1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) desenvolveu, no transcurso de sua vida investigativa, uma metodologia que propiciou o conhecimento da racionalidade do desenvolvimento científico. O método popperiano redesenhou nova concepção acerca da ideia de problema no âmago da ciência, passando a entendê-lo como elemento necessário para o progresso científico, em analogia às pressões da seleção natural, pois a existência de dúvidas e questionamentos contribui para o caminhar em direção a uma maior aproximação da verdade.
Nesse contexto, os obstáculos observados durante o progresso na ciência não têm o condão de estagnar a evolução do conhecimento, mas sim de permitir uma maior qualificação da teoria reinante por meio de sua variação ou, caso impossível, uma mutação para uma nova teoria revolucionária que se demonstrará mais adaptável aos problemas apresentados.
Por se tratar de um método científico aplicável, sobretudo, às ciências sociais, os problemas e obstáculos do Direito, podem ser observados e analisados sob a ótica hipotético-dedutiva, razão pela qual a técnica articulada por Karl Popper se demonstra de singular importância para o avanço do conhecimento jurídico.
Assim, tendo-se por indispensável a compreensão do método popperiano, se impõe sua análise e absorção por meio da discussão e apreensão dos conceitos de progresso e obstáculo ao progresso na ciência, benefício confuso, adaptação (genética, comportamental e científica), exposição à pressões, desafios e problemas, mutação, recombinação, teorias revolucionárias, experimentação e eliminação do erro.
Uma vez assimilados os contornos delimitativos da metodologia hipotético-dedutiva, se impõe a análise da Sociedade do Risco como decorrente da transmutação do Estado Liberal para o Estado Social, sendo que as definições e noções apresentadas por Popper será a bússola para a investigação da legitimidade da incidência do Direito Penal nessa nova sociedade.
Portanto, passa-se, de imediato, à análise dos fundamentos que alicerçam a teoria popperiana no intuito de tornar clarividente a metodologia desenvolvida pelo ilustre filósofo austríaco.
2. KARL POPPER E O MÉTODO CIENTÍFICO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO
O embate filosófico acerca do progresso e do obstáculo na ciência produziu a errônea compreensão de que, enquanto o primeiro deve ser considerado como um elemento positivo na equação do desenvolvimento, o último não deve ser visto com bons olhos. É que, a ideia de obstáculo surge como sendo um entrave, ao passo que o progresso reflete um sentimento de aproximação da verdade.
Todavia, apesar de tal ideia ser aceita, no geral, inclusive por Popper, antes de qualquer elucidação o referido autor frisa a necessidade de imposição de reservas a mencionada compreensão, haja vista que realizando uma releitura, o filósofo chega a identificar os obstáculos como dificuldades inerentes ao progresso, sendo que o avanço científico parte, não da certeza das observações do cientista, mas sim dos problemas:
Quarta tese: Se é possível dizer que a ciência, ou o conhecimento, “começa” por algo, poder-se-ia dizer o seguinte: o conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de fatos ou números, porém, começa, mais propriamente, de problemas. Poder-se-ia dizer: não há nenhum conhecimento sem problemas; mas também não há nenhum problema sem conhecimento. Mas isto significa que o conhecimento começa da tensão entre conhecimento e ignorância.[1]
Dessa forma, encarando-se os problemas e obstáculos como objetos naturais na investigação científica, maximizados em sua importância pela percepção de que não há ciência sem questões, é possível chegar-se a conclusão de que o avanço científico é, em última análise, um benefício confuso, no sentido de que a verdade absoluta, eterna e plena é inalcançável, eis que pela dúvida surgirá novos problemas, os quais redundarão em novas proposições científicas que se estabelecerão racionalmente como verdades atuais, fato que se repete como num ciclo virtuoso.
Observando-se macroscopicamente a sucessão de teorias científicas que se apresentam como adequadas às resoluções de cada novo problema que se põe a diante, Popper encontra na biologia, especificamente na Teoria da Seleção Natural, um recorte epistemológico capaz de elucidar um método de racionalidade das ciências sociais, o que faz a partir da alusão analógica da noção de adaptação:
De um ponto de vista biológico e evolutivo, a ciência, ou o progresso na ciência, pode ser considerada como um instrumento usado pela espécie humana para se adaptar ao ambiente, para invadir novos nichos ambientais, e até para inventar novos nichos ambientais.[2]
É pela adaptação que o progresso científico se exterioriza quando diante de novas confrontações. A referida adaptação pode ser classificada em três níveis[3], quais sejam: 1) adaptação genética; 2) adaptação pela aprendizagem do comportamento adaptável; e 3) adaptação pela descoberta científica.
Quando expostos a pressões de seleção, desafios ambientais e problemas teóricos, os referidos níveis tendem a oferecer respostas próximas em seus mecanismos, porém diferenciadas em suas conclusões. No primeiro nível – genético, o mecanismo de adaptação se desenvolve de modo endoestrutural, no interior do próprio organismo a ser adaptado, modificando a estrutura genética deste por meio da mutação. No segundo nível – pela aprendizagem do comportamento adaptável, a adaptação ocorre tendo por base a existência de comportamentos disponíveis para escolha, onde a instrução guiará, mediante recombinações, qual destes deverá prevalecer diante de determinada situação. Por fim, no terceiro nível – científico, o mecanismo de adaptação responde aos problemas teóricos por meio do estabelecimento de teorias experimentais ou revolucionárias.
Diante disto e em vista à seleção natural, Popper salienta que a seleção das mutações e variações disponíveis aptas a estabelecer um novo paradigma biológico, comportamental e científico perpassa, de modo necessário, pelo método de experimentação e eliminação do erro, o que permite analisar quais organismos, comportamentos ou teorias científicas propostas oferecem uma adaptação mais abrangente e eficaz, respondendo inteiramente aos problemas apresentados até então.
