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O assédio moral e sexual nos programas de residência médica:

uma análise sobre as suas consequências jurídicas

18/10/2015 às 08:26
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Por ter o hospital-escola a obrigação de conhecer o que se passa em seu estabelecimento e coibir as condutas criminosas, estará ele obrigado a indenizar aquele que foi assediado realizando atividade sob a sua supervisão.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho irá discorrer sobre o assédio moral e sexual nas residências médicas e as suas consequências jurídicas no ordenamento jurídico brasileiro.

Para isso, será analisada a natureza jurídica da residência médica, o conceito de assédio moral e sexual, e a possibilidade de sua verificação em locais outros que não ambientes de trabalho.

Por fim, será discutido sobre quem recairá eventual ação de indenização por danos morais, e se essa responsabilidade será objetiva ou subjetiva.

2. A RESIDÊNCIA MÉDICA

De acordo com o Conselho Federal de Medicina, a residência médica é um programa de pós-graduação lato sensu – especialização – destinado a médicos, regulamentado por norma específica[1].

Os programas, que podem ser fornecidos por instituições de natureza pública ou privada, são credenciados e reconhecidos pela Comissão Nacional de Residência Médica, criada pelo Decreto 80.281/1977, e têm duração mínima de dois anos.

Por se tratar de uma pós-graduação, a atividade exercida pelos residentes possui cunho prioritariamente educacional e tem por finalidade precípua a capacitação dos médicos. O seu objeto principal, destarte, é a aprendizagem.

Dessa forma, apesar da carga intensa de trabalho – 60h semanais – e da responsabilidade imposta aos futuros especialistas, os médicos residentes são considerados, pela doutrina e pela jurisprudência brasileira, como estudantes, e não como trabalhadores (LIMA, 2010, p. 175).

Referido entendimento encontra respaldo na legislação que rege a matéria, haja vista dispor o Decreto 80.281/1977, em seu art. 1º, que dispõe:

a Residência em Medicina constitui modalidade do ensino de pós-graduação destinada a médicos, sob a forma de curso de especialização, caracterizada por treinamento em serviço em regime de dedicação exclusiva, funcionando em Instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional.

Em razão disso, os hospitais utilizam, muitas vezes, os residentes como mão de obra barata e especializada, sob o argumento da inexistência de vínculo laboral, posicionamento corroborado pelo ordenamento jurídico (LIMA, 2010, p. 181).

A eles somente são assegurados os direitos previstos expressamente nos editais de residência e os seus dissídios são resolvidos pela Justiça Comum – mesmo após o aumento da competência da Justiça do Trabalho decorrente da modificação do texto constitucional pela Emenda n. 45.

3. O ASSÉDIO MORAL E SEXUAL

O assédio moral é um termo de difícil conceituação, haja vista que pode traduzir uma enormidade de condutas, praticadas nos mais diversos âmbitos sociais. No âmbito do trabalho, ele se encontra mais visível em ambientes institucionais fechados, com graus de hierarquia.

Apesar disso, ele pode ser definido como a atividade reiterada seguida pelo sujeito ativo no sentido de desgastar o equilíbrio emocional do sujeito passivo, por meio de atos, palavras, gestos e silêncios significativos que visem ao enfraquecimento e diminuição da autoestima da vítima ou outra forma de desequilíbrio e tensão emocionais graves (DELGADO, 2013).

O Ministério do Trabalho e do Emprego – MTE, por sua vez, define o assédio moral como qualquer conduta abusiva que, intencional e frequentemente, fira a dignidade e a integridade física ou psíquica de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho[2].

Assim, o assédio moral estará configurado quando preencher três requisitos: realização de ato abusivo ou agressivo; a repetição da referida conduta, não necessariamente por meio do mesmo ato; e a intenção do agente ativo de causar dano ao assediado.

