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Aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho

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28/10/2016 às 13:08
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11 Entendimento quanto à aplicação do Princípio da Insignificância no delito de descaminho

Conforme exposto alhures, o Supremo Tribunal Federal, por suas duas Turmas, firmou entendimento no sentido de que incide o Princípio da Insignificância nos débitos tributários que não ultrapassam o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02.

Entretanto, rendendo o máximo respeito aos defensores da tese, ousamos discordar desse posicionamento, nos filiando a outros pensadores, não menos relevantes, pelos motivos a seguir expostos.

Inicialmente, necessário lembrar que o delito de descaminho ofende diretamente o patrimônio público, haja vista a burla de tributos indispensáveis às atividades estatais, ou seja, os valores não recolhidos seriam aplicados no aparelhamento da educação, infra-estrutura, saúde, etc. Deste modo, não há como conceber, em hipótese alguma, que a sonegação de impostos no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) seja irrelevante para o Estado e, consequentemente, para efeitos penais.

E não se diga que o artigo 20 da Lei n° 10.522/02 renuncia ou estipula como irrelevante os valores abaixo de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Conforme analisado em tópico anterior, o que estabelece o dispositivo é o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais com valor igual ou inferior aquele patamar.

A Fazenda Nacional não renuncia a tais valores. Trata-se de um arquivamento momentâneo, diferente do que acontece na hipótese tratada pelo art. 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02. Assim, se existe um critério razoável, baseado na legislação tributária, para a incidência do Princípio da Insignificância como excludente de tipicidade penal, esse tem de ser o valor de R$ 100,00 (cem reais), montante que possibilita o cancelamento total da cobrança, com baixa na distribuição, ante o desinteresse definitivo na cobrança pelo Estado.

Ora, o fato de existir um desinteresse momentâneo na cobrança judicial de débitos iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais) “não pode levar à conclusão de que o não pagamento do tributo é insignificante, que constitui uma lesão ínfima ao bem jurídico penal e, portanto, uma atipicidade penal material.”    (DEMERVAL, 2005, p. 25).

Na verdade, o Estado não perdoa o débito tributário quando dispensa a inscrição do devedor na dívida ativa, tampouco quando deixa de cobrar judicialmente esses valores. “Ainda que o resultado de não cobrar seja parecido com um verdadeiro perdão da dívida, ou falta de interesse, a aparência aqui engana desafortunadamente os que apenas a enxergam sem perscrutá-la.” (AMORIM, 2007, p. 28).

O que se percebe é um mero planejamento estratégico para cobrar apenas os valores que comercialmente seriam interessantes para o Estado, balanceando os custos de uma demanda judicial e os valores que seriam recebidos, o que não indica desinteresse em receber a quantia. A Fazenda Pública faz essa opção apenas por não ser economicamente viável a cobrança dessa dívida. É questão de custo-benefício.

Corroborando com esse entendimento, pontifica Douglas Fischer (citado nas razões do acórdão proferido por ocasião do julgamento do REsp 1112748/TO, de relatoria do E. Ministro Felix Fischer, publicado no DJe de 13/10/2009):

A circunstância de o Estado não promover a cobrança (mediante execução fiscal) dos valores inferiores hoje a R$ 10.000,00 não significa dizer que não haja interesse em receber as quantias. A providência insculpida em norma legal que autoriza o arquivamento (momentâneo) na distribuição das execuções fiscais diz tão somente com uma questão de política econômica e operacional da máquina de cobrança do Estado. Ou seja, a inserção de tal dispositivo justifica-se pelo fato de ser mais oneroso para o Estado cobrar as quantias objeto da prática criminosa, dado que as despesas para tanto superam aquele limite referido na norma retroreferida. Mas o dano social - protegido pela norma penal - parece continuar evidente, dependendo do caso concreto. Em suma, o fundamento das regras de âmbito cível - de não execução e/ou de cobrança dos valores - é evitar exatamente que a sociedade seja novamente penalizada, gastando-se mais que o próprio objeto do dano perseguido - o qual pertence aos cofres públicos.

Portanto, não é razoável entender que a Administração Pública dispensa ou renega o percebimento de valores abaixo de R$ 10.000,00 (dez mil reais), há apenas uma suspensão temporária. Desta forma, deve ser achado um parâmetro mais razoável para a exclusão da tipicidade penal no crime de descaminho.

Ademais, é válido ressaltar que, caso pacificado o entendimento de que deve ser aplicado o Princípio da Insignificância quando o tributo não ultrapassar o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), o tipo penal do descaminho será praticamente descriminalizado, vez que a maioria dos crimes não passam desse patamar, e mais, qualquer pessoa poderia habitualmente fazer entrar no país, sem pagamento do tributo devido, mercadorias no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), sonegando imposto de R$ 10.000,00 (dez mil reais), com a anuência do Poder Judiciário, o que, por óbvio, não é razoável.

Corroborando esses argumentos, encontram-se as razões do voto proferido nos autos do Recurso em Sentido Estrito n° 2006.70.02.009609-8/PR, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, verbis:

Aliás, a prevalecer a tese defendida pela eminente juíza monocrática, qualquer “atravessador” poderá ir ao Paraguai e de lá trazer para fins comerciais, quantas vezes quiser, inclusive no mesmo dia - já que permitida a reiteração tendo em conta a atipicidade - produtos no valor de R$ 20.000,00 (sonegando impostos de R$ 10.000,00) com a concordância do judiciário, o que, por certo, não se mostra razoável frente ao limite mensal de trezentos dólares (cerca de R$ 600,00) exigido do cidadão comum. Sem dúvida, tal impunidade será mais um incentivo às organizações criminosas que atuam na região transportando, diuturnamente, toneladas e toneladas de mercadorias aos grandes centros urbanos de todo o território nacional.

Mas não é só: deve ser levado em consideração que o não pagamento do tributo gera graves problemas para a população, pois a sonegação de impostos fecunda dificuldades no âmbito da segurança pública, educação, saúde, saneamento, infra-estrutura, etc.

Nesse sentido, ensina Pierre de Amorim (2007, p. 29):

Ora, para nós é clara a enorme ofensividade de um delito de descaminho (…) que atinge os cofres públicos em até R$ 10.000,00 (dez mil reais), ou mesmo R$ 1.000,00 (mil reais). Esses valores deveriam ser aplicados na saúde, educação e seguranças públicas, dentre outras finalidades obrigatórias do Estado brasileiro, expostas no art. 3° da Constituição da República, quando não for o caso de destinação específica.

Com a devida vênia, como se pode afirmar que não tem relevância o resultado de um crime que diminui a capacidade do Estado em fornecer um mínimo de qualidade nos serviços públicos que presta, causando a morte de milhares de pessoas anualmente?

Como enxergar insignificância no desfalque de numerário público, quando o quadro que se apresenta no país é de falta de aulas nas escolas públicas, epidemias medievais atingindo a população sem saneamento público, mortes em filas de hospitais públicos por falta de atendimento?

Considerando esse foco de análise, a questão se mostra bem mais complexa do que apenas utilizar parâmetros estabelecidos e previstos em legislação tributária, razão pela qual entendemos que é necessária a análise do caso concreto para aferir a potencialidade da conduta lesiva, considerando os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

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Frise-se que não estamos sustentando a não-aplicação do Princípio da Insignificância nos delitos contra a Administração Pública, apenas defendemos um critério mais razoável para se chegar ao valor a ser utilizado como referência.

Não é plausível entender como irrelevantes quantias que se aproximam de R$ 10.000,00 (dez mil reais), isso porque a sonegação dessa importância não se encaixa em dois requisitos: mínima ofensividade da conduta do agente e inexpressividade da lesão jurídica provocada, o que impede, portanto, a aplicação do Princípio da Insignificância. Outrossim, também não entendemos ter relevância jurídica o não-pagamento de impostos que ultrapassem um pouco o patamar de R$ 100,00 (cem reais), montante previsto no art. 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02 e, até pouco tempo, considerado de referência pelo Superior Tribunal de Justiça para incidência do Princípio da Insignificância.

Assim, como ocorre nos crimes contra o patrimônio privado, a aplicação do Princípio da Insignificância no delito de descaminho deve estar em harmonia com o conceito de razoabilidade e proporcionalidade, a fim de que seja avaliada, em cada caso, a conduta que merece receber a tutela penal, sem que se descuide dos Princípios da Fragmentariedade e da Intervenção Mínima.

Ora, sem dúvidas, espantaria e agrediria o senso comum se um magistrado absolvesse alguém por furto de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a uma loja de comércio (por maior que fosse o seu patrimônio) ou a algum cidadão, alegando tratar-se de crime de bagatela, visto que aquele valor seria suficiente para nutrir uma família de miseráveis brasileiros por alguns meses, sendo, portanto, irrazoável e desproporcional a sua incidência.

Dessa forma, a mesma interpretação deve ser dada quando se trata de dinheiro do Estado, pois o patrimônio público não merece menor proteção que o privado. Ora, se não lhe é dada melhor proteção, pelo menos de mesmo nível, quando se tem em mente o patrimônio privado, deve ser a preocupação de todos os poderes o cuidado com o erário que é arrecadado diretamente dos bolsos dos brasileiros.

Na linha desse entendimento foi o julgado proferido nos autos do Habeas Corpus n° 110.404/PR, de relatoria do Ministro Arnaldo Esteves Lima:

HABEAS CORPUS. PENAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. ORDEM CONCEDIDA.

1. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.

(...)

4. Revendo a questão, entendo que, assim como nos delitos contra o patrimônio, a aplicação do princípio da insignificância não deve estar atrelada apenas a um valor prefixado, sob pena de trasmudar-se o art. 334 do Código Penal em uma norma penal em branco, e sim ao conceito de razoabilidade, a fim de avaliar, em cada caso, o bem que não merece a tutela penal, à luz da fragmentariedade e da intervenção mínima.

(...)

6. Embora a conduta se amolde à definição jurídica do crime de descaminho, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a sua ofensividade se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade do comportamento foi de grau reduzido e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva.

7.  Ordem concedida para determinar a extinção da ação penal instaurada contra o paciente.

Destarte, mesmo considerando a previsão legal contida nos artigos 20 e 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02, e com base nos critérios de proporcionalidade e razoabilidade, entendemos que só serão considerados penalmente insignificantes os casos onde o valor do tributo iludido seja substancial para o homem médio, ou seja, a nosso sentir, merece a benevolência do reconhecimento da insignificância o montante de até um salário mínimo.

Isto porque, apenas dessa forma estarão cumpridos os requisitos exigidos pelo Supremo Tribunal Federal para aplicação do Princípio da Insignificância, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

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Sobre o autor
Eider Nogueira Mendes Neto

Advogado. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU; Especialista em Direito Público pela Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Assessor da Procuradoria Geral da República, Brasília, 2003/2010.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES NETO, Eider Nogueira. Aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4867, 28 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35559. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

O Artigo foi apresentado ao final do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal, realizado pela Escola Superior do Ministério Público da União, em Brasília/DF. O obra foi, recentemente, foi publicado no livro “Direito Penal Especial” da Escola Superior do MPU, apresentada pelo renomado Doutrinador Penalista EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA, com prefácio e organização do Professor e Procurador da Regional de República DOUGLAS FISCHER.

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