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A UE como potência não tradicional:

comércio e poder normativo

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11/01/2016 às 14:03
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Analisa-se a política externa e de segurança comum (PESC) e a política comercial comum (PCC) da UE, bem como a relação de ambas com o poder normativo do bloco.

Resumo: Neste texto, o objetivo do autor é analisar, de maneira relacionada, a política externa e de segurança comum (PESC) e a política comercial comum (PCC) da UE. A tese defendida é de que a PESC é subordinada à PCC, e de que esta constitui a principal política comunitária e o fundamento do exercício do poder normativo da UE, principal forma de atuação do bloco nos temas de high polítics. Essa forma de atuação, por sua vez, é indicativa de que a UE é uma grande potência não tradicional, a qual encontra grandes limitações nas situações conflituosas que envolvem potências clássicas.

Palavras-chave: União Europeia; política externa e de segurança comum (PESC) e política comercial comum (PCC); high politics, poder normativo.


Introdução

Em tempos de infindável crise no Velho Continente, pode parecer estranho referir-se à União Europeia como potência, no entanto, em perspectiva de longo prazo, esse entendimento prevalecerá. A UE, deve-se esclarecer de antemão, constitui potência de características peculiares, cujos atributos não dependem de grandes arsenais militares e de forças armadas numerosas, mas, sim, da combinação de força econômica persistente e de clareza deontológica expansiva. Para perscrutar esses aspectos constitutivos da potencialidade europeia bem como identificar suas fraquezas, analisar-se-ão, de forma encadeada, os seguintes temas: política externa e de segurança comum, política comercial comum e poder normativo.

Neste texto, que está dividido em três partes, o autor analisará, dessa forma, de maneira relacionada, aspectos da PESC e da PCC, a fim de demonstrar a inseparabilidade de ambas na política comunitária geral da União Europeia e de evidenciar sua relação com o exercício do poder normativo pelo bloco. Demonstrar-se-á, ao longo do texto, que a PESC não apresenta autonomia executiva na UE e, por isso, além de ser implementada mediante ações econômicas e comerciais, ocupa posição subalterna na agenda comunitária. Verificar-se-á, diferentemente, que a PCC, a qual pode apresentar, em certas ocasiões, objetivos extra-econômicos, constitui a mais importante expressão exterior da EU, sob a forma de política verdadeiramente comunitária, no cenário político internacional contemporâneo, bem como o fundamento precípuo de sustentação do poder normativo do bloco. Na primeira parte, serão discutidos os problemas na formulação e na execução da PESC. As características especiais da PCC serão tratadas na segunda parte, bem como a sua relevância extra-econômica. A avaliação da importância que essa política comercial multifuncional tem para União Europeia será objeto da última parte do texto, na qual se avaliará a relação dessas duas políticas com o tipo poder da UE no cenário internacional, aspecto que distingue o bloco de potências clássicas, dotadas de hard power.


1. Política externa e de segurança comum

Para os países independentes, política externa e de segurança são dois temas centrais, uma vez que concernem diretamente à soberania do Estado. A entidade política incapaz de apresentar-se ao mundo de maneira minimamente autônoma e de garantir, de fato, a sua ordem doméstica e a sua integridade (territorial e populacional) - que são a materialização interna e externa da soberania - não pode ser considerada, jurídica e politicamente, um Estado verdadeiro, tendo em vista a acepção westfaliana do conceito, ainda subsistente nos temas em que, como guerra e paz, predomina a perspectiva realista das relações internacionais. Por causa disso, os aspectos relacionados à segurança e à política externa tradicional, em regra, são bastante sensíveis e raramente delegados a instâncias externas ao próprio Estado.

Em razão dessa relevância do tema da soberania para própria manutenção dos Estados, no processo de construção da União Europeia, segurança e política externa são duas áreas relativamente pouco integradas, uma vez que o objetivo da integração não é eliminar a existência dos Estados-membros. Nessas duas áreas, por consequência, a atuação da UE como bloco unificado é mais problemática, principalmente se comparada com temas econômicos e sociais (por exemplo, comércio e educação), nos quais a política comunitária é mais desenvolvida e efetiva. Em se tratando de política e externa e de segurança, prevalecem, portanto, interesses nacionais (em detrimento de interesses comunitários) e arranjos militares não europeus (e.g. Organização do Tratado do Atlântico Norte), que vinculam, por meio de compromisso de segurança coletiva, alguns dos Estados-membros a países externos ao bloco, especialmente aos Estados Unidos.

