify e Netflix e serviços de aluguel de livros, como o Kindle Unlimited, já que o consumidor tem a clara noção de que poderá usufruir dos bens somente pelo período em que pagar a mensalidade.

Ainda assim, cabe fazer a ressalva de que, apesar de parcialmente justificável nos casos de fornecimento de serviços, a utilização de DRM pelos mesmos sempre é em detrimento do consumidor e não é recomendada. Principalmente pelo fato de possibilitar um futuro em que o consumidor não tenha mais propriedade dos seus bens e fique à mercê da vontade das fornecedoras de serviços[6]. Um exemplo claro disto é a constante mudança da biblioteca do Netflix, que às vezes para de fornecer uma série inteira da noite para o dia.

Também vale lembrar que ainda há discussão sobre e-books serem considerados software ou livros. Apesar de nomes respeitados no direito digital considerarem-os softwares, a simples transposição do livro para o meio digital não parece ser suficiente para fazer esta distinção. Em sua essência, qualquer mídia (livro, filme ou áudio) física ou digital não deixa de ser um bem (material ou imaterial) fruto da produção intelectual de um indíviduo ou um grupo[7]. Mas independentemente de ser considerado um livro ou um software, ao obter um e-book o consumidor pagou para adquirir o direito de propriedade sobre este bem digital e para dispor dele como bem entender[8].

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Considerando que foi claramente demonstrado acima que a utilização do DRM não traz qualquer benefício para o proprietário no fornecimento de bens digitais e somente impõe ônus desnecessários ao consumidor é imperativo citar exemplos de empresas que estão adotando a distribuição de mídia sem DRM, algumas com biblioteca totalmente livre da tecnologia restritiva e outras em processo de adaptação.i

Além de todas as alternativas mencionadas, cabe ressaltar a Humble Bundle[9] que, além de oferecer sem DRM, e-books, jogos e apps em seu catálogo. Possui um sistema progressivo de compra, em que mais dinheiro significa mais conteúdo (com alguns títulos gratuitos), e que permite escolher não só quanto pagar mas também dividir quem receberá o dinheiro entre a empresa que criou o bem, a própria Humble Bundle e uma instituição de caridade[10].

Outras duas considerações interessantes não podem deixar de ser feitas são a necessidade da redução do preço de e-books em relação a versão física do mesmo livro, já que um e-book possui apenas uma fração ínfima dos custos de distribuição de um livro físico, e a necessidade de juristas do ramo do direito digital disponibilizarem seus livros no meio digital (em preços inferiores a versão física) para abrir caminho para que juristas de outros meios adotem a prática[11].

Finalmente, considerando o artigo 23 do Código Penal e a nulidade de artigos e cláusulas contratuais que impeçam a remoção de DRM, pelo fato do mesmo ser manifestamente contrário ao Código de Defesa do Consumido e a Constituição Federal, o consumidor tem o direito de remover esta restrição tecnológia através da utilização de softwares disponíveis na internet.


[1] Disponível em http://www.defectivebydesign.org/faq acesso em 22/10/2014 às 18:24

[2] Vale ler esta tirinha muito ilustrativa do XKCD disponível em https://xkcd.com/625/ acesso em 22/10/2014 às 18:24

[3] Quando aquela tela preta com uma mensagem branca seguida de um emoticom disser que você não pode assistir determinado vídeo por um destes dois motivos, culpe o DRM.

[4] Disponível em http://arstechnica.com/security/2014/10/adobes-e-book-reader-sends-your-reading-logs-back-to-adobe-in-plain-text/ acesso em 23/10/2014 às 22:20

[5]Exemplo: termo de uso da Saraiva, disponível em http://loja.editorasaraiva.com.br/informacoes-legais e da Amazon http://www.amazon.com.br/gp/help/customer/display.html?nodeId=200506200 acesso em 27/10/2014 às 12:30

[6] Frase adaptada do original "# Doesn't DRM make sense for streaming media and rental services? The problem with this argument is that it invites a future in which nobody has any control over their devices, and can only access media through DRM-encumbered distribution services. This argument is also based on misinformed claims that DRM prevents copyright infringement (see above). Streaming media services are rising in popularity, and DRM turns this into an opportunity to bring an end to personal media ownership. Rather than having services that can stream a user's media to any device using whatever software they choose, DRM consolidates distribution and services, such that all access to media must be through these services." disponível em http://www.defectivebydesign.org/faq#harm acesso em 27/10/2014 às 13:29.

[7] Que pode merecer proteção intelectual ou não, mas esta é outra discussão muito mais aprofundada

[8]Aí existe outra discussão acerca dos limites do que um consumidor poderia fazer fazer com o bem digital que adquiriu, que passa pelo debate entre o direito do autor em relação a sua obra versus o consumidor e o interesse público. Uma conclusão muito interessante é realizada neste artigo disponível em http://jus.com.br/artigos/8932/a-ideologia-da-propriedade-intelectual/2 , acesso em 27/10/2014 às 16:26

[9]Disponível em https://www.humblebundle.com/books acesso em 27/10/2014 às 14:28

[10]Por exemplo, a venda dos quadrinhos de Star Wars pode ter parte da renda revertida para a Comic Book Legal Defense Fund, organização que luta pela liberdade de expressão e contra a censura de quadrinhos nos Estados Unidos

[11]Um ótimo exemplo de jurista que faz isto é Lawrence Lessig, que disponibiliza integralmente através da licença creative commons todos os seus livros no seu site

i Links para as empresas: http://www.defectivebydesign.org/guide/ebooks , https://www.comixology.com/drm-free-backup (cabendo fazer a ressalva de que a Comixology é parte da Amazon e ambas possuem livros e quadrinhos com e sem DRM) , http://www.theguardian.com/technology/2014/jul/25/amazon-comixology-drm-free-downloads-walking-dead-sex-criminals-darkness-comics , http://macbookreader.com/wp/drm/ , https://blog.safaribooksonline.com/2009/11/10/list-of-drm-free-publishers/ , http://macbookreader.com/wp/drm-free-2/ , https://comicblender.com/

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMONSEN, André Wallace. A ilicitude do Digital Rights Management (DRM) no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4148, 9 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33184. Acesso em: 21 nov. 2024.

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