Artigo Destaque dos editores

Da necessidade de enquadramento dos pacientes de fibromialgia como pessoas com deficiência e da concessão de horário especial de trabalho

Exibindo página 1 de 3
23/09/2015 às 09:26

Resumo:


  • A fibromialgia é uma doença crônica que causa dores generalizadas e diversos sintomas, afetando significativamente a qualidade de vida dos pacientes.

  • Os decretos que regulamentam a definição de pessoa com deficiência no Brasil são considerados inconstitucionais após a ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que trouxe um conceito mais amplo e inclusivo.

  • Os servidores públicos federais com fibromialgia devem ter direito a horário especial de trabalho, conforme previsto na Lei 8.112/90, para garantir a igualdade de oportunidades e o respeito à sua dignidade e saúde.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Demonstra-se o novo conceito de pessoas com deficiência, que abrange as pessoas com fibromialgia, e, consequentemente, a possibilidade de concessão a elas do horário especial da Lei nº 8.112/1990.

1 – Introdução. 2 – Da inconstitucionalidade do art. 4º, do Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989 e do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, tendo em vista o novo conceito de pessoa com deficiência. 3 – Da concessão de horário especial para os servidores públicos federais fibromiálgicos. 4 – Conclusão. 5 – Referências bibliográficas.


1 – Introdução.

A fibromialgia, incluída no Catálogo Internacional de Doenças apenas em 2004, sob o código CID 10 M79.7, é uma doença multifatorial, de causa ainda desconhecida, definida pelo renomado profissional, Dr. Drauzio Varela, como sendo uma:

dor crônica que migra por vários pontos do corpo e se manifesta especialmente nos tendões e nas articulações. Trata-se de uma patologia relacionada com o funcionamento do sistema nervoso central e o mecanismo de supressão da dor (...)[1].

Por se tratar de uma doença recém-descoberta, a comunidade médica ainda não conseguiu concluir quais são suas causas. Entretanto, já está pacificado que os portadores da citada enfermidade, em sua maioria mulheres, na faixa etária de 30 a 55 anos, possuem maior sensibilidade à dor do que as pessoas que não são acometidos por ela, em virtude de o cérebro dos doentes interpretar os estímulos à dor de forma exagerada, ativando o sistema nervoso por inteiro.

A interpretação exagerada dos estímulos pelo cérebro faz com que o paciente sinta ainda mais dor, conforme explica a cartilha “Fibromialgia – Cartilha para pacientes”[2], editada pela Sociedade Brasileira de Reumatologia.

Os principais sintomas que caracterizam a fibromialgia são dores generalizadas e recidivas, de modo que às vezes sequer é possível elencar onde dói, sensibilidade ao toque, síndrome do intestino irritável, sensação de pernas inquietas, dores abdominais, queimações, formigamentos, dificuldades para urinar, cefaleia, cansaço, sono não reparador, variação de humor, insônia, falta de memória e concentração e até mesmo distúrbios emocionais e psicológicos, a exemplo de transtornos de ansiedade e depressão.

Seu diagnóstico é essencialmente clínico, de acordo com os sintomas informados pelos pacientes nas consultas médicas, tais como a identificação de pontos dolorosos sob pressão, também chamados de tender-points.

Não existe um exame específico para sua descoberta, de forma que o diagnóstico resulta dos sintomas e sinais reconhecidos nos pacientes, bem como da realização de distintos exames que são utilizados para excluir doenças que possuem sintomas semelhantes à fibromialgia.

Ainda não há cura para a fibromialgia, sendo o tratamento parte fundamental para que não se dê a progressão da doença que, embora não seja fatal, implica severas restrições à existência digna dos pacientes, sendo pacífico que eles possuem uma queda significativa na qualidade de vida, impactando negativamente nos aspectos social, profissional e afetivo de sua vida.

A fibromialgia é, portanto, uma condição clínica que demanda controle dos sintomas, pena de os fatores físicos serem agravados, exigindo a necessidade de uma combinação de tratamentos medicamentosos e não medicamentosos, em virtude de a ação dos medicamentos não ser suficiente. Impõe-se, portanto, a submissão a um tratamento multidisciplinar, como ensina Lin Tchie Yeng, médica fisiatra que trabalha no Grupo de Dor do Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo[3].

O uso de medicamentos pelos pacientes é imperioso para a estabilização de seu quadro, não gerando quaisquer efeitos os anti-inflamatórios e analgésicos simples, uma vez que atuam para tratar dores associadas aos danos teciduais, o que não se dá na fibromialgia. Como na fibromialgia o que ocorre é uma alteração no cérebro quanto à percepção da dor, referidos medicamentos não são aptos a tratar os pacientes.