Krotz (2009, pp. 563-568), ao explicar os motivos da impossibilidade da emergência da União Europeia como potência plena no curto prazo, enumera vários problemas diretamente relacionados à PESC. Além da persistência da opção atlântica (atlanticism), expresso pela presença militar constante dos EUA na Europa, e da necessidade de preservação da incolumidade da soberania nacional, o autor indica a complexidade institucional do bloco, a insuficiência orçamentária, a necessidade de consolidação interna e o sentimento anti-Bruxelas como sérios obstáculos ao desenvolvimento de uma política externa e de segurança comum. A deficiência desta, por sua vez, impossibilitaria a atuação internacional da UE como grande potência plena, dotada de todos os recursos de poder necessários para resistir às ameaças de atores equivalentes e para impor, sem restrições, sua vontade aos Estados mais fracos.

Essa característica da UE, mesmo se considerada a sua implicação para soberania dos Estados, é contraditória na sua aparência, uma vez que a gênese do bloco está diretamente relacionada às preocupações políticas e de segurança continentais no período posterior à Segunda Guerra Mundial. O Plano Schuman (1950), posteriormente consolidado no Tratado de Paris (1951), e os Tratados de Roma (1957), que marcam o início da era dourada da Europa (Kramer, 2012, p. 81), apesar de, na aparência, serem iniciativas de características exclusivamente mercantis, tinham objetivos mais ambiciosos: a reaproximação política franco-germânica, a solução definitiva do problema alemão e a cooperação em setores econômicos de uso dual (carvão, aço, energia nuclear), por meio dos quais se disseminaria a confiança mútua entre os antigos inimigos. França e Alemanha, dois adversários durante as duas guerras mundiais, eram fundamentais para estabilidade da Europa Ocidental e, por isso, assumiram a liderança do processo de integração (Kramer, 2012). A reaproximação deles seria efetiva garantia da preservação duradoura da paz continental e da subsistência dos valores ocidentais contra o avanço do comunismo soviético, mediante estabelecimento de laços econômicos em setores estratégicos (carvão, aço, energia atômica) e por meio da constituição de mercado comum.

Esse processo de integração, portanto, apresentava, simultaneamente, objetivos expressos de curto prazo e metas implícitas permanentes: com base na premissa kantiana (Lessa, 2003, pp. 19) da existência de relação positiva entre paz e comércio, buscava-se a integração econômica, a fim de coibir novas guerras. E, de fato, por causa de progressivos transbordamentos e ampliações de efeitos (spillover), de setores inicias concretos e específicos (como proposto por Jean Monnet), para áreas e para temas mais amplos - em que resultados intencionais e não intencionais fomentavam a expansão e o aprofundamento da integração –, o bloco, ao longo do tempo, apresentou resultados exitosos, embora claramente heterogêneos. Segundo a perspectiva neofuncionalista, adotada por parcela relevante dos estudos acadêmicos, esse tipo de integração europeia era baseado no movimento ininterrupto no sentido da maior conexão entre os membros (bicyicle theory), e a inércia estática seria sempre negativa e potencial ameaça de retrocesso (Moravsik, 2005, pp. 352).

Com base nessa premissa de necessidade de marcha continuada e de fruição de transbordamentos temáticos, previa-se, por consequência, que o fortalecimento da integração econômica, inevitavelmente, acarretaria a aproximação dos Estados-membros em áreas políticas, inclusive em áreas mais sensíveis, como, por exemplo, política externa e de segurança, como previsto, em termos genéricos, no Tratado de Maastricht (Nugent, 2010, pp. 56). Esse método, que gerou resultados expressivos na manutenção da paz no continente, no fortalecimento e na modernização da economia europeia, na incorporação de Estados-membros menos desenvolvidos (países ibéricos e Estados do leste europeu), apresentou evidentes limitações, em especial nas áreas diretamente relacionadas à soberania dos Estados, o que poderia indicar a temida estabilidade do processo integrativo (Moravcsik, 2005) e, por conseguinte, a impossibilidade de avanço nos temas mais políticos mais sensíveis.