Por meio do método de experimentação e eliminação do erro é possível selecionar-se, em nível científico, uma nova teoria ou conjectura que modifique aquela antes estabelecida como dominante, alterando o paradigma presente.
Ocorre que, como ressalta Popper, a efetivação da seleção natural não gera qualquer estado de equilíbrio, haja vista que novos desafios, pressões e problemas se apresentarão, pois como dito anteriormente, estes são inerentes ao progresso científico e inexiste uma verdade absoluta, eterna e plenamente atingível:
Deve-se notar que, geralmente, nenhum estado de equilíbrio da adaptação é alcançado por qualquer aplicação do método de experimentação e eliminação do erro, ou por seleção natural. Em primeiro lugar, por que nenhuma, solução processual perfeita ou ótima para um problema ,é provável de ser oferecida; em segundo lugar -- e Isto e mais
importante - por que a emergência de novas estruturas, ou de novas instruções, envolve uma mudança na situação ambiental. [...] a adoção experimental de uma nova conjetura ou teoria pode solucionar um ou dois problemas, mas isto introduz, invariavelmente, muitos problemas novos, pois uma nova teoria revolucionária funciona exatamente como um novo e poderoso órgão sensitivo. [4]
Assim, os antigos problemas, uma vez resolvidos, dão lugar aos novos problemas, diferentes, profundos e em maior número.
Uma grande diferença enumerada por Popper no que tange aos níveis de adaptação resulta da observação de que as mutações ou descobertas no âmbito científico são caracterizadas por meio de formulações linguísticas, o que não ocorre nos demais níveis, genético e comportamental. Dessa forma, as proposições de adaptação ou mutação científica torna-se objeto estranho àquele que a formula, permitindo-se, portanto, se livra “de uma teoria mal ajustada antes que a adoção da teoria nos torne incapacitados a sobreviver”.[5]
Nesse sentido, por ser a nova teoria científica externada através de fórmulas linguísticas, os futuros desafios, problemas e pressões ocorrem de forma antecipada, quando ainda não se estabeleceu o novo paradigma científico, o que facilita experimentá-la, bem como verificar se seu resultado conduz a um erro que ainda se apresenta evitável.
Desse modo, o método popperiano aceita a visão de progresso científico em um sentido positivo para, através da teoria biológica da seleção natural e da utilização da técnica da experimentação e eliminação do erro, permitir que os problemas e questionamentos façam parte da cadeia natural de evolução científica, na medida em que através deles se possam extrair teorias revolucionárias que melhor se adaptem ao mundo hodierno e solucionem as demandas de modo satisfatório, até que novos problemas, mais profundos e em maior número se apresentem.
Para o eminente filósofo:
[...] o progresso na ciência, ou a descoberta científica, depende de instrução e seleção: de um elemento conservador ou tradicional ou histórico, e de um uso revolucionário de experimentação e eliminação de erro pela crítica, que inclui severos testes ou exames empíricos; isto é, tenta enquadrar, na medida do possível, as fraquezas das teorias, e tenta refutá-las.[6]
Nesse viés, a crítica ganha relevo no âmbito da metodologia científica, galgando um patamar de elemento fundamental para o desenvolvimento da ciência, sendo que a objetividade repousa no próprio criticismo, na discussão crítica.[7] É pela mesma que se alcança a mutação do paradigma existente no caminho para a verdade científica.
Todavia, cabe ressaltar que Popper estabelece um critério de julgamento acerca da qualidade de uma dada teoria. Esta última deverá compreender uma dupla característica em suas formulações, tornando-se, a um só tempo, revolucionária e conservadora.[8]
A marca revolucionária resulta do indispensável conflito entre a nova teoria e aquela predecessora, sendo que a derrota dessa última representa uma adaptação ou mutação nas bases do próprio sistema teórico, razão pela qual o termo revolução é utilizado no sentido de superação.
Por outro lado, a insígnia de conservadora é fruto da ideia de que a nova teoria deverá render resultados tão bons quanto aqueles que sua predecessora apresentou, sendo marcada pela resposta satisfatória às antigas críticas e dúvidas que a teoria anterior já respondia. Ou seja, a nova teoria representará, para que haja um salto de qualidade científica, um alargamento adequado do âmbito de respostas ofertadas, sendo inadmissível o regresso de velhas questões.
Em importante contribuição ao desenvolvimento da racionalidade científica, Popper elucida acerca da existência de obstáculos ao progresso na ciência, o que poderá conduzir o trabalho do pesquisador para uma conclusão errônea ou equivocada da verdade. Nesse caminhar, duas são as ordens dos obstáculos:[9] uma econômica e uma ideológica.
Quanto aos obstáculos econômicos, os mesmos se encontram demonstrados pelos seus extremos, ou seja, pela pobreza e pela afluência de dinheiro. A escassez de recursos financeiros, numa sociedade dirigida pelos instintos capitalistas, tende a comprometer a qualidade da pesquisa desenvolvida, muito embora tal condição não impeça a realização de grandes descobertas. Em sentido diametralmente oposto, a abundância financeira poderá corroer o espírito de busca pela verdade científica do pesquisador, levando-o a pendular em uma direção pré-concebida, ainda que distante da veracidade encontrada. Nas palavras de Popper, “a grande ciência pode destruir a grande ciência”.[10]
A segunda categoria de obstáculos se refere a conteúdos de ordem ideológica, subdividindo-se em intolerância ideológica ou religiosa, dogmatismos e falta de imaginação, sendo que quando presentes no seio da pesquisa científica, geralmente guiará o sujeito-pesquisador em direção a uma pseudo verdade já pré-estabelecida e conhecida, não permitindo que o progresso científico se realize, eis que o mesmo deverá decorrer, como já visto, do criticismo, da dúvida e do problema, e não da confirmação de percepções, dogmas ou proposições que não aceitam o questionamento. Nesse sentido, Francis Bacon já pregava que o pesquisador deveria despir-se dos ídolos da tribo, da caverna, do foro e do teatro.[11]
3. O MÉTODO POPPERIANO, A SOCIEDADE DO RISCO E O DIREITO PENAL
Conforme fora antes visto, o método popperiano consiste na assunção da dúvida e do problema como base inerente ao progresso científico, sendo que ao tomar como fundante a teoria da seleção natural e a técnica da experimentação e eliminação do erro, demonstra a racionalidade do conhecimento científico por meio das adaptações e mutações teóricas que estabelecem um novo paradigma, num sentido do surgimento de teorias revolucionárias, as quais a despeito de conflitarem, total ou parcialmente, com as teorias predecessoras, ofertam respostas satisfatórias aos problemas novos e antigos, todavia sem conteúdo absoluto ou imutável, eis que por ser a discussão crítica um movimento permanente, com o surgimento de novas questões, problemas e pressões, constitui-se em um ciclo virtuoso entre teoria predecessora, novos problemas e teoria sucessora.