Os antidepressivos e os neuromoduladores são a principal medicação atualmente utilizada pelos pacientes de fibromialgia, uma vez que controlam a falta de regulação da dor por parte do cérebro, atuando sobre os níveis de neurotransmissores no cérebro, pois são capazes de agir eficazmente na diminuição da dor, ao aumentar a quantidade de neurotransmissores que diminuem a dor desses pacientes.

O tratamento não medicamentoso dos pacientes exige, por exemplo, a prática de atividade física individualizada e especializada, principalmente com exercícios aeróbicos, de alongamento e de fortalecimento, que deve ser realizada de três a cinco vezes por semana, acupuntura, massagens relaxantes, infiltração de anestésicos nos pontos da dor, acompanhamento psicológico, dentre outros.

A realização do tratamento requer, portanto, que o paciente disponha de tempo suficiente, bem como dispenda gastos de elevada monta, uma vez que o Sistema Único de Saúde – SUS não dá cobertura a todas essas atividades.

Em que pesem as severas restrições impostas à sadia qualidade de vida dos pacientes, referida doença não foi contemplada pelo rol de pessoas com deficiência elencado do art. 4º, do Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989 e do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000. Isso tem causado inúmeros transtornos a essas pessoas, especialmente no que tange à concessão de benefícios destinados às pessoas com deficiência, razão pela qual se torna relevante a presente discussão.


2 – Da inconstitucionalidade do art. 4º, do Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989 e do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, tendo em vista o novo conceito de pessoa com deficiência.

A Constituição Federal de 1988 – CF/88 elegeu como fundamento central do ordenamento jurídico brasileiro a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), mostrando, já em seus primeiros artigos, a preocupação com a redução das desigualdades e com o tratamento igualitário, sem que haja qualquer forma de discriminação (art. 3º, III e IV, CF/88).

É exatamente em razão de mencionados ideais que ela impõe a obrigação de se conferir tratamento adequado às pessoas com deficiência, demonstrando a necessidade de se realizar a inclusão das pessoas com deficiência em sociedade de diversas formas, merecendo destaque a inclusão através do trabalho.

Tanto é assim que a Constituição determina que no seu art. 7º, inciso XXXI, a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência” no âmbito das relações privadas de trabalho. Já na seara pública, ela prescreve, em seu art. 37, inciso VIII, que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

Haja vista os mandamentos constitucionais, foram promulgadas leis acerca da temática da proteção das pessoas com deficiência, vindo em seguida os decretos regulamentadores, instituindo diversos conceitos de relevo para a efetiva inclusão das pessoas com deficiência em sociedade.

Com efeito, o Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989, estabelece o conceito de deficiência, in verbis:

Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:

I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz;

III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;

IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a) comunicação;

b) cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade;

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

V - deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.

O Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, por sua vez, estabelece em seu art. 5º as hipóteses de deficiência. Vejamos:

Art. 5º Os órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, as empresas prestadoras de serviços públicos e as instituições financeiras deverão dispensar atendimento prioritário às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

§ 1o Considera-se, para os efeitos deste Decreto:

I - pessoa portadora de deficiência, além daquelas previstas na Lei no 10.690, de 16 de junho de 2003, a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadra nas seguintes categorias:

a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;

c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;

d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

1. comunicação;

2. cuidado pessoal;

3. habilidades sociais;

4. utilização dos recursos da comunidade;

5. saúde e segurança;

6. habilidades acadêmicas;

7. lazer; e

8. trabalho;

e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências; e

II - pessoa com mobilidade reduzida, aquela que, não se enquadrando no conceito de pessoa portadora de deficiência, tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se, permanente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Referidos decretos não encontram suporte no atual bloco de constitucionalidade brasileiro, ampliado pela aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Brasil, que se deu em dois turnos, seguindo o procedimento previsto no art. 5º, §3º, da Constituição Federal de 1988, já integrando o ordenamento jurídico brasileiro com o status de emenda constitucional, consoante se vê da promulgação realizada através do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009.

Com a promulgação do Decreto 6.949/2009, deu-se uma revolução no conceito legal de pessoa com deficiência no Direito Brasileiro, eis que ocorreu uma mudança de perspectiva, notadamente em virtude de a deficiência deixar de ser vista sob a perspectiva da pessoa com deficiência, sendo considerada a partir do prisma da inadequação do Estado e da sociedade, que não se adaptaram para incluir essas pessoas na vida em sociedade.