O contínuo fortalecimento dos vínculos econômicos mútuos entre os Estados-membros, portanto, não transformou - nem provavelmente transformará no curto prazo (Krotz, 2009, pp. 556) - a União Europeia em um ator de aparência exterior monolítica, capaz de atuar unificadamente em todos os temas da agenda internacional. Em assuntos de segurança e de defesa, bem com em temas complexos de geopolítica, ainda predominam a vontade nacional e a interferência extracontinental da OTAN, organização fortemente controlada pelos EUA, superpotência cuja presença tem sido ininterrupta no continente europeu desde o fim da Segunda Guerra. Os Estados-membros da UE, por sua vez, com frequência, ao atuarem isoladamente, adotam, em termos de segurança, posições opostas ou discrepantes. Na Guerra do Iraque, por exemplo, enquanto França e Alemanha, com fundamento nas decisões do Conselho de Segurança, foram contrárias ao conflito, Reino Unido e Espanha apoiaram materialmente o esforço de guerra norte-americano.

Quando ocorre atuação em bloco, esses temas de high politics são equacionados em termos econômicos e comerciais, o que incorpora esses assuntos no âmbito da política comercial comum. Esta, portanto, assume relevância que extrapola o âmbito meramente mercantil ou econômico. A PCC, dessa forma, passa a ser a forma viável para a UE exprimir suas posições políticas, para pressionar terceiros Estados e para reafirmar seus valores no cenário internacional. Em razão disso, além de se constatar a existência de inquebrantável vínculo entre a esfera política e comercial, pode-se afirmar que a PESC subordina-se aos instrumentos de ação da PCC, a qual, dada sua natureza multifuncional, é a política comunitária par excellence da UE.


2. Política comercial comum      

A política comercial, desde a origem do bloco, sempre foi um dos principais fundamentos da União Europeia. Após a assinatura dos Tratados de Roma, em 1957, pelos seis países originários (Alemanha, França, Itália e Benelux), evidenciou-se que os objetivos dos Estados, em termos econômicos, não era apenas o de iniciar um processo de integração negativa (supressão de barreiras alfandegárias). A formação do mercado comum, complementada, posteriormente, pelas disposições do Ato Único Europeu (1985), pressuponha a constituição de espaço comum, em que a livre circulação de mercadorias, de serviços e de fatores deveria ser reforçada por políticas positivas que possibilitassem a criação de um ator internacional singular, dotado de vasto mercado único, e capaz de vocalizar, de maneira uniforme, suas posições em matéria de comércio e em temas correlatos. Nos principais tratados da UE (Paris, Roma, Ato Único, Maastricht, Amsterdã, Nice, Lisboa), a busca desse objetivo é expressa e fulcral, pois suas disposições sempre determinam o aprofundamento da integração comercial e evidenciam a centralidade desta para todo o projeto de europeu.

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Ainda que o objeto imediato da PCC seja comercial e econômico, ela apresenta alcance muito maior e, por vezes, é instrumentalizada para consecução de objetivos políticos e geoestratégicos. Essa relevância da PCC decorre de dois aspectos do processo de integração europeu: 1) como o mercado comum foi o aspecto da integração que mais se desenvolveu, a UE, em temas de comércio internacional, apresenta-se com interesses definidos e unificados, capaz de articular-se como poderoso ator unitário (e.g. nas negociações comerciais com os EUA e com o Mercosul e nos litígios no órgão de solução de controvérsias da OMC); 2) em razão do tamanho expressivo de seu mercado (maior produto interno bruto do mundo), da sofisticação tecnológica de seus processos produtivos e do elevado poder de compra de seus consumidores, a PCC pode fazer uso de acordos comerciais como instrumento de barganha e de pressão política.