Por outro lado, o questionamento que se faz é se tal metodologia é apta a promover uma investigação acerca da legitimidade da atuação do direito penal na sociedade do risco, especialmente antes os princípios penais fundamentais constitucionais. Para tanto, se apresenta indispensável demonstrar os contornos em que se desenvolveu a sociedade do risco, como fruto da mutação do Estado Liberal para o Estado Social, bem como do direito penal liberal para o direito penal moderno, sendo que este último se expõe como solução aos problemas emergentes dessa novel sociedade.
3.1. A SOCIEDADE DO RISCO: O Fenômeno do Risco e a Heurística do Medo na Sociedade - do risco acidental ao catastrófico.
“¿No son los riesgos tan antigos como la sociedad industrial, posiblemente incluso tan antiguos como la propia raza humana? ¿No está toda vida sujeira al riesgo de muerte? ¿No son y no fueron todas las sociedades de todas las épocas ‘sociedades de riesgo’?”[12]
O sociólogo alemão Ülrich Beck, após analisar, nos idos de 80, a sociedade moderna, bem como debruçar-se sobre os riscos oriundos do acidente da usina nuclear de Chernobyl, datado de 26 de abril de 1986, observou que a presente sociedade é detentora de uma nova característica, qual seja: a convivência habitual e rotineira com o risco onipresente, [13] passando, então, a denomina-la de "sociedade de risco" (Risikogesellschaft) ou, mais hodiernamente, de “sociedade global do risco” (Sociedad del riesgo global).[14] Segundo o mencionado autor, por risco deve-se entender que:
son siempre acontecimientos futuros que es posible que se presenten, que nos amenazan y, puesto que esta amenaza permanente determina nuestra expectativas, invade nuestras mentes y guía nuestros actos, resulta uma fuerza política transformadora.[15]
A visão do risco percorreu a humanidade, desde seus primórdios, em seu caminhar em direção ao progresso técnico-científico e social. No início, o risco era percebido como um fenômeno externo, acidental, ocasional, nada previsível. Tal momento era caracterizado como a era do risco acidental, fortuito, imprevisível, desacompanhado de um critério racional, sendo Deus um verdadeiro gestor dos riscos.
Com o pensamento racionalista galgando uma posição central na produção e disseminação do conhecimento, a sociedade afasta-se paulatinamente das explicações teológicas acerca dos eventos incidentes na mesma, buscando fundamentos na ciência. Assim, o risco passa a ser compreendido como algo que se relaciona com o mundo das incertezas, ou seja, com o que somente pode ser solucionado com um maior conhecimento atingido posteriormente. Nesse sentido, o referido fenômeno ultrapassa sua identificação com o viés acidentário, externo à sociedade e ao conhecimento, para aproximar-se de uma percepção probabilística, interna à sociedade e passível de compreensão.
Em um momento ulterior, a sociedade se dá conta de que os riscos são inerentes a sua própria estruturação, assim como que para o seu contínuo desenvolvimento se torna indispensável o incremento dos mesmos, fato que faz surgir um juízo de ponderação, haja vista que se aqueles se concretizarem no seio da ordem global estabelecida, a comunidade estaria sujeita a um colapso sem precedentes, transitando entre destruições localizadas (usinas nucleares), extinção da espécie humana (armas biológicas e engenharia genética) ou até mesmo a destruição do planeta (degradação ambiental).
O referido juízo de ponderação deve embasar o processo decisório acerca do que deve prevalecer: a oportunidade do desenvolvimento ou o risco do dano? Assim, Beck afirma que:
La categoría de la sociedad del riesgo, que tematiza el cuestionamiento de ideas centrales del contrato de riesgo, como la controlabilidad y compensabilidad de las inseguridades y peligros provocados por la industria.[16]
Por seus estudos, Beck notou que o grau de desenvolvimento da sociedade contemporânea se encontra intrincado com a presença de conflitos institucionais. Tais conflitos derivaram do desencadeamento dos processos de desenvolvimento, como a globalização, a revolução de gênero, o desemprego e, notoriamente, o aprimoramento tecnológico, os quais trouxeram consigo "riscos" colaterais de magnitudes globais, aptos, até mesmo, de colocar em dúvida a continuidade da existência da vida humana no planeta, v.g. a degradação da camada de ozônio, o efeito estufa, a contaminação das águas e do ar por agentes químicos, o desmatamento das florestas, o lixo tóxico, os incidentes nucleares, a ameaça da utilização de armas químicas e biológicas, dentre outros.
Nesse sentido, ao passo em que a sociedade contemporânea absorve os ganhos oriundos desses processos de desenvolvimento e, assim, neles aplica mais e mais técnicas de desenvolvimento, paradoxalmente, não enxerga os riscos de concreção dos efeitos colaterais que estes mesmos processos fabricavam.
Dessa forma, Beck classifica a modernidade em duas fases distintas: a) a simples, existente nos anos do período industrial, particularizada pela busca incessante e irracional do progresso; e b) a reflexiva, caracterizada pelo instante em que a sociedade observa os paradigmas constantes nela própria, passando a notar que os processos de desenvolvimento produzem, simultaneamente, ameaças concretas.
Consonante observa Salo de Carvalho:
na sociedade liberal o risco assumiria a forma de acidente, ou seja, expressar-se-ia como acontecimento exterior e imprevisto, individual e repentino. Com a edificação do Estado social e suas políticas de prevenção, os riscos assumem a figura de acontecimentos estatísticos calculáveis (probabilísticos). Assim, se o controle no século XIX ocorria post factum, mediante indenização, no século XX a ideia de resguardo técnico dos riscos impõe modelo de antecipação do dano via medidas preventivas.[17]
Todavia, François Ost, em sua brilhante obra, O tempo do Direito, adverte que:
entramos numa terceira fase da história do risco – a do risco enorme (catastrófico), irreversível, pouco ou nada previsível, que frustra as nossas capacidades de prevenção e de domínio, trazendo desta vez a incerteza ao coração dos nossos sabedores e dos nossos poderes.[18]
Tais riscos são aqueles maximizados pelas sociedades industriais, velozes, poluidoras em larga escala, superpovoadas e complexas, que foram criando obstáculos à aplicação do Direito Penal tradicional.
À noção de “risco” se encontra intrinsecamente interligada a ideia de “medo” ou “temor”, fruto da reflexividade da incerteza,[19] ou seja, da compreensão social de que a gestão e o controle dos riscos (incertezas) são passíveis de falhas, assim como a produção de novos conhecimentos é causadora da geração de novos riscos. Por outro lado, a percepção da existência de riscos globais, os quais não se contêm sob a fronteira de um só Estado, ante o momento cosmopolita em que vive-se,[20] incrementa o estado de amedrontamento social.
O ilustre filósofo alemão Hans Jonas, analisando os problemas ético-sociais emergidos do desenvolvimento tecnológico, constrói uma doutrina filosófica sobre a “heurística do medo” que serve de fundamentação para uma ética da responsabilidade na civilização tecnológica hodierna, afirmando a ideia de que “precisamos da ameaça à imagem humana – e de tipos de ameaça bem determinados – para, com o pavor gerado, afirmarmos uma imagem humana autêntica”.[21] Portanto, para o mencionado autor germano, o conhecimento dos valores indispensáveis, imprescindíveis, sem os quais não se pode identificar o traço característico da humanidade, surge quando se defronta aquilo do qual se deve proteger, numa nítida relação de perigo da ausência.[22]
Nessa toada, torna-se imperioso salientar as palavras de Hans Jonas no sentido de que:
Por isso, para investigar o que realmente valorizamos, a filosofia moral tem de consultar o nosso medo antes do nosso desejo.[23]
A produção e disseminação de pensamentos relativos a uma possível desgraça futura e sua consequente afetação (in)direta no âmbito do ser humano presente, fundamentos da heurística do medo jonasiana, estrutura os deveres introdutórios de uma ética da responsabilidade, haja vista que diante de uma possível consequência de cunho global, deve-se deixar influenciar mais enfaticamente pelos presságios de desastres em prejuízo daqueles que apontam para um sucesso, posto que a ausência de fronteiras geográficas e geracionais, bem como a irreversibilidade são características marcantes da novel comunidade científico-tecnológica.
Diante disso, a gestão arriscada da totalidade dos interesses alheios não possui justificação plausível, exceto para a proteção da ocorrência de um mal maior, pois como afirma Hans Jonas:
Nunca existe uma razão para apostar entre ganhar ou perder tudo; mas pode ser moralmente justificado, ou até mesmo imperativo, tentar salvar o inalienável, correndo o perigo de perder tudo na tentativa.[24]
Diante de uma “sociedade do risco” de tendência marcadamente progressista e desenvolvimentista, bem como ante os conceitos apreendidos pela ética jonasiana da responsabilidade, emerge a dúvida quanto a quem incumbirá o dever de prevenir que os referidos riscos (globais) se transformem em acontecimentos desastrosos?
3.2. O DIREITO PENAL DO RISCO
3.2.1 O Brado Pela Modernização e Expansão do Direito Penal na Sociedade do Risco.
Ante a drasticidade de seus instrumentos e fundado no suposto temor de sua aplicação concreta, a sociedade conclama, cada dia mais, o Direito Penal a se imbuir da tarefa de resguardar os interesses e valores de gerações futuras, mediante a tipificação das condutas desarrazoadas e temerosas, bem como a punição dos agentes que potencializam os riscos existentes.
Assim, a ciência criminal assume uma nova função, qual seja: evitar a efetivação dos riscos mediante política prevencionista, passando, por conseguinte, a ser rotulado pelos doutrinadores de “Direito Penal do Risco”, uma das espécies, que ao lado do Direito Penal do Inimigo, Direito Penal Simbólico, Direito Penal de Velocidades Diferentes, dentre outros, se convencionou fazer parte de intitulado “Direito Penal Moderno”.[25]
No Brasil, é claramente perceptível que, quando diante de discussões incessantemente impulsionadas pela mídia, a produção de novos tipos penais se torna algo corriqueiro, sem maiores debates, conforme se pode depreender da análise realizada por Ripollés.[26]
O Direito Penal moderno, em seu plano formal, é identificado através do incremento dos catálogos de figuras delitivas com a introdução de novos tipos penais no Código Penal ou em leis especiais, e, em segundo lugar, adicionalmente, pela ampliação do âmbito de aplicação e/ou uma agravação punitiva de alguns tipos tradicionais,[27] fazendo surgir uma utópica ideia de segurança jurídica através do sistema repressivo.
Portanto, a utilização desenfreada do Direito Penal por parte do legislador se realiza tendo por fim, prioritariamente, o caráter marcadamente simbólico[28] que o mesmo desponta para a sociedade, servindo, cotidianamente, como um verdadeiro álibi da atividade comissiva do Estado, ou seja, o ente estatal vale-se da retratada ciência jurídica repressiva para demonstrar à população que o mesmo não se encontra insensível aos seus anseios.
Diante disto, conforme aduz François Ost[29], na busca pela tutela de bens na sociedade de risco são instituídos novos tipos penais, desempenhando “o efeito de acalmar as reações emocionais que produzem entre os cidadãos”.[30] Todavia, como muito bem delineia a ilustre jurista das ciências penais, Maria Auxiliadora Minahim,[31] ocorre que tais fins não são próprios do Direito Penal. Tal entendimento é o posicionamento majoritário da doutrina criminal pátria hodierna.[32] [33]
Como Direito Penal tradicional há de se compreender aquele fomentado sob a égide do Estado liberal[34], absenteísta, não-intervencionista, direcionado para solucionar os conflitos individuais e refrear a violência punitiva do Estado, baseado no princípio da intervenção penal mínima cujo entendimento implicaria em vislumbrar o direito penal como ultima ratio legis, estando excluídas da esfera de repressão “quaisquer condutas de potencialidade lesiva ínfima ou conflitos que pudessem ser resolvidos por outras esferas do controle social informal ou formal não-penal”.[35]
Em idêntico sentido, Luiz Flávio Gomes ressalta o caráter do Direito Penal liberal como protetor dos direitos fundamentais da pessoa humana e limitador do poder punitivo[36].
Como muito bem delineia doutrinariamente Rogério Maia Garcia,[37] os proclamados riscos modernos, enormes ou catastróficos recaem, de maneira generalizada, nos campos onde se perpassa a modernização da vida, v.g. a globalização econômica e cultural, o meio ambiente, a ordem econômica interna, os sistemas de informações, a tecnologia nuclear, a biogenética, dentre inúmeros outros.
Desta forma, torna-se perceptível que em uma “sociedade mundial do risco” o temor a um acontecimento catastrófico é sentimento inerente à própria sociedade, fazendo com que a mesma potencialize sua sensação de insegurança e renove o brado pela utilização do Direito Penal (que se apoiará, enfaticamente, nos tipos penais de perigo abstrato e nas normas penais em branco) como único capaz de solucionar as ameaças eventuais e futuras. Assim, a expansão do Direito Penal se dá para além dos conflitos individuais, abarcando, agora, os bens supra individuais, ameaçados pelos novos riscos.[38]
De acordo com as lições de Hassemer, citado por Gracia Martín, o Direito Penal do Risco é um primeiro âmbito do Direito Penal moderno, entendido como “conseqüência do modo político pelo qual o Estado do presente resolve afrontar os conflitos sociais característicos da dinâmica da sociedade moderna”.[39]
Assim, o Direito Penal do Risco pode ser entendido como uma espécie do moderno direito penal, tendo por finalidade última proteger determinados bens jurídicos (geralmente individuais) tidos por essenciais na sociedade hodierna, por meio do controle, prevenção e gestão de riscos gerais oriundos do desenvolvimento técnico-científico, geradores de insegurança (objetiva e subjetiva), potencialmente causadores de danos catastróficos e provavelmente irreversíveis.
3.2.2. O Direito Penal do Risco e Sua Forma de Manifestação: tipos penais de perigo abstrato e normas penais em branco.
É precisa a lição de Hassemer[40] ao concluir que o tipo penal de perigo abstrato é o modelo formal dos delitos da modernidade, ante seu caráter preventivo, bastando a mera probabilidade (ou em certos casos, a possibilidade[41]) da sua ocorrência, ainda que abstrata. Entendimento que também é compartilhado por Fernandes,[42] Kaufmann[43] e por Naucke,[44] esses dois últimos salientam que o próprio Direito Penal é eminentemente preventivo, traço marcadamente característico de um Direito Penal racional e moderno.
A prevalência da função preventiva no Direito Penal vem se afirmando, paulatinamente, desde Feuerbach e sua “Teoria da Coação Psicológica”, sendo que, nos dias atuais, se demonstra como a doutrina de maior enfoque, especialmente em razão da decadência da ideia de ressocialização do criminoso, posto que se se encontra pacífica a ilegitimidade da punição sob o argumento da conversão do pecador em religioso, ao menos seria possível, na visão dos expansionistas, permitir o argumento da prevenção do pecado pela dissuasão da ameaça do castigo.[45]
Segundo definição do pundonoroso mestre alemão Claus Roxin,[46] delitos de perigo abstrato são “aqueles em que se castiga a conduta tipicamente perigosa como tal, sem que no caso concreto tenha ocorrido um resultado de exposição a perigo”.
De igual maestria é a conceituação elaborada por Blanca Mendoza Buergo, segundo a qual:
Los delitos de peligro abstracto castigan la puesta en prática de uma conducta reputada generalmente peligrosa, sin necessidad de que haga efectivo un peligro para el bien jurídico protegido. En ellos se determina la peligrosidad de la conduta típica a través de uma generalización legal basada en la consideración de que determinados comportamientos son tipicamente o generalmente para el objeto típico y, em definitiva, para el bien jurídico. Así, al considerar que la peligrosidad de la acción típica no es elemento del tipo sino simplemente razón o motivo de la existência del precepto, se concluye que no solo no es necesario probar si se há producido o no en el caso concreto uma puesta em peligro, sino ni siquiera confirmar tal peligrosidad general de la conducta en el caso individual, ya que el peligro viene deducido a través de parâmetros de peligrosidad preestablecidos de modo general por el legislador..[47]
É manifestamente perceptível que para a prevenção dos riscos existentes na sociedade moderna[48] se empregou a técnica da utilização dos tipos penais de perigo abstrato, posto que os mesmos permitem uma antecipação da punição frente a possível ocorrência de um evento danoso, fazendo com que o Direito Penal, ao se retirar do status da subsidiariedade para alçar-se ao patamar da prima ratio, funcione como verdadeiro gestor dos riscos, haja vista que aqui, para prevenir, é necessário presumir o dano, independentemente da ocorrência fática de sua lesão ou perigo de lesão.
Sob outro ângulo, convém frisar ainda, em que pese o presente trabalho não ter por objeto a análise dos bens jurídicos “pseudocoletivos” (meramente aparentes), que o conceito de bens jurídicos coletivos, os quais se valem, em geral, da técnica da abstração do perigo com fito na incriminação de condutas, vem, há muito, sendo passível de críticas pela doutrina nacional (Luís Greco) e estrangeira (Roxin, Schünemann, Hefendehl e Amelung), sendo que surgem, paulatinamente, vozes defensoras de uma decomposição dos mesmos em bens jurídicos individuais (v.g. a desconstrução dos bens jurídicos paz pública, incolumidade pública, saúde pública, segurança no trânsito, relações de consumo entre outros, por serem mera soma de bens jurídicos individuais).[49]
Neste contexto, assumem relevância, também, as chamadas normas penais em branco,[50] haja vista a flexibilidade inerente às mesmas, alterando-se conforme as vicissitudes que sofrem os acontecimentos aos quais se referem ou a ocorrência dos riscos a que pretendem proteger, o que ressalta seu caráter histórico e, portanto, tendente a seguir os movimentos político e temporal.
As normas penais em branco encontram sua razão de ser na indeterminação/incompletude do tipo legal, o qual não se demonstra devidamente minudenciado em seus corolários elementos.
O Direito Penal do Risco atua, precipuamente, como inibidor de condutas consideradas perigosas em si mesmas, mesmo que não se chegue a expor o bem jurídico a um perigo próximo, iminente ou concreto. Assim também, para a sua eficiência, se faz necessário que a tipicidade acompanhe a velocidade dos dias (riscos) atuais, sendo, portanto, imprescindível, que a definição do comportamento criminalmente temeroso seja passível de mudança célere e adequada com a proposta preventiva dos possíveis danos oriundos de uma característica desenvolvimentista da presente sociedade técnico-científica.
3.3. O MÉTODO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO COMO MEIO DE ANÁLISE DA LEGITIMIDADE DO DIREITO PENAL DO RISCO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO
“o jurista – especialmente aquele especializado nas questões penais – comprometido com a consolidação do Estado Democrático de Direito não pode transigir com a violação dos direitos fundamentais. Pelo contrario, deverão tais direitos funcionar como limite ao poder de punição do Estado.”[51]
Karl Popper contribuiu com sua metodologia hipotético-dedutiva na construção de uma maior racionalidade acerca do progresso científico, especialmente ao incluir os problemas como parte do núcleo do referido avanço teórico, assim como por transpor para o debate das ciências sociais a lógica da Teoria da Seleção Natural.
Nesse contexto, como dito outrora, o método da experimentação e eliminação do erro propicia a escolha de teorias científicas que se encontram adaptadas para a solução dos problemas atuais. Todavia, como salientou Popper, as novas teorias que se propõe a assumir o paradigma dominante devem possuir uma dupla característica: a) revolucionária, no que tange a superação dos conflitos para com a teoria predecessora, superando-a em suas bases teóricas; e b) conservadora, no que permite ao âmbito de solução dos questionamentos, devendo satisfazer não só os novos problemas, mas também aos antigos.
É esse ponto, notadamente, que se questiona a legitimidade do discurso que propaga a incidência do Direito Penal na sociedade do risco, ou seja, se o Direito Penal do Risco é apto a resolver não só os problemas oriundos da Sociedade do Risco, mas também, se consegue extirpar os problemas já resolvidos pelo Direito Penal Liberal-Tradicional.
A adoção do Direito Penal como protetor dos bens jurídicos supraindividuais, a exemplo das Leis 6.453/77 (atividades nucleares), 8.137/90 (ordem tributária, econômica e relações de consumo), 9.605/98 (meio ambiente), 11.105/2005 (biosegurança) e da Lei 12.735/2012 (informática) demonstra a opção do legislador pátrio pelo emprego do denominado Direito Penal do Risco no exercício da política criminal nacional.
Por outro lado, o caráter expansionista desse moderno direito, o qual se vale, notoriamente, de normas penais em branco, tipos penais de perigo abstrato e uma atuação prima ratio do Direito Penal tende a confrontar-se com os princípios penais, de índole garantista, insculpidos na Constituição Federal.
A opção do Estado Brasileiro pela inclusão do sistema de garantias penais fundamentais no bojo da Carta Magna de 1988 faz insurgir desconfiança acerca da compatibilidade do Direito Penal do Risco no seio do ordenamento jurídico pátrio, posto embater-se, em decorrência de suas particularidades, com os nortes do princípio da legalidade – pelo desrespeito à taxatividade ante a adoção de normas penais em branco – assim como dos princípios da lesividade e exclusiva proteção dos bens jurídicos, tendo em vista o emprego dos tipos penais de perigo abstrato, dentre outros importantes princípios.
Assim, é por demais corolário afirmar que os princípios penais fundamentais insculpidos expressa ou tacitamente no texto constitucional fazem parte do núcleo imprescindível da estrutura orgânica do Estado Democrático de Direito Brasileiro, atuando como fonte irradiadora não só de uma política criminal, como também de todo sistema jurídico pátrio, fazendo com que qualquer legislação deva ter com os mesmo uma relação de conformidade.
3.3.1. Tipos Penais de Perigo Abstrato e o Princípio da Lesividade
Os delitos de perigo abstrato, também denominados de crimes de perigo presumido, os quais são doutrinariamente contrapostos aos crimes de perigo concreto, são, contemporaneamente, produzidos em larga escala como uma fórmula político-criminal de domínio da criminalidade não-convencional, ou seja, como verdadeira fonte de criminalização. Em suma maioria, são tipos em que o agente simplesmente viola o imperativo da norma, não fazendo aquilo que deve, non facere quod debetur.
Desse modo, nos referidos delitos a pena é aplicada como medida de repreensão à mera violação da lei, e não a exposição do bem jurídico tutelado a uma violência efetiva ou mesmo uma ameaça concreta, assim como o tipo é estabelecido tendo por fundamento a prevenção da realização dos riscos.
É nesse sentido, ainda, que Leandro Gomicki Nunes afirma se tratar, os delitos de perigo abstrato, de:
Uma opção político-criminal a favor do adiantamento de barreiras de proteção social (Vorfeldkriminalisierung) [...] Justificam-se os adeptos dessa política criminal afirmando que a intervenção penal precoce (anterior a colocação concreta em perigo dos bens jurídicos) decorre das regras de experiência, que permitem afirmar a periculosidade típica de alguns comportamentos, ainda que não exista qualquer desvalor de resultado, bastando o desvalor de ação.[52]
Data máxima venia, é clarividente a afronta do Direito Penal do Risco ao princípio da intervenção mínima e, especialmente, da lesividade do fato, no que tange a utilização dos tipos penais de perigo abstrato sem qualquer discriminação pelo legislador pátrio como fonte de uma política criminal, em virtude de romper com a necessidade da antijuridicidade material para se incriminar uma conduta humana, apoiando-se, exclusivamente, em uma presunção de perigo.
É mister salientar que essa nova forma de produzir a ciência criminal conduz a uma demasiada antecipação do fenômeno criminal, geralmente através da eleição de bens jurídicos vagos, incapazes de cumprir a função crítica que lhe é reconhecida. Neste ponto, abre-se uma porta para a criminalização de opções morais, políticas ou sociais, e, portanto, configura-se um retrocesso do Direito Penal, eis que esse modo de pensar leva em conta apenas o desvalor de ação, ficando a antijuridicidade com uma configuração puramente estética em relação ao conceito, fato esse que não se coaduna com a noção de progresso científico trazida à baila por Karl Popper nos ensinamentos refletidos no capítulo 2 do presente artigo, posto que não respondem eficazmente aos problemas da teoria que pretende suplantar.
Com efeito, é pertinente a brilhante lição dos professores Juan Bustos Ramírez e Hermán Malarée, os quais advertem que:
antes de la promulgación de uma ley penal es necesario establecer previamente cuáles serán las consecuencias sociales que pueda producir la incriminación del comportamiento. En efecto, toda la política, y por eso también la política criminal, produce consecuencias sociales. Algunas de estas consecuencias, evidentemente las que son beneficiosas, son buscadas, pero a veces una misma política produce otras consecuencias que no son buscadas y que son prejudiciales.[53]
Isso permite afirmar que as consequências da utilização de fatos puníveis de perigo abstrato podem ser danosas socialmente, eis que tal política estabelece um maior controle social e, igualmente, uma desintegração social. Os efeitos dessa política criminal são, sem dúvida, elementos indispensáveis para o estabelecimento de regimes de exceção.
O ponto crucial de tal embate resulta na utilização dos tipos penais de perigo abstrato como fonte de criminalização, ou seja, como método de exteriorização e concretização da política criminal na sociedade do risco. O Direito Penal deixa de ter como finalidade precípua a proteção dos bens jurídico para servir como garantidor da política estatal de prevenção de risco.
Todavia, não está o Direito Penal legitimado a impor padrões de conduta às pessoas apenas porque é mais conveniente, ou adequado; o objeto de proteção é o bem jurídico; o que se aspira a evitar é a conduta que implica dano relevante a este bem jurídico. A norma penal não pode ser utilizada como fonte educadora ab initio, como prima ratio ou como meio coativo de produção do costume. Para tanto, outros ramos do Direito nasceram e se firmaram para cumprir tais funções.
A violação ao princípio da lesividade, da intervenção penal mínima e da exclusiva proteção dos bens jurídicos, por parte do Direito Penal do Risco, é escancarada, em decorrência da punibilidade de ações de per si, da utilização da lei penal como primeira (e única) razão, bem como pela abstinência do conceito material de bem-jurídico e antijuridicidade.
Por derradeiro, incumbe salientar que não se esta falando aqui de uma inconstitucionalidade in tontum dos bens jurídicos protegidos por meio da fórmula dos crimes de perigo abstrato, haja vista que o problema não reside, em última análise, no bem jurídico protegido (salvo se se trata dos pseudocoletivos ou aparentemente coletivos), mas sim como proteger, por se estar diante de uma crítica voltada à estrutura do delito (deliktstruktur).
A possibilidade de proteção de bens jurídicos pode-se efetivar pelas mais diversas modalidades de estruturação do delito, seja crime de lesão, perigo concreto ou perigo abstrato. Nesse sentido, convém ressaltar o exemplo trazido por Luís Greco:
É neste “como”, na questão da estrutura do delito, que devemos examinar a problemática do crime de perigo abstrato. Explicitemos a questão através de um exemplo, a saber, o bem jurídico individual vida. Aqui, a primeira pergunta, quanto à existência de bem jurídico, se responde facilmente em sentido afirmativo, porque a vida é elemento necessário para a realização pessoal, subsumindo-se, portanto, à definição acima proposta. A segunda ordem de considerações diz respeito à estrutura dos delitos que protegem a vida. Esta proteção pode ser efetivada através de delitos de lesão: o homicídio culposo e o homicídio doloso, sem falar em várias outros crimes em que a destruição da vida figura como qualificadora (lesão corporal seguida de morte, estupro com resultado morte). Outra estrutura de proteção é a dos delitos de perigo concreto: a vida é protegida através desta estrutura nos crimes de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, CP), no abandono de incapaz (art. 133), no incêndio (art. 250). Aqui, é necessário que, de uma perspectiva ex post, resulte efetivamente uma situação de fragilidade para o bem jurídico tutelado, que só se salva por obra do acaso. Por fim, o bem jurídico vida pode ser protegido também contra através de crimes de perigo abstrato: por ex., o legislador proíbe a rixa (art. 137) não só no interesse da incolumidade pública, como, principalmente, porque essa conduta pode provocar mortes.[54]
Nesse sentido, o verdadeiro trabalho esta em identificar e distinguir os crimes de perigo abstrato legítimos dos ilegítimos,[55] da mesma forma como ocorre com os bens jurídicos coletivos reais e aparentes, trabalho que vem sendo desenvolvido continuamente na Europa[56] e que ainda não culminou no delineamento dos critérios específicos para a constatação da mencionada legitimidade.
Assim sendo, o que se questiona é profusão progressiva dos delitos de perigo abstrato (e dos bens jurídicos coletivos), sem o estabelecimento de qualquer critério legitimador, como fonte de uma política criminal que tende a transformar o Direito Penal em um gestor dos riscos modernos e educador social, afastando o mencionado ramo jurídico de sua função mais importante: a proteção dos bens jurídicos.
Assim como asseveram Cornelius Prittwitz,[57] Pablo Alflan da Silva[58] e Rogério Maia Garcia,[59] não caberia ao Direito Penal, ainda que numa sociedade do risco, incumbir-se da tarefa de ser o principal refreador das ameaças a que a retratada sociedade moderna se encontra submersa, devendo-se conferir a outros ramos do direito a tarefa de tutelar tais fenômenos.
3.3.2. Normas Penais em Branco e o Princípio da Legalidade (Taxatividade)
Assim como os tipos penais de perigo abstrato, a utilização das normas penais em branco é uma das características do Direito Penal do Risco.
Segundo Pablo Rodrigo Alflen da Silva, “nesta hipótese o ato legislativo estabelece a sanção de modo preciso, mas deixa o conteúdo totalmente sem especificação, pois cede a formulação do tipo”.[60]
E arrematando, elucida o jovem professor que:
Os problemas resultantes da moderna sociedade do risco, tendem à fazer com que se amplie cada vez mais o emprego desta técnica, ao mesmo tempo em que objetivam a redução das garantias jurídico-penais. Assim, se se toma como horizonte de projeção a própria afirmação de Binding de que ‘a lei penal temporariamente como um corpo errante procura sua alma’, tem-se que a lei penal dispõe o preceito, mas o faz de modo genérico, sendo que remete à outro dispositivo para precisá-lo, e isso devido à exigência do postulado de lex certa. Portanto, pode-se considerar as leis penais em branco como aquelas leis penais que fixam a cominação penal, mas descrevem o conteúdo da matéria de proibição de modo genérico (o branco), remetendo expressa ou tacitamente à outros dispositivos de lei (remissão interna ou externa) ou emanados de órgãos de categoria inferior, para precisá-lo.[61]
Neste caso, a extravagância da utilização das normas penais em branco pela política criminal se traduz em verdadeira afronta ao princípio garantista da legalidade, observado sob o enfoque da taxatividade (lex certa), posto que a certeza da descrição do comportamento típico resta adstrito a fatos históricos.
Outro importante questionamento há se fazer no denominado Direito Penal do Risco reside na constitucionalidade da utilização das normas penais em branco heterogêneas e a privatividade da competência legislativa em razão da matéria penal.
Ademais, resta salientar que a ideia de um Direito Penal certo, descritivo, taxativo, minudenciado e cauteloso é diametralmente oposta a um Direito Penal flexível, simultâneo, aberto e impulsivo, sendo esse último o que se vale de conceitos jurídicos indeterminados e superficiais, bem como dos elementos normativos do tipo, com fito em abranger as mais variadas condutas e tornar-se adaptável aos riscos atuais e futuros.
Como já se pode perceber, a fungibilidade na descrição da norma penal é elemento caracterizador de um Estado de emergência, em razão de que neste, os indivíduos não detêm um abalizado conhecimento acerca das condutas proibidas pelo legislador, haja vista a mobilidade de seus conceitos.
Ainda, a ideia prevencionista resta desarticulada, tendo em vista que se é a certeza da norma que, em primeira análise, traz o suposto temor, é, por óbvio, que a não completude da mesma desaguará na não reverência dos cidadãos.
Assim, tem-se que o Direito Penal do Risco serve muito mais como instrumento de manipulação social com a correspondente quebra de variadas garantias constitucionais penais fundamentais à pessoa humana.
A simbologia inerente ao Direito Penal do Risco demarca um Direito Penal imediato e prima ratio, trazendo para seu bojo condutas antes resolvidas à sua margem, fomentando, a cada dia, a sua tendência expansionista, fazendo com que, paradoxalmente, a norma careça de efetividade.
Nesse ínterim, é mister trazer à baila a lição do pundonoroso mestre italiano Luigi Ferrajoli, citado por Rodrigo Pablo Alflen da Silva, ao comparar as normas penais em branco “à uma espécie de caixa vazia preenchível de volta a volta com conteúdos muito arbitrários”[62]
A necessidade de flexibilização das garantias penais fundamentais petrificadas no bojo da Constituição Federal de 1988 indica a incompatibilidade existente entre o denominado Direito Penal do Risco e o Estado Democrático de Direito Brasileiro. A utilização do Direito Penal com um caráter expansionista e político, bem como a imprescindibilidade da elaboração de normas sem a observância restrita do princípio da lesividade do fato e taxatividade reitera o confronto entre um Direito Penal Repressor e um Direito Penal Garantidor, sendo este último a opção, inequívoca, do constituinte pátrio.