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A pulverização do princípio do "in dubio pro reo" nos processos envolvendo a aplicação da Lei Maria da Penha

21/06/2015 às 10:44
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É estarrecedor que o STJ venha dinamitando o princípio do in dubio pro reo em razão de uma política criminal vitimista, comodista. Se a palavra da vítima basta para sustentar uma condenação, inverte-se o ônus da prova em desfavor da defesa.

É praticamente um dogma do direito processual penal moderno e democrático, regido pelo sistema acusatório, que cabe à acusação todo ônus de provar a culpa ou dolo do acusado, como decorrência do artigo 5º, inciso LVII da Constituição, pois “se ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é de rigor que, em caso de dúvida, a decisão seja dada em prol do acusado (princípio do in dubio pro reo):

Por força da regra probatória, a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado além de qualquer dúvida razoável, e não este de provar sua inocência.  Em outras palavras, recai exclusivamente sobre a acusação o ônus da prova, incumbindo-lhe demonstrar que o acusado praticou o fato delituoso que lhe foi imputado na peça acusatória.”[1]

Estando a Constituição no ápice do ordenamento jurídico, todas as demais normas infraconstitucionais devem-lhe sujeição, sendo inconstitucional qualquer decisão que subverta seus fundamentos, pois num Estado que se proclame como Democrático de Direito, a eficácia de qualquer intervenção penal não pode se atrelar à diminuição das garantias individuais.

Ora, a Lei Maria da Penha é uma norma processual penal infraconstitucional, não sendo nenhuma exceção à regra no que toca à observância dos princípios constitucionais, devendo, do mesmo modo que outras normas da mesma estatura, respeitar a mesma sistemática acusatória delineada mais acima.

Todavia, vem se consolidando no seio do Superior Tribunal de Justiça entendimento subversivo, talvez na intenção de “dar satisfações” à sociedade para que se possa ver que o Judiciário vem cumprindo a contento com seu papel de política criminal, combatendo a violência doméstica e familiar contra a mulher condenando mais e mais “agressores”.

Parece que na contramão de um processo penal democrático, pelo menos nos crimes que envolvem a aplicação da Lei Maria da Penha em ambiente de clandestinidade, prevalece uma comodista visão de que o acusado deva ser condenado, mesmo em estado de dúvida, de sorte que o princípio do in dubio pro reo é substituído pelo princípio do in dubio pro societate.

Vejam-se alguns dos inconstitucionais arestos do STJ:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO. PALAVRA DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Em se tratando de casos de violência doméstica em âmbito familiar contra a mulher, a palavra da vítima ganha especial relevo para o deferimento de medida protetiva de urgência, porquanto tais delitos são praticados, em regra, na esfera da convivência íntima e em situação de vulnerabilidade, sem que sejam presenciados por outras pessoas. 2. No caso, verifica-se que as medidas impostas foram somente para manter o dito agressor afastado da ofendida, de seus familiares e de eventuais testemunhas, restringindo apenas em menor grau a sua liberdade. 3. Estando em conflito, de um lado, a preservação da integridade física da vítima e, de outro, a liberdade irrestrita do suposto ofensor, atende aos mandamentos da proporcionalidade e razoabilidade a decisão que restringe moderadamente o direito de ir e vir do último. 4. Recurso em habeas corpus improvido.[2]” [GRIFAMOS]

PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. VIA INADEQUADA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. CRIME DE AMEAÇA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ESPECIAL RELEVÂNCIA À PALAVRA DA VÍTIMA COMO FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. INCIDÊNCIA DO ÓBICE DA SÚMULA N. 7 DESTA CORTE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Não cabe a esta Corte manifestar-se, ainda que para fins de prequestionamento, sobre suposta afronta a dispositivos/princípios constitucionais, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. 2. O agravante não logrou comprovar o apontado dissídio jurisprudencial, com o necessário cotejo analítico entre os arestos recorrido e paradigma, a fim de demonstrar a similitude fática entre os casos confrontados e a interpretação divergente, conforme exigem o art. 541, parágrafo único, do CPC, e o art. 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ, não se prestando, para tanto, a simples transcrição de ementas. 3. A palavra da vítima tem especial relevância para fundamentar a condenação pelo crime de ameaça, mormente porque se trata de violência doméstica ou familiar. 4. Rever o entendimento externado pelas instâncias ordinárias, que está fundamentado, para absolver o agravante, implicaria o vedado reexame de provas, o que não se admite na presente via do recurso especial, tendo em vista o óbice da Súmula n. 7 desta Corte. 5. Agravo regimental improvido.”[3] [GRIFAMOS]

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. PALAVRA DA VÍTIMA. ASSUNÇÃO DE ESPECIAL IMPORTÂNCIA.TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INVIABILIDADE, IN CASU. PRECEDENTES DO STJ. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 83 DA SÚMULA/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. O recurso encontra-se fundamentado na negativa de vigência aos artigos 41 e 395, inciso III, do CPP, sob o argumento da falta de justa causa para a ação penal que investiga o crime de ameaça ocorrido no âmbito familiar, tendo em vista que a simples palavra da vítima, sem os demais meios probatórios, não configura indício suficiente de autoria e materialidade a autorizar o recebimento da ação penal. 2. No que tange aos crimes de violência doméstica e familiar,entende esta Corte que a palavra da vítima assume especial importância, pois normalmente são cometidos sem testemunhas. 3. Diante disso, in casu, não há possibilidade de trancamento prematuro da ação penal por falta de justa causa, incidindo, na espécie, o teor do Enunciado n. 83 da Súmula/STJ. 4. Agravo regimental improvido.”[4] [GRIFAMOS]

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É estarrecedor que o STJ venha dinamitando o princípio do in dubio pro reo em razão de uma política criminal vitimista, comodista e banal.  Ora, se a simples palavra da vítima é suficiente para sustentar uma condenação, na prática inverte-se o ônus da prova em desfavor da defesa, que deve se encarregar de provar sua inocência, o que contradiz a garantia do artigo 5º, inciso LVII!

É notável como as citadas decisões do STJ destoam da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que consagraram a incolumidade do princípio do in dubio pro reo:

O postulado constitucional da não culpabilidade impede que o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível. A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.”[5] [GRIFAMOS]

Ora, sustentar uma condenação tão somente com a palavra da vítima é algo idêntico a tratar o acusado como culpado pelo crime, pois o ônus de provar por parte da acusação torna-se algo absolutamente descartável.

Assim, a Lei Maria Penha fez questão de afirmar com redundância os direitos fundamentais das mulheres, mas trouxe a reboque interpretações que “coisificam” o acusado; que o despersonalizam para simplesmente satisfazer a vontade da vítima em querer condená-lo, o que é absurdo, devendo agora o acusado ao mesmo tempo se defender e provar sua inocência.


[1]        LIMA, Renato Brasileiro de, Curso de Processo Penal, Volume Único, Ed. Impetus, 1ª Ed., Niterói, 2013, p. 09

[2]       STJ - RHC: 34035 AL 2012/0213979-8, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 05/11/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/11/2013

[3]       STJ - AgRg no AREsp: 423707 RJ 2013/0367770-5, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 07/10/2014, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/10/2014

[4]       STJ - AgRg no AREsp: 213796 DF 2012/0165998-9, Relator: Ministro CAMPOS MARQUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PR), Data de Julgamento: 19/02/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/02/2013

[5]       Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n.° 89.501/GO. Órgão Julgador: Segunda Turma. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgado em 12 dez 2006. Publicação/Fonte: DJ de 16 mar 2007.

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Sobre o autor
Roberto Flávio Cavalcanti

Advogado e jornalista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Roberto Flávio. A pulverização do princípio do "in dubio pro reo" nos processos envolvendo a aplicação da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4372, 21 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35078. Acesso em: 19 abr. 2024.

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