Após o Tratado de Lisboa, que substituiu, com conteúdo similar, o projeto de constituição europeia, a PCC passa por três alterações fundamentais (Woolcock, 2008, pp. 1-2). Em primeiro lugar, menciona-se o incremento do papel do Parlamento Europeu, o qual passa a ser consultado (pela Comissão) durante as negociações comerciais e adquire o poder de aprovar ou de rejeitar o texto dos acordos, em conjunto com Conselho. Todos os temas comerciais, por sua vez, sem exceção, passam ser de competência exclusiva da EU, e a política comercial passa a ser regida pelas regras e pelos princípios da política exterior europeia.

Na prática, a PCC, após o Tratado de Lisboa, a ser formulada de maneira mais democrática, uma vez que o Parlamento Europeu, instância diretamente eleita pelos cidadãos, adquire maior relevância na consecução de acordos comerciais. Esse novo requisito, além de conferir maior legitimidade e accountability aos acordos, objetiva aproximar as instituições e as políticas europeias dos indivíduos que residem nos Estados-membros. Segundo Woolcock (2008, p. 2), com a supervisão do Parlamento, a PCC torna-se mais controlável e transparente (accountable) e menos tecnocrática e impenetrável, o que indica tentativa de reverter o criticado déficit democrático da UE.

A ideia de centralizar toda a política comercial nas instituições da UE, por sua vez, é decorrência direta do contínuo aprofundamento da integração comercial do bloco. Com o advento de novos temas comercias (serviços, propriedade intelectual, investimento direto, compras governamentais), muitos dos quais foram objeto das rodadas de negociação da Organização Mundial do Comércio, a UE passou a firmar acordos mistos (mixed agreements), que não vinculavam automaticamente todos os países do bloco, pois dependiam de aprovação pelos parlamentos nacionais dos Estados-membros. Após o Tratado de Lisboa, a competência compartilhada em matéria comercial é extinta, em benefício de uma política comercial comunitária homogênea e de competência exclusiva da União.

Além disso, segundo art. 205 do Tratado de Lisboa, a PCC deve ser considerada manifestação de parte da política externa da União Europeia. Isso significa, em outros termos, que ela deve ser orientada por princípios que, comumente, são adotados, no âmbito doméstico, pelos Estados-membros, e promovidos, externamente, pelo boco, na esfera das relações diplomáticas tradicionais e nos foros multilaterais, como, por exemplo, nas Nações Unidas. Democracia, direitos humanos, desenvolvimento sustentável, comércio justo (fair trade) são alguns dos valores que passam a orientar a formulação da política comercial comunitária da UE (Woolcock, 2008, pp. 3).

Sob uma perspectiva negativista, essa disposição do Tratado de Lisboa, no entanto, se seguida rigidamente, embora não diminua a relevância da política comercial comum, a torna menos complacente como instrumento de consecução de determinados fins econômicos e políticos. Essa ampliação do escopo dos tratados comerciais, além disso, dada a conexão com aspectos das realidades nacionais dos potenciais parceiros, pode ser considerada, por alguns países não europeus, como inoportuna ingerência da UE nos assuntos domésticos, bem como empecilho à realização do livre-comércio.

Considerados os aspectos positivos da disposição do Tratado de Lisboa, o condicionamento da política comercial ao respeito a determinados valores indica a formalização de dois aspectos centrais da atuação da UE no cenário internacional: 1) o comércio e a economia em geral devem permanecer, como ocorre desde a origem do bloco, as áreas principais de atuação da UE; 2) as relações comerciais e econômicas não podem ser consideradas temas neutros, sem implicações políticas. Assim, a UE deve fazer uso de sua política comercial como forma de promoção de seus valores fundamentais, os quais, segundo crença disseminada, podem contribuir para melhoria do bem-estar de toda a humanidade. Essa prática, que é uma amálgama de interesses econômicos e pretensões políticas, materializa o poder normativo da EU. Este, que é possibilitado, em grande medida, pela natureza multifuncional da PCC, consiste na forma mais importante de atuação internacional da UE, bem como a explicação para as limitações do bloco como potência plena.

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. A UE como potência não tradicional:: comércio e poder normativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4576, 11 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34694. Acesso em: 20 abr. 2024.

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