5. Dos inconvenientes da falta do registro do penhor na matrícula do imóvel
O primeiro e mais importante inconveniente da falta de registro do penhor na matrícula do imóvel se apresenta quando da compra e venda de imóvel pela modalidade “ad corpus” ou pelo dito popular “de porteira fechada”.
Suponhamos que “A” queira comprar uma “fazenda de vastos pastos e um pomar, bem tudo o que estiver dentro” situada no Povoado Nova Olinda, no Município de Alto Alegre do Pindaré, Estado do Maranhão e que na negociação ficou acertado que o preço pago seria o equivalente para o pagamento do imóvel, acréscimos e de todos os bens móveis existentes lá.
Contudo, “A” não sabia que os animais existentes nessa fazenda são objeto de cédula rural pignoratícia já registrada apenas e tão somente no Livro 3 do Registro de Imóveis competente, e que “B”, por descuido ou má-fé, simplesmente deixou de indicar na escritura.
Imagine, ainda, que o credor da cédula pignoratícia, sem saber que o imóvel fora vendido, resolva ir ao local verificar como estão os bens apenhados e se o crédito rural que fora financiado realmente está sendo utilizado como deveria.
O comprador “A” é obrigado a deixar o credor adentrar no seu imóvel? Assume a dívida que não sabia existir?
Acontece que a Lei nº 7.433/85 reza em seu artigo 1º, § 2º que “O tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada a sua transcrição”.
Nesses termos, nem o tabelião, nem o comprador poderiam ter ciência do penhor dos animais vinculados ao imóvel objeto da compra e venda, tendo em vista que a certidão de ônus necessariamente sairia negativa, já que é expedida em razão apenas do livro 2, ou seja, em razão da matrícula do imóvel.
Outro inconveniente que pode acontecer é quando o credor de cédula rural pignoratícia, defere o crédito rural (financiamento) e solicita à parte o registro da cédula para que o dinheiro possa ser liberado.
Contudo, quando da qualificação do título percebe-se que o imóvel não possui matrícula, ou seja, trata-se apenas e tão somente de posse[vi].
Esta cédula não pode adentrar o registro de imóveis porque este não se presta a registros que não estejam vinculados a direitos reais, principalmente ao direito de propriedade.
Até mesmo direitos pessoais que ingressam no Registro de Imóveis por expressa determinação legal, guardam relação ao menos com o direito de propriedade exercido ou que um dia o será (como no caso dos pactos antenupciais, em que os nubentes não têm bem imóveis ainda, mas que, por força de lei, o registram no Livro 3 - Auxiliar)[vii].
A prática do registro do penhor apenas no Livro 3 faz com registrador não possa fazer uma qualificação negativa das cédulas rurais pignoratícias que vinculem imóveis sem matrícula, vez que não teria fundamento jurídico para tanto.
Deferir-se-ia um crédito, garantido por um penhor irregularmente constituído (apenas no livro 3) e vinculado a um imóvel que sequer poderíamos dizer que existe, pois para a emissão dessa cédula, bastaria a declaração do emitente de que os animais estariam nesse imóvel.
A prática recorrente de registro desse tipo de cédula apenas no livro 3, faz com que credores solicitem o registro da cédula, vinculadas aos imóveis que não possuem matrícula, e alguns registradores o fazem por ser apenas no livro auxiliar e por imaginarem que esses bens não guardam relação com os imóveis aos quais estão vinculados.
Este não é o espírito do registro imobiliário. Os professores Décio Antônio Erpen e João Pedro Lamana Paiva sabiamente descrevem a função do sistema registral imobiliário:
A verdadeira função do sistema registral imobiliário está em tutelar a propriedade privada, bem assim combater a clandestinidade, irmã gêmea da fraude. (IRIB. Introdução ao Direito Notarial e Registral, p. 171, 2004).
Como o credor poderá ver o seu crédito satisfeito se a garantia pela cédula emitida não chegou a ser de fato constituída?
5. Dos Princípios do Registro de Imóveis
Três princípios registrais podem ser invocados como norteadores do entendimento do que fora explanado: 1 – Segurança Jurídica; 2 – Concentração dos atos na matrícula e 3 – Publicidade.
A segurança jurídica é a razão de ser dos registros públicos, e, por isso mesmo, esse ramo do direito deixou de ser apenas um apêndice do direito civil para se tornar um ramo autônomo do direito.
Os juristas Décio Antônio Erpen e João Pedro Lamana Paiva aclaram esse princípio ao declararem que:
Se o Registro Imobiliário constitui-se no único mecanismo confiável para noticiar-se à comunidade o que lhe pode ser oponível, mister que o mesmo seja completo, ágil, seguro e universal, similar a uma Encíclica Papal: urbi et orbi. (IRIB. Introdução ao Direito Notarial e Registral, p. 182, 2004).