Muda-se, portanto, a perspectiva do conceito de deficiência, que passa a repousar na sociedade e no Estado, nas barreiras atitudinais e ambientais que eles impõem às pessoas que possuem certos impedimentos, nos termos do art. 1º, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que conceitua pessoa com deficiência da seguinte forma:

“Preâmbulo:

(...)

e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,

(...)

Artigo 1

O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” (destaques)

Ricardo Tadeu Marques da Fonseca escreveu um artigo de extrema lucidez, antes mesmo da superveniência da promulgação da citada convenção no Brasil, intitulado “A ONU e seu conceito revolucionário de pessoa com deficiência”[4], em que leciona:

Evidencia-se, então, a percepção de que deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que apresentam impedimentos físicos mentais, intelectuais ou sensoriais. Na medida em que as sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e atitudinais, as pessoas com impedimentos têm asseguradas ou não a sua cidadania. (destaques)

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi internalizada no Brasil com “status” de emenda constitucional, como já fora mencionado, razão pela qual integra o bloco de constitucionalidade brasileiro, sendo, portanto, de aplicação imediata, nos termos do art. 5º, §1º, CF/88, constituindo norma de direito fundamental.

Desta feita, os conceitos de pessoa com deficiência, trazidos pelo Decreto nº 3.298/1999, que regulamentou a Lei nº 7.853/1989, e pelo Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, por sua vez, são demasiadamente restritivos, não se compatibilizando com os critérios, agora constitucionais, trazidos pela epigrafada Convenção.

Tanto é assim que a então Procuradora-geral da República, Deborah Duprat, propôs a Arguição de Preceito Fundamental nº 182 junto ao Supremo Tribunal Federal – STF, requerendo que seja declarada a invalidade por não recepção do art. 20, §2º, da Lei nº 8.742/93, que também se vale de um conceito restritivo para conceder o benefício de assistência social, consoante cópias anexas[5].

Importante alertar que a Súmula 377, do STJ já asseverava, antes mesmo da promulgação da mencionada Convenção, que “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”. Mencionada interpretação se baseia na constatação de que o rol do Decreto nº 3.298/1999 é demasiadamente restritivo, já que exclui as pessoas com visão monocular do conceito de pessoas com deficiência, fazendo-se necessária, na hipótese, a atuação do Judiciário conformando a norma ao caso concreto.

De se mencionar ainda que, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 6.949/2009, “a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, apensos por cópia ao presente Decreto, serão executados e cumpridos tão inteiramente como neles se contém”, sendo, portanto, de aplicação obrigatória para a Administração Direta e Indireta. 

Tendo em vista a natureza constitucional das normas insculpidas no Decreto nº 6.949/2009, o novo conceito de pessoa com deficiência revoga todas as normas que forem com ele incompatíveis. Assim sendo, o art. 4º, do Decreto 3.298/1999 e o art. 5º, do Decreto 5.296/2004 não mais possuem amparo constitucional, não podendo a Administração Pública observá-los em suas decisões administrativas, já que também o Estado deverá submeter-se ao império dos mandamentos constitucionais, haja vista a supremacia da Constituição Federal de 1988, notadamente em se tratando de direitos fundamentais sociais e do princípio da legalidade.

É preciso lembrar que o tema está afeto à garantia dos direitos da liberdade ao trabalho (art. 5º, II e XIII, CF/88) e da igualdade de oportunidade e tratamento no trabalho (art. 5º, caput, 6º, 7º, XXX e 39, §3º, CF/88), que são direitos fundamentais, sendo resultado da necessidade de se garantir igualdade não apenas formal, considerando-se o homem de forma isolada e abstrata, mas material, possibilitando a efetivação dos princípios da igualdade entre os homens e da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos fundamentais à vida e à saúde (art. 5º, caput, 6º e 196, CF/88).

Assim é que se autoriza a existência de discriminação positiva consubstanciada na promoção da igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de trabalho, em respeito à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho, ambos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III e IV, CF/88), concretizando-se o dever de obediência ao princípio da legalidade que se impõe à Administração Pública direta e indireta, dentre a qual se inclui a autarquia requerida, nos termos do art. 37, caput, CF/88.

Sobre a dignidade da pessoa humana, em que repousa a centralidade de todo ordenamento jurídico brasileiro instituído pela Constituição Federal de 1988, releva colacionar as lições de Annelise Fonseca (2012, p. 135)[6]:

É de salutar relevância explicitar que a dignidade da pessoa humana, além de ser um valor moral, alcançou o patamar de valor jurídico a ser tutelado por todos os estatutos normativos. E mais, não só produz efeitos no plano jurídico, mas também a dignidade deve produzir efeitos no plano material, impondo obrigações ao Estado e à sociedade.

Ingo Sarlet (2007, p. 48)[7] expõe com clareza que incumbe ao Estado pautar-se por condutas que concretizam a dignidade da pessoa humana.

Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria, portanto, o elemento mutável da dignidade), constatação esta que remete a uma conexão com o princípio da subsidiariedade, que assume uma função relevante também neste contexto. 83 84

De se ver, portanto, que o conceito insculpido no artigo 1º, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, efetivamente incorpora a dimensão médica ao conceito de deficiência, mas leva em conta, também, a importância da interação com os fatores sociais que levam à exclusão das pessoas com deficiência da vida digna.

À fl. 13 da cartilha “Fibromialgia – Cartilha para pacientes”[8], editada pela Sociedade Brasileira de Reumatologia, os impactos negativos trazidos pela fibromialgia à vida do paciente, bem como a necessidade de realização de atividades físicas, ficam bem claros:

(...) podemos observar, em um número significativo de pacientes, uma queda importante da qualidade de vida, com reflexos nos aspectos social, profissional e afetivo destes pacientes. Uma questão central para os fibromiálgicos é a dificuldade para a execução de tarefas, profissionais ou do cotidiano. Os pacientes mostram-se extremamente inseguros quanto ao desempenho pessoal, gerando um estado crônico de revolta em relação a sua saúde. Queixam-se frequentemente da redução da qualidade do seu trabalho, com consequente influência em sua vida profissional e mesmo na renda familiar. Comuns também são relatos de indiferença por parte de amigos e familiares, problemas conjugais e diminuição da frequência de atividades de lazer e mesmo religiosas.

 É muito importante que a pessoa com Fibromialgia entenda que a atividade física regular terá que ser mantida para o resto da vida, pelo risco de a Fibromialgia voltar se esta atividade for interrompida.

O tema é de demasiada importância, tanto assim o é, que tramita em caráter conclusivo o Projeto de Lei 2.680/2011[9], de autoria do Deputado Miriquinho Batista (PT-PA), que acrescenta dispositivo à Consolidação das Leis do Trabalho, para reduzir a jornada de trabalho de portador de fibromialgia, em quatro horas, condicionada à comprovação de prática de atividade física.

Impende ainda asseverar que a fibromialgia é uma doença do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo, que só recentemente foi catalogada no Cadastro de Internacional de Doenças – CID, recebendo o código CID 10 M 79.7, o que ocorreu somente 2004[10]. Assim, havendo o Decreto 3.298/1999, que estabelece as formas de deficiência, sido editado em 1999, era impossível que àquela época a fibromialgia pudesse ser enquadrada no mencionado rol.

Conforme já detalhadamente exposto, a fibromialgia é uma doença que importa ao paciente impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual e sensorial, que, em interação com as diversas barreiras impostas pelo trabalho deles, notadamente no que tange à jornada de oito horas de trabalho, efetivamente obstruem sua participação plena e efetiva na sociedade, especialmente em seu trabalho, em igualdade de condições com os demais servidores, que não estão acometidos por qualquer patologia como a fibromialgia.

Nestes termos, impõe-se o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 4º do Decreto nº 3.298/1999, que regulamentou a Lei nº 7.853/1989, bem como do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamentou as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, criando um rol taxativo de deficiências, valendo-se da técnica da interpretação conforme à Constituição (balizada no novo bloco de constitucionalidade firmado a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), para considerar o referido dispositivo como indicativo de exemplos, não se excluindo outras formas de deficiência, dentre as quais se inclui a fibromialgia, concluindo-se que as pessoas com fibromialgia se enquadram plenamente no novo conceito jurídico de pessoa com deficiência.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Theanna de Alencar Borges

Juíza do Trabalho Substituta do TRT da 6ª Região (Pernambuco). Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa "Luís de Camões". Especialista em "Derechos Humanos Laborales y Gobernanza Global" pela Universidade Castilla-La Mancha (Toledo, Espanha). Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Professora do Grupo de Estudos Loucos por Trabalho - GELT (instagram @gelt_oficial). Pesquisadora voluntária do Projeto "Direito Internacional Sem Fronteiras - DISF" e do "Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais da Universidade Federal do Ceará - GEDAI UFC". Ex-Professora de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho da Faculdade Paraíso do Ceará – FAPCE. Ex-editora do blog Loucos por Trabalho (http://loucosportrabalho.blogspot.com.br/). Ex-Técnica Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará – TRE/CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Theanna Alencar. Da necessidade de enquadramento dos pacientes de fibromialgia como pessoas com deficiência e da concessão de horário especial de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4466, 23 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33468. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos