PALAVRAS-CHAVE: Conflito. Demarcação das Terras Indígenas. Dispositivo Constitucional. Direito Ambiental.
1. Introdução
A situação no município de Buerarema (BA) é de conflito. O objeto da desarmonia é o domínio da terra, já que as partes conflitantes se negam a tentar dialogar, fazendo desenfrear uma escala de violência entre o povo indígena Tupinambá e os agricultores. Conforme noticiou o Site UOL, o estopim para o conflito armado foi o ataque a um caminhão que transportava estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, o qual foi alvejado em uma emboscada. Com este incidente, aumentou-se drasticamente a tensão envolvendo a demarcação territorial já existente.
O processo de identificação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença iniciou-se em 2004, fruto das lutas e prolongada pressão dos indígenas. Cinco anos depois, em 2009, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) aprovou o relatório circunstanciado que delimitou a TI em aproximadamente 47 mil hectares, porção territorial que se estende entre os municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, no sul da Bahia. Retardando os efeitos e as obrigações previstas no artigo 231 da Carta Maior, o Ministério da Justiça ainda não editou portaria declaratória da Terra Indígena, para que enfim, o processo de demarcação seja encaminhado para as formalidades finais. De acordo com dados da Funasa, cerca de 4.700 Tupinambás vivem na área, objeto do conflito.
2. Aspectos históricos e políticos da tensão
A entrada de pessoas não-indígenas na porção de terra que ora pertence ao povo tupinambá teve início no final do século 19, quando o local se destacou pela implantação, com sucesso, da cultura do cacau. Entre os anos de 1920 e 1940, os agricultores precisando de maior porção de terra para ampliar a plantação de cacau, ampliaram o processo de retirada dos índios, forçando-os a migrar para as Zonas Urbanas. Os índios que impuseram resistência tiveram seus pedaços de terra bastante diminuídos, e muitos tiveram que trabalhar em fazendas de cacau, em condições extremamente desumanas, e, em alguns casos, foram submetidos até mesmo ao regime de trabalho escravocrata.
Em 2004, os Índios Tupinambás iniciaram o processo de retomada de seu território tradicional, reocupando áreas que lhes haviam sido tomadas pelos agricultores, no entanto, encontram muita resistência, sofrendo intensa violência. Foram vítimas de diversas emboscadas, e entre os anos de 2008 e 2010, houve violência política, na qual se comprovou a utilização de armamento letal, prisões ilegais de lideranças e tortura (com choques elétricos).
A retomada das terras, segundo os indígenas, têm o intuito de pressionar o Estado para fazer o processo de demarcação avançar, mas também para resolver problemas das famílias, que estão vivendo em situação de miséria, passando até mesmo fome. Ainda merece destaque a questão cosmológica das terras para os Tupinambás, pois compreendem as terras indígenas como sagradas, portanto é dever da tribo proteger o território.
3. Demora na Demarcação das Terras por parte do Ministério da Justiça
Apesar da Constituição Federal, em seu artigo 231, garantir aos povos indígenas a posse das terras tradicionalmente ocupadas por eles, no plano concreto, tal norma constitucional carece de eficácia. Os índios padecem com a falta de acesso aos serviços públicos ocasionada pela demora na demarcação, sofrem dificuldades nos processo que enfrenta, já que, há uma forte e pesada resistência dos setores econômicos dominantes, além da violência e do preconceito durante o período de regularização das terras.
A demora no processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença é uma clara demonstração da falta de aplicabilidade do texto constitucional, levando o Ministério Público Federal impetrar ações civis públicas responsabilizando o Estado por não cumprir sua atribuição legal de proteger os direitos dos indígenas, conforme preceitua a Constituição Federal de 1988 e tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual o Estado Brasileiro é signatário.
Em decisão proferida pelo Juiz Federal da Subseção Judiciária de Itabuna, Dr. Victor Cretella Passos Silvana, na ação pública impetrada pelo Ministério Público Federal, cumulada com pedido liminar, constata-se a inércia por parte do Ministério da Justiça em concluir o processo de demarcação das terras indígenas, objeto e motivo principal dos conflitos violentos ocorridos no município de Buerarema (BA). Neste sentido destaco:
“Na inicial (fls. 03/30), o Ministério Público sustenta que a FUNAI encaminhou os estudos demarcatórios ao Ministério em março de 2012, porém até o presente momento não houve manifestação conclusiva, apesar de o Decreto n° 1.775/96 estipular expressamente o prazo de 30 dias para manifestação formal sobre o relatório do órgão indigenista (art. 2°, §10°). Segundo afirma, desde 05/04/2012, quando a Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça se manifestou pela aprovação dos estudos conclusivos da FUNAI, o processo não teve mais nenhum andamento decisório, e que, ao se manifestar sobre a ausência de decisão, o Ministro da Justiça se limitou a afirmar que o processo “está em análise criteriosa”.”
4. Aspectos Constitucionais e Infraconstitucionais da Demarcação das Terras Indígenas
A defesa das terras indígenas está delineada na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 6.001/1973, conhecida como Estatuto do Índio. Preceitua na Carta Maior que os índios são os primeiros e naturais donos da terra, assim tal direito surgiu antes de qualquer outro. Desta forma, o direito indígena não precisa preencher aspectos formais, já que se trata de um direito naturalístico sob embasamento da Carta Magna.
Analisando o artigo 231, § 1º da Constituição Federal, encontramos o seguinte conteúdo:
“Terras indígenas são aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”
Interpretando literalmente o supracitado artigo, percebe-se que basta a sinalização de uma tribo alegando a posse da terra dentro das hipóteses apresentadas, para que o pedido seja deferido.
5. Processo de demarcação de terras indígenas
O processo de demarcação de terras é um ato de cunho administrativo, o qual possui a iniciativa e orientação da FUNAI - órgão federal com fins de assistência ao índio, vinculado ao Ministério da Justiça -, sendo a etapa inicial denominada como identificação, segundo o Decreto 1.775/1996. Nesta identificação, uma equipe previamente estabelecida analisará os aspectos históricos, confirmando a presença da tribo, além de identificar as características indígenas inerentes aquele grupo.
Merece destaque o posicionamento da Suprema Corte sobre a titularidade do dever de demarcar:
“Cabe à União demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (Caput do art. 231 da CF). Donde competir ao Presidente da República homologar tal demarcação administrativa. A manifestação do Conselho de Defesa Nacional não é requisito de validade da demarcação de terras indígenas, mesmo daquelas situadas em região de fronteira. Não há que se falar em supressão das garantias do contraditório e da ampla defesa se aos impetrantes foi dada a oportunidade de que trata o art. 9º do Decreto 1.775/1996.”
Após essa identificação, o corpo técnico da FUNAI realiza estudos demográficos, sociológicos, ambientais, além de levantamentos cartográficos e fundiários da localidade, buscando fundamentar a delimitação da terra indígena. Com essas informações, a Fundação Nacional do Índio elabora uma proposta de criação da área indígena, repassando ao corpo técnico, e posteriormente, cria um relatório apontando os elementos que fundamentam a defesa da demarcação.
Importante destacar que neste processo, há o respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, sendo assim, a FUNAI apreciará as alegações apresentadas pelos terceiros diretamente interessados nas terras, e por fim, elaborará parecer, encaminhando-lhe para o Ministério da Justiça. Cabe ao Ministro da Justiça aprovar o parecer e expedir portaria declarando o reconhecimento da área indígena, determinando assim, a sua devida demarcação. O processo ainda precisa ser homologado pelo Presidente da República, por meio de decreto, registrando-se (como propriedade da União), em livro da Secretaria do Patrimônio e no cartório da comarca em que a área indígena se localizar.
A Suprema Corte Brasileira mostrou posição de defesa a concretização dos direitos dos indígenas, no seguinte julgado:
“A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A disputa pela posse permanente e pela riqueza das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constitui o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil.”
6. Titularidade das terras
O artigo 20 da Constituição Federal estabelece que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União, no entanto, são reconhecidos aos indígenas a posse permanente e o usufruto exclusivo dos rios, lagos e riquezas do solo nelas existentes. Entendemos portando que os índios gozam apenas do direito de usufruto das terras da União, não sendo portanto proprietários.
É importante destacar o posicionamento do Constitucionalista José Afonso da Silva, sobre o domínio da União nas terras habitadas pelos indígenas:
“O reconhecimento constitucional dessas terras ao domínio da União visa precisamente preservá-las e manter o vínculo que se acha embutido na norma, quando se fala que são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou seja, cria-se aí uma propriedade vinculada ou propriedade reservada com o fim de garantir os direitos dos índios sobre ela.”
Sobre isso, o Supremo Tribunal Federal pontuou:
“As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, § 2º, § 3º e § 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”
7. Conclusão
Sendo assim, vislumbra-se por meio dos aspectos explicitados que a problemática envolvendo a demarcação das terras indígenas na região do Sul da Bahia se consolida como uma clara demonstração de descumprimento da disposição da Carta Maior da República, já que, além de delegar à União o dever de realizar a demarcação, a Constituição Federal estabeleceu prazos - esses não respeitados no caso em tela - para que fossem realizadas as demarcações das terras, buscando-se evitar o surgimento de conflitos, a exemplo dos ocorridos em Buerarema (BA).
Faz-se necessário destacar que o texto constitucional trouxe importantes avanços no que tange aos direitos dos indígenas, reconhecendo a posse das suas terras originariamente habitadas, dentre outros. Destarte, no plano concreto, constata-se a interferências de interesses político-econômicos no processo de demarcação das referidas terras. Portanto, desta forma a norma constitucional perde a sua eficácia.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Acesso em 28 de novembro de 2014, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm>.
BRASIL. Lei n° 1.775, de 08 de janeiro de 1996. Dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas e dá outras providências. Acesso em 10 de setembro de 2013, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm>.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.