Pelo princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel temos que entender que as inscrições no fólio real sejam tão completas que dispensem diligências outras. Somente dessa forma podermos garantir a própria segurança jurídica. E os autores acima citados continuam:
O art. 167, da Lei 6.015/73, pode ser considerado exaustivo por alguns. Todavia, o apego a essa conclusão não enriquece o sistema, também porque o art. 246, da mesma Lei, permite ilações no sentido de se dar elasticidade ao comando legal.
Assim, a nosso ver, nenhum fato jurígeno ou ato jurídico que diga respeito à situação jurídica do imóvel ou às mutações subjetivas pode ficar indiferente à inscrição na matrícula. Além dos atos translativos de propriedade, das instituições de direitos reais, a ela devem acorrer os atos judiciais, os atos que restringem a propriedade, os atos constritivos (penhoras, arrestos, sequestros, embargos), mesmo de caráter acautelatório, as declarações de indisponibilidade, as ações pessoais reipersecutórias e as reais, os decretos de utilidade pública, as imissões nas expropriações, os decretos de quebra, os tombamentos, comodatos, as servidões administrativas, os protestos contra a alienação de bem, os arrendamentos, as parcerias, enfim, todos os atos e fatos que possam implicar a alteração jurídica da coisa, mesmo em caráter secundário, mas que possa ser oponível, sem a necessidade de se buscar alhures informações outras, o que conspiraria contra a dinâmica da vida. (IRIB. Introdução ao Direito Notarial e Registral, p. 181, 2004).
A publicidade gera a ficção do conhecimento, assim, a realização de um ato de registro, seja a abertura de matrícula, um registro ou averbação dá a ideia de conhecimento por todos.
Essa publicidade garante a oponibilidade erga omnes aos direitos originados através do ingresso do título no fólio real.
Contudo, deve bastar para o registrador gerar essa ficção de conhecimento, quando ele tem em mãos meios para fazer com que esse conhecimento se torne mais palpável.
6. Conclusão
O registro do penhor na matrícula do imóvel deve se tornar prática entre os registradores de imóveis. A própria constituição desse direito real de garantia depende de sua correta inscrição nos livros imobiliários.
O registro do penhor rural apenas no livro 3 não é suficiente para constituí-lo, por falta expressa de norma nesse sentido.
Ademais, os princípios registrais imobiliários, por si só, já dariam embasamento suficiente para essa nova prática.
Precisamos fazer com que o Registro de Imóveis avance e abarque cada vez mais atos, vez que a sua função primordial é dar segurança jurídica às relações no corpo social.
Pensar no registro de imóveis como meio de pacificação social é pensar num registro que não seja engessado por formalismos desnecessários ou entendimentos que não abarquem a real intenção do legislador.
7. REFERÊNCIAS
CARVALHO, Afrânio de. A matrícula no registro de imóveis (publicado na Revista de Direito Imobiliário, RDI, 5/31, jan-jun. 1980). Revista dos Tribunais. Direito Registral. Registros Públicos. Doutrinas Essenciais. 2ª Ed. Vol. VI, São Paulo, 2014.
ERPEN, Antônio Décio. PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do Registro Imobiliário Formal. IRIB. Introdução ao Direito Notarial e Registral. Porto Alegre, 2004.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. Editora Método. 5ª ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro, 2014.
PASSARELLI, Luciano Lopes. Teoria Geral da Certidão Registral Imobiliária: O princípio da publicidade na era do registro de imóveis eletrônico. Ed. Quinta Editorial. São Paulo, 2010.
RODRIGUES, Marcelo. Tratado de registros públicos e direito notarial. Ed. Atlas. São Paulo, 2014.
Notas
[i] Afrânio de Carvalho ensina que os livros de imóveis possuem atribuições específicas, não podendo o registrador misturar a função de cada um deles. O professor alerta que o nascedouro de direitos reais se dá sempre no Livro Principal (Livro 2), vez que todos os direitos reais que a lei contempla como registráveis se relacionam com o direito real maior que é a propriedade.
[ii] Art. 1.431 (caput) e parágrafo único do CC/2002.
[iii] Art. 14, V do Dec. Lei nº 167/67.
[iv] Uma exceção a essa regra é o disposto no § 4º do artigo 35 da Lei nº 4.591/64, que por meio de averbação confere um direito real oponível a terceiros. Entendemos que esse dispositivo é uma falha técnica do legislador que confunde ato de averbação com ato de registro.
[v] Art. 7º do Dec. Lei nº 167/67.
[vi] Este inconveniente tem acontecido com certa regularidade na Serventia Extrajudicial de Alto Alegre do Pindaré/MA. O credor de Cédula Rural (geralmente bancos) solicitam o registro do título apenas no livro 3 e não se preocupam se o imóvel está devidamente matriculado. Este equívoco faz com que os posseiros de terras não se preocupem na regularização imobiliária.
[vii] Art. 167, item 12 c/c Art. 178, III da Lei nº 6.015/73.