O assédio sexual, por outro lado, é a conduta de importunação reiterada e maliciosa, explícita ou não, com interesse e conotações sexuais de uma pessoa física com relação à outra (DELGADO, 2013).

O assédio sexual está previsto, ainda, no Código Penal, no art. 216-A, in verbis:

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Excetuando-se a hipótese que configura crime, a conduta não precisa ser realizada pelo empregador ou superior hierárquico: basta que ocorra a conduta injuriosa.

Nas relações empregatícias, tanto o assédio moral como sexual geram o dever de indenizar o empregado por danos morais e a possibilidade de rescisão indireta do contrato de trabalho individual, pela incidência de uma das hipóteses previstas no art. 483, da Consolidação das Leis do Trabalho.

4. O ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NOS PROGRAMAS DE RESIDÊNCIA MÉDICA

Diante da ideia de que o assédio moral pode ocorrer em qualquer situação cotidiana, mas em especial nos ambientes de trabalho, cabe o seguinte questionamento: é possível a ocorrência de assédio moral ou sexual nos programas de residência médica?

Conquanto o entendimento doutrinário e jurisprudencial seja no sentido da residência ser apenas uma modalidade de pós-graduação, o que, a priori, poderia levar a uma resposta negativa, verifica-se que, na prática, o assédio moral e sexual não apenas é possível, como recorrente.

O ambiente de labor na residência possui uma estrutura que, apesar de ser voltada para o ensino, favorece a prática de condutas abusivas. É que, os cursos são estruturados, em sua maioria, em uma escala de hierarquia, composta pelos residentes e pelo preceptor.

O conceito de preceptor muitas vezes é utilizado designar aquele profissional que não é da academia e que tem importante papel na inserção e socialização do recém-graduado no ambiente de trabalho. Entretanto, há quem entenda que se trata de um professor que ensina a um pequeno grupo de alunos ou residentes, com ênfase na prática clínica e no desenvolvimento de habilidades dessa natureza (BOTTI, REGO, 2007, p. 03).

Independente do conceito que se adote, o preceptor será a pessoa de maior influência sobre o residente, o que dá margem a abusos, sobretudo considerando que os alunos, além de estudarem, efetivamente realizam procedimentos típicos da sua atividade profissional, o que assemelha ainda mais o ambiente a um local de trabalho.

5. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

Conforme exposto, a relação existente entre os médicos participantes dos programas de residência e a instituição de ensino onde exercem suas atividades não pode ser considerada como de emprego e tampouco como de trabalho.

Dessa forma, conclui-se não ser possível a aplicação do art. 483, da CLT, que permite a rescisão unilateral do contrato por parte do empregado, por falta cometida pelo empregador, ainda que essa conduta seja enquadrada como assédio moral.

Então, quais as consequências jurídicas existentes para aqueles que praticam esses atos abusivos contra os residentes nos cursos de especialização?

Dano moral é a lesão a direito de conteúdo não pecuniário, e nem comercialmente redutível em dinheiro, ou seja, a direito personalíssimo. Embora haja entendimento respeitável no sentido contrário, atualmente prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento pela reparabilidade do dano moral, na forma de indenização, que terá também caráter sancionador (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2009, p. 55-79).

Assim sendo, praticado ato abusivo que importe lesão a direito personalíssimo do residente seu superior hierárquico, ou até mesmo colega de trabalho, será cabível a condenação do agressor em indenização por danos morais.

No ordenamento jurídico, vê-se que Constituição Federal de 1988 previu, em seu art. 5º, V e X, a possibilidade de indenização por danos morais:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

No âmbito infraconstitucional, o Código Civil regulamentou a matéria. Como regra geral, trouxe a responsabilidade subjetiva, que se verifica quando há ocorrência de culpa ou dolo, além de conduta e nexo causal, como se vê no art. 186:

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Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Por outro lado, observa-se que a lei civil abriu espaço também, excepcionalmente, para a responsabilidade objetiva, independente de dano, em seu art. 927, parágrafo único, contanto que prevista expressamente em lei:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Dessa forma, conclui-se que, havendo ofensa a um direito extrapatrimonial, será possível a imposição de indenização por danos morais contra aquele que cometeu o ato ilícito. Por se tratar de norma geral, prevista como garantia fundamental na Constituição, deve ser aplicável ao caso em exame.

Fixada esta premissa, passa-se à seguinte questão: quem será responsável pelo pagamento da indenização: se aquele que praticou o ato ou a instituição de ensino?

Para se responder à pergunta, cumpre analisar o art. 932, III, do Código Civil, que dispõe sobre a responsabilidade dos empregados:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

(...)

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

Embora não se trate de relação de emprego, impõe-se a utilização de analogia no referido artigo, para a sua aplicação às relações existentes entre os médicos e as instituições nos programas de residência, por estarem presentes os elementos da relação jurídica trabalhista, quais sejam, a subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade (MARTINS, 2013, p. 147-154), de forma a responsabilizar as instituições pelos atos praticados pelos profissionais da saúde.

Assim, por ter o hospital-escola a obrigação de conhecer o que se passa em seu estabelecimento e coibir as condutas criminosas, estará ele obrigado a indenizar aquele que foi assediado realizando atividade sob a sua supervisão.

Nada obstante, por ausência de previsão legal expressa, a responsabilidade da instituição de ensino – hospital – será subjetiva, não se aplicando a regra contida no art. 933, do Código Civil, que dispõem sobre a responsabilidade objetiva do empregador. É que, por se tratar de exceção, deve ela ser interpretada de forma restritiva e literal, não comportando analogia.

6. CONCLUSÕES

De todo o exposto, conclui-se que, embora os programas de residência médica não gerem vínculo empregatício entre o médico residente e a instituição de ensino, é possível a ocorrência de assédio moral praticado tanto por superiores hierárquicos, como supervisores e preceptores, como pelos colegas de trabalho.

Ocorrendo o ato ilícito, não será possível a rescisão do contrato com base no art. 483, da CLT, por inaplicável ao caso. Entretanto, será possível, em razão de previsão na Constituição Federal e no Código Civil, aplicável às relações não trabalhistas, o ajuizamento de demanda de indenização por danos morais, dirigida contra a referida instituição de ensino, em razão da aplicação por analogia da norma constante no art. 932, III, do Código Civil.

Essa responsabilidade, no entanto, será subjetiva, a seguir a regra geral, em razão da impossibilidade de aplicação do art. 933, do Código Civil, por se tratar de norma de exceção, a exigir interpretação restritiva.


REFERÊNCIAS

LIMA, Armênio Matias Corrêa Lima. Residência Médica sob a Óptica do Direito do Trabalho. Revista da ESMESC, v. 17, n. 23, 2010.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 2013.

MARQUES, Rodrigo Coelho; MARTINS FILHO, Euclides Dias; DE PAULA, Guilherme Santos; DOS SANTOS, Rondinneli Roberto. Assédio Moral nas Residências Médica e Não Médica de um Hospital de Ensino. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v36n3/15.pdf. Acesso em 06/02/2014.

BOTTI, Sérgio Henrique de Oliveira; REGO, Sérgio. Preceptor, Supervisor, Tutor e Mentor: quais são os seus papéis? Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v32n3/v32n3a11.pdf. Acesso em 07/02/2014.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 29ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 7ª Ed. Salvador: Saraiva, 2009.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br.

BRASIL. CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO. Disponível em: www.planalto.gov.br.

BRASIL. CÓDIGO CIVIL DE 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br.


NOTAS

[1] http://www.portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=88&Itemid=47

[2] http://www3.mte.gov.br/trab_domestico/trab_domestico_assedio.asp

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Ticiana Coelho. O assédio moral e sexual nos programas de residência médica:: uma análise sobre as suas consequências jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4491, 18 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36502. Acesso em: 24 abr. 2024